terça-feira, fevereiro 13, 2007

A cola do mosaico

“ O que havia em você que eu pudesse influenciar? Seu cérebro? Ele era subdesenvolvido. Sua imaginação? Ela estava morta. Seu coração? Ainda não tinha nascido”

Oscar Wilde



Essa frase parece ilustrar de forma adequada o que acontece depois da idealização, sobretudo, o que ocorre quando alguém despenca do pedestal no qual o mantivemos por algum tempo.
Alfred , ou simplesmente “Bosie” foi a criatura merecedora dessa e tantas outras frases cheirando a ódio de Oscar.
Em “Di Profundis , o até hoje polêmico autor irlandês resolve varrer para além do tapete – certamente persa – toda a tristeza e o ressentimento que lhe foi causado pelo amor desmedido e por isso, fatal.
O livro parece mais uma enciclopédia de ofensas e, por isso, um bom lugar pra se aprender todo o tipo de humilhação que se possa infligir a algum outro.
No entanto, o livro nada mais é do que uma tentativa de sublimar, de dizer sobre esse amor tão cruel capaz de ofuscar o gênio do autor, levando-o à miséria e, finalmente, à morte.
Quando estamos magoados, quando algo nos atinge de tal maneira que não restam palavras, somente estas, paradoxalmente, podem nos salvar.
É um tal de escreve daqui, lê dali que vai ocupando todo um espaço na nossa mente, antes preenchido por uma mistura de vácuo e de sentimentos ruins, dirigidos a uma pessoa, certamente “algoz” da nossa existência, ou simplesmente o vilão da história da qual somos protagonistas (lembre-se que sempre procuramos responsabilizar um outro pela nossa dor, conveniente, não?).
Claro que existem outros modos de sublimação, a arte é o que fazemos com os pedaços de nós, na tentativa de voltarmos a um estado original (imaginário, diga-se de passagem) onde dor nenhuma existia, onde tudo era alegria.
Sublimar é uma arte, mesmo que não tenhamos o talento de Wilde, nem os pincéis de Picasso, nem o conhecimento de Freud. Cada um de nós está imbuído nessa atividade, na construção de um mosaico no qual as peças somos nós mesmos , ou o que restou de nós, depois de todas as avarias que vamos sofrendo durante nossas existências.
Há quem diga que se sublima de tudo, mas, eu acredito que muito da arte que foi sendo constituída ao longo dos séculos, mesmo representativa de movimentos culturais diversos, produto de um contexto sócio cultural específico está cheia de dores de amor, de ressentimento por causa do objeto amado perdido ou nunca alcançado.
A alma, essa, juntamente com o inconsciente, permanece, e está bem ali, na nossa frente. No entanto, os livros de história procuram classificar toda atividade artística de acordo com características específicas. A isso se chama “estilo”. Engraçado é que inconsciente não conhece estilo, nem escola, nem teoria. Inconsciente dói, desatina, antes mesmo de alguém ousar descobri-lo, desde que o mundo é mundo.
Portanto, o que digo nada mais é do que repetir que, para o inconsciente não há tempo, não importa se estamos falando da arte renascentista, de arte moderna, pós moderna. Ali, há sempre um inconsciente, atemporal, e, melhor ainda: igual ao meu e ao seu.
Por sermos tão “irmãos em inconsciente” é que podemos nos identificar com as palavras, produtos de sublimação, de autores tão distantes da nossa realidade, que podemos sentir algo com a arte de um pintor tão longínquo, podemos nos emocionar com uma canção. Por quê?
Porque falam das coisas tão comuns, tão simples, sejam elas dores de amor, dores de existir, angustia, dúvida quanto ao propósito da vida...
Essa cumplicidade inconsciente permite que as palavras de Wilde ecoem e sejam valorizadas até hoje, aqui ou na Inglaterra, não importa, somos os mesmos e sofremos igualmente.
Quando não encontramos elixir melhor pra sanar nossa dor, talvez quando toda uma farmácia não é suficiente, quando parece que não vai cicatrizar, que procuramos a arte que há em nós.
Claro que algumas pessoas fazem com maestria esse trabalho de transformar a dor em alguma coisa bela, como Wilde, outros, nem tanto, o que importa mesmo não é o talento nem o reconhecimento do outro, mas, simplesmente pôr para fora, de alguma maneira, varrer, e não para baixo do nosso tapete, nossos sentimentos.
Eu fico aqui pensando...será que algum dia chegamos a concluir essa tarefa de mosaico? Será que podemos um dia nos considerar finalmente “curados” das marcas que a existência vai nos deixando? Enfim, será que um dia não será necessário sublimar?
Não consigo achar respostas para algumas dessas perguntas, talvez porque nada na vida se pareça com respostas, ou não é a existência um longo caminho em busca destas? Nos constituímos na busca de algo, sempre na busca, mobilizada pelo nosso desejo.
Por isso, vamos atrás das nossas glórias, assim como vamos atrás das nossas desgraças particulares, nessa busca, vamos nos quebrando, nos colando, para quebrarmos de novo, em uma busca constante. De que? De respostas.
E , se um dia, acontece de as encontrarmos? Estaremos certamente mortos, não restará muito o que fazer por essas bandas, a existência simplesmente não nos seria possível. Algo estaria podre dentro de nós, viveríamos num estado de dormência profunda. Aí sim, sublimar não seria possível.
Acho que temos mesmo é que procurar a nossa arte, tão nossa, e fazer desta a cola e o cimento do nosso mosaico. Mesmo que o talento não nos renda reconhecimento público, nem fama, nem dinheiro. Sublimar é preciso, é tão indispensável à vida como oxigênio.