quarta-feira, novembro 11, 2015

Vergänglichkeit ou o relato verdadeiro de um péssimo passeio numa paisagem de verão




"Tudo o mais que, de outro modo, ele teria amado e admirado, lhe parecia
despojado de valor pela transitoriedade que era o destino de tudo"



O passeio de Freud e seus amigos serviu para fazer a humanidade entender sobre luto e sobre perda. O pretexto para a argumentação freudiana foi um episódio ocorrido num dia que se imagina ensolarado e tranquilo ao qual facilmente podemos atrelar imaginariamente as melhores paisagens e os mais ricos vestígios da obra divina, transposta para o que seria a mais maravilhosa das telas, se não fossem as tintas da própria realidade, se não fosse real o azul do céu e, portanto, se não estivéssemos a caminhar sobre a relva verde, quase pedindo-lhe licença a cada passo em busca de novas descobertas.

Não, a essa altura não estamos mais imaginando. Peço-lhes, inclusive, que não imaginem mais, imaginar é quase pecado, apenas ouçam o meu relato, com a mesma atenção que ouviram o texto de Freud que continua ecoando em vossos ouvidos, sendo celebrado e reverenciado por tantos outros ouvidos.

 Sei que a autoria célebre torna o texto imortal, mas há que se fazer justiça a quem o originou, quero dizer, há que se intuir a importância das demais personagens só brevemente mencionadas no mais famoso relato que se tem notícia sobre a transitoriedade das coisas em tempos de guerra. 

E digo mais: personagens só brevemente mencionadas e com o único propósito de  validar os argumentos e desdobramentos teóricos daquele que veio a se tornar o cientista do século, aquele que roubou o fogo de Zeus e lho deu aos homens, a este, todas as reverências; aos outros, o esquecimento mais cruel, à descoberta prometeica, todos os louros, à realidade, as sombras do inferno. 

Pois eis que chego a meu intento. Até agora não entendo, verdadeiramente, como a curiosidade humana não buscou saber mais sobre mim e sobre "o jovem poeta já famoso" (FREUD, 1916, p. 186). 

Somos como sombras dispostas exatamente onde herr professor nos colocou, tal como marionetes, a tornar seu relato mais belo, mais profundo, mais verossímil. E quanto a nós, o que nós temos a dizer sobre esse dia? Alguém já indagou sobre quem somos?

Aguço a curiosidade do leitor atento no intuito de saber se, de fato, existe qualquer traço de incômodo, qualquer fagulha de interesse em saber sobre nós, os outros, os esquecidos, as marionetes de Freud, aqueles seres quase anônimos que foram um dia acompanhar o grande homem em um passeio despretensioso em uma  "rica paisagem  num dia de verão"(FREUD, 1916, p. 186). 

Sobre nós pouco foi dito, a não ser que éramos " um jovem poeta e "um amigo taciturno". Creio não ser segredo a identidade do então jovem poeta "já famoso" , o homem sensível inspirou o texto do homem da ciência - e todos nós sabemos o quanto  a invenção freudiana deve às almas sensíveis, aos caracteres mais nobres que,de tão nobres, por vezes não suportam a crueza da vida e suas atribulações.

Sim, todo leitor atual sabe o quanto herr professor foi beber em homens como Goethe, como Dostoievsky, como Jensen, nobres e distintos cavalheiros que possuíam em comum a característica de se admirarem com as coisas terrenas e delas intuir as coisas etéreas.

É inquestionável, é mesmo impensável a descoberta freudiana sem os poetas, sem os músicos, sem, enfim, as almas mais elevadas que a existência já conheceu. E Rilke, esse poderia cobrar seus préstimos a hora que assim desejasse, era ele o jovem e já famoso poeta, isso não é segredo.

Mas, e quanto ao outro personagem, o outro a errar pelas pradarias? E o que foi feito daquela personagem obscura somente reconhecida no texto famoso como "amigo taciturno"?

Eis quem vos fala. Sou eu o amigo "taciturno", não tendo habilidade para a poesia, sempre gostei das coisas mundanas. Confesso que nunca fui pessoa das letras, nunca me comovi com os dramas santos, e nunca acreditei verdadeiramente em uma existência superior, também o fazer científico nunca me atraiu e a isso devo o fato de ter tido uma infância em que não me foi dado o direito à curiosidade comum às crianças, especialmente às crianças do sexo masculino - se me mostrei alguma vez curioso em relação a algum relógio-cuco, ou tive a mais pura intenção de destruir um brinquedo para saber sobre seu mecanismo disso logo foi demovido pela minha mãe e por suas engenhosas técnicas de me infligir os castigos mais cruéis, foi por amor à vida que desisti da curiosidade e essas experiências infantis me fizeram alheio a qualquer interesse que se tornasse científico - minha alma preferia manter o corpo livre de beliscões e pontapés.

Se nunca fui aquilo que podem chamar de caráter alegre, fanfarrão, também não foi por causa de nenhuma disposição interna que lembre qualquer sensibilidade, qualquer volubilidade romântica, tão comum ao zeitgest ao qual pertenci eu e meus amigos, hoje todos tão mortos como eu. Nunca fui alegre, mas também não acho que isso se devesse a qualquer coisa byroniana correndo em minhas veias. Também não era triste, era apenas indiferente a qualquer esforço humano para rir ou chorar.

Sou sim, "o amigo taciturno" a caminhar pelas pradarias e no dia fatídico de verão eu tinha  ao meu lado direito o homem das ciências, o distinto professor fadado ao sucesso, e junto a meu lado esquerdo vinha o jovem poeta famoso e promissor. 

O que seria eu, o que poderia ser eu ao lado de tanto brilhantismo? Apenas isso, o amigo taciturno que nem direito a maiores menções teve no texto que poder-me-ia ter tornado célebre, tanto ou mais que meus amigos. Mas isso não houve, e morri no anonimato, da mesma forma que nasci, sendo aquele passeio a única situação da vida em que estive próximo a qualquer sombra de gênio, no caso, dois.

Digo-lhes que não era de todo um indigno de reconhecimento, escrevia algumas coisas, não muitas, mas nada que soasse poético ou sensível, nada que apontasse o caminho do céu ou que indicasse os meandros dos acherontes, por isso morri como vivi, no mais completo e compreensível anonimato. me faltou interesse para ir além e para me tornar qualquer coisa de vulto.

O que escrevo agora, em tom de carta além túmulo a la Brás Cubas, é o meu direito inalienável de dar a versão dos fatos. Ei-los, sem as tintas coloridas do poeta, sem o rigor empírico do cientista. Apresento-lhes o meu relato, o meu Verganglichkeit!

Ouça quem quiser, não será depois de morto que irão me laurear com o Goethe, faço isso pelo simples direito de fazê-lo, visto que a morte não me impôs maior silêncio do que aquele que gozei por toda a minha existência. Serei breve, qualquer prolixidade me irrita.

Pois bem, disse-nos Freud que o jovem e já famoso poeta se compadecia com as flores que logo morreriam, em seus arroubos sensíveis pensava mesmo que de nada adiantaria a mais linda rosa florescer como as tantas que testemunhamos naquele dia se o seu destino seria a inevitável morte. 

Penso que Freud construiu sua argumentação lógica a partir daí, então toda a teorização acerca do luto e do que perdemos, tudo sobre a tendência da nossa psychê a se afastar da dor, tudo ali está, naquelas linhas em que o magnânimo cientista nos utilizou, a mim e ao meu amigo sofredor, como meras testemunhas complementares para aquele passeio. Não me diverti nesse papel, confesso.

A partir das lamúrias do poeta se construiu uma teoria sobre luto e sobre perda  - e quão conveniente! 

Mas, o que pensou o "amigo taciturno"? O amigo  não poderia pensar outra coisa, eu era calado, alguns poderiam dizer que carrancudo, sofria de uma espécie de tédio em relação a tudo que não fosse relacionado aos pequenos prazeres da vida: comer, beber e dormir. Eu não era taciturno por vocação.
Era  ocupado entre esses três deveres que vivia a vida, e confesso que somente depois de muito esforço da parte do eminente professor, que me dispus a calçar as botas e a ir ver borboletas e "pássaros gorjeando livremente". Assim me foi feito o convite, e foi num tom convocatório que Freud o fez: "Vamos aproveitar esse belo dia de verão!" - disse-me, com exclamação e tudo o mais que soasse convidativo.

Ao ouvir aquela frase ser proferida virei para o lado e recostei a cabeça no travesseiro, pensei em dispensar o meu amigo cientista, e entre um bocejo e outro, fui convencido de que o passeio seria curto e apenas um pretexto para conversarmos sobre questões importantes, como as que se provaram de fato urgentes - estávamos vivendo em um período estranho em que tudo soava bélico e ameaçador. 

Nem isso me animava, mas um pouco de socialização não me era de um todo  desagradável. 
Foi apenas no caminho para os bosques que Freud me disse que Rilke iria nos acompanhar - e eu, sabendo antecipadamente desse fato não iria me dignar a calçar as botas, sequer levantaria da cama, pois sabia que o que me aguardaria seria uma série de lamentações e soluços infindáveis, o que, de fato, ocorreu.

Se Freud a tudo analisava e rascunhava em seu caderno a que poucos podiam ter acesso - e eu não era um deles, Rilke se deixava comover pela mínima mariposa que cruzasse com seu olhar, o vento parecia exercer sobre aquela atormentada alma uma espécie de fascínio e tudo parecia caber em suas rimas e estrofes. Quanto a mim...eu estava cansado, mais "taciturno do que nunca", Freud diria, mas, na verdade, mais desejoso do que nunca que aquele dia terminasse. 

Da pena de Freud podemos ler:

 "O poeta admirava a beleza do cenário que nos rodeava, porém não se alegrava
com ela. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava condenada
à extinção, pois desapareceria no inverno, e assim também toda a beleza humana e tudo de belo e nobre que os homens criaram ou poderiam criar" (FREUD, 1916, p.186).

Chamo atenção ao jovem leitor para o fato de que Freud nunca foi merecedor de um prêmio científico por sua obra, embora tenha sido merecedor de uma prêmio por sua...Literatura! Daí não precisa ser um gênio para deduzir que a seara a qual pertencia herr professor era, na verdade, o domínio dos imortais, dos homens das letras, e eu não sei porque insistia em fazer ciência.

 Por algum motivo alheio a seus maiores desejos, Freud não convenceu por sua ciência, não convenceu o mundo acadêmico, mas nem por isso foi menos célebre.

Sobre o sensível poeta, todos já sabem, o que me faz pensar que eu sou a verdadeira sombra nesse passeio, dos três, o menos célebre, o menos capaz - talvez - mas uma coisa talvez não possam me tirar agora: a sinceridade e a objetividade com a qual narro os fatos - isso falta à pena dos meus amigos.

Já estando eu morto há muito tempo, não tenho interesse em reconhecimento póstumo, nem nisso acredito. Como alguém que nada tem a perder, tendo já perdido o fundamental, tenho o único compromisso com a realidade  e com a verdade dos fatos, sou um embaixador da Verdade. E  nela vou me fiar para que saibam um pouco sobre aquele dia, aquele passeio, meus amigos e, sobre mim.

A bem da verdade, o poeta não admirava a beleza no cenário de maneira inerte, ao contrário do que pensava Freud, ele se alegrava sim, apesar da transitoriedade das flores, das plantas, dos pássaros a nos visitar de quando em quando, o que Rilke mais fazia era se admirar e exaltar a natureza, numa alegria quase incontida, ouso dizer que uma alegria bizarra que logo se transformava em lamúria e em choro - sobre essas terríveis oscilações de humor do poeta não ficamos sabendo por meio do relato oficial.

Se àquela época já  houvesse tal coisa como uma Neurociência, diria que Rilke sofria de transtorno bipolar: seus arroubos de felicidade histérica me irritavam em elevado grau e eu já me sentia compelido a me tornar cada vez mais "taciturno", e , repito, não por uma disposição romântica qualquer, mas pela simples intenção de me retirar daquele lugar e não ouvir mais um ser tão volúvel como aquele a quem a mesma cotovia poderia fazer rolar na grama numa espécie de alegria pueril para, logo em seguida, provocar os maiores soluços que somente alguém que sofre em demasia poderia experimentar - era um louco, um delirante e estar em sua companhia seria a maior das torturas.

Demovê-lo da ideia de perseguir passarinhos e de cumprimentar o sol era impossível, tão impossível como conter suas lágrimas, o seu convulsionar diante do despetalar de uma margarida me provocou a mais profunda ira e isso foi a gota d'água. Vê-lo soluçar e a repetir blasfêmias diante da flor despetalada me fez saber que àquele lugar eu não pertencia, e foi assim que o passeio acabou: fui embora para não mais me atormentar diante de um patético ser infantil e de um inerte e frio cientista.

Agora sabemos que fidelidade aos fatos nunca fora o forte de Freud. O homem nasceu para a Literatura, mesmo que tenha insistido na Ciência.

Poderia lhes dar toda uma nova versão, mais objetiva e fiel aos fatos do que as do meu amigo cientista, mas por falta de interesse não o faço, quero me recolher logo ao sono sepulcral e, de fato, nada lucrarei com isso. Ou irão publicar a minha versão dos fatos ocorridos naquela paisagem de verão? Irão, por acaso, apagar dos registros o tal Vergänglichkeit freudiano para dar razão ao meu relato? Inocente não sou, e não me interesso em fazer de Freud meu rival, sem dúvida ele merece repousar em seu leito célebre, deixem-me aqui no esquecimento que sofro menos ataques - ninguém zomba de um defundo desconhecido.

Com isso, limito-me a dizer o meu lado, apenas. Estava eu taciturno pensando em tudo que deixara na cidade e que não poderia rever naquele dia, naquela ocasião?

O espetáculo patético de Rilke me irritava tanto ou mais do que o calor infernal que fazia naquele dia. Os rumores de guerra me tiravam o sono, apesar de  sono ser algo essencial em minha vida, pois nunca fugi ao encontro de Morfeu. 

Toda aquela ideia de passear, sob aquelas condições climáticas me tornavam cada vez mais impaciente e o único motivo disso era uma mistura de tédio, irritação (calor insuportável somado à histeria alheia) medo diante da ameaça da guerra que viria a destruir tudo que a civilização havia construído, enfim, aquele não seria um bom dia para passear. No entanto, esse turbilhão de sentimentos guardava para mim, pois nunca fui homem de transparecer os sentimentos através da face, isso deixo para Rilke.

Não estava taciturno por conta da flor que nascia para morrer, não estava encastelado em mim por conta de qualquer vocação para o Sturm und Drang,  tédio era meu nome, e eu não desejaria outra coisa do que fugir daquele lugar bucólico que me dava ânsia de vômito.

Da transitoriedade nada penso porque não me foi dado o direito de pensar, ao menos no texto de Freud. Se Rilke não se encantava totalmente com a flor que brotava e com o espetáculo do sol se pondo, eu de mim sei apenas que o que muitos julgavam como ensimesmamento eu julgava por preguiça, talvez a minha mais verdadeira vocação.

Cansado de não fazer nada eu estava, indisposto me tornei a cada vez que um raio de sol penetrava os poros da minha pele tão fustigada pelos pequenos prazeres aos quais me dedicava com afinco. A companhia de Freud já não me era agradável naquele dia, imaginem a de um bebê chorão a questionar sobre a beleza, sobre a efemeridade das coisas que nasceram para morrer. 

Se ainda tenho direito a algo dizer, digo que não tenho problemas com o luto e com a substituição de objetos libidinais - para usar o jargão do célebre professor. Acho bom que tudo que vive um dia morra, pois assim os mesmos pássaros não nos irritariam todos os dias, as mesmas flores nasceriam em nossos quintais, sem surpresa, sem novidade. Tudo que é vivo morre, e da morte só restará o pó. Se a guerra nos destruiu foi com o propósito de nos fazer deter, e se a ela não podemos resistir, melhor mesmo será sucumbir. Não, não tenho grandes questões com a morte, e a beleza sempre me soou enfadonha,a feiura, com seus espetáculos e bizarrices é genial por quase tocar  o impossível e é por isso que o feio sempre me atraiu mais do que a beleza que fazia meu amigo poeta suspirar e chorar, e chorar...

Não é necessário chorar porque o choro nada resolveu na História da humanidade, porque não foi chorando que o homem se viu na obrigação de inventar a roda, há a necessidade e isso basta para que se construa algo diante do que já morreu. Chorar o morto não o traz de volta; a flor que morre hoje já vai tarde.

Se Freud dizia que depois da guerra haveria de nascer uma nova nação mais forte, mais sólida, eu mesmo penso que se a destruição não fosse impulso suficiente para nos manter de pé, que nos deixasse viver entre as sombras, porque, certamente não seríamos um povo digno de viver, portanto, aos mais fortes, a vitória, ao vencedor, as batatas, meu amigo de além túmulo diria.

Sendo assim, encerro por aqui minhas considerações, sobre o episódio romanticamente narrado por Freud, dizendo-lhes uma única coisa: tudo que é vivo morre e ainda bem, pois a morte me parece muito mais interessante do que aqueles odiosos momentos que vivi entre dois amigos, um patético demais para ser capaz de narrar com clareza o que se passou, outro pretensioso demais para entender que a pérola das coisas mora na concha da objetividade e nada deve ao subjetivismo maldito.

Para mim, aquele foi apenas um dia terrivelmente quente em que tive a malograda ideia de aceitar um convite para passear.

segunda-feira, junho 29, 2015

12 provas inquestionáveis de que Los Hermanos foram influenciados pela Psicanálise

Quem é fã de Los Hermanos certamente se identifica muito com as letras da banda. Segundo Maria Ribeiro, diretora do documentário “Esse é só o começo do fim das nossas vidas” (2014), a banda foi responsável por espalhar um discurso amoroso entre as pessoas, há toda uma vibe “all you need is love” nas músicas dos quatro rapazes de...enfim, dos quatro rapazes barbudos e isso não poderia passar despercebido.

Há um fato desconhecido por muitos e aqui o revelo para quem não saiba: há uma grande inspiração por trás das letras de grande repercussão da banda -  e não estamos falando de Beatles.

Nesse momento alguém poderá se remeter à figura mítica de Anna Júlia, figura que se tornou conhecida em todo território nacional por volta dos já longínquos anos 2000. Engana-se, caro leitor e amante de Los Hermanos. Não é Anna Júlia, nem Aline, nem Bárbara, nem Melissa, não é nenhuma dessas.

A grande inspiração de Camelo e Amarante em suas composições é o discurso psicanalítico. Pasme você.

Se você ignorava o fato da dupla mais famosa da indie music brasileira ter compartilhado suas mazelas com analistas, jorrado lágrimas sofridas em tantos divãs por aí, acompanhe atento algumas provas cabais que não vão deixar dúvidas de que as letras da banda têm sim muito de Psicanálise, sobretudo no que tange aos desenvolvimentos freudianos e lacanianos.

As pistas estão em muitas das letras e talvez o querido leitor, tomado pelo arrebatamento típico de quem é fã, não tenha percebido o recado nas linhas e nas entrelinhas, pois muito tomado estava de um afeto indomável: A peste freudiana estava à solta e Camelo e Amarante foram responsáveis por traduzi-la em música, nos seus acordes chorosos, e até mesmo nas melodias mais bonitas, há um pouco de castração, sim, inevitalmente. Mas há um alento: somos todos falasser, somos seres de linguagem, e que bom que existe a música!

Se você não está convencido disso, duas palavras talvez te tragam alguma iluminação: Cara estranho. Não há retrato mais digno da castração do que nessa composição que narra uma pessoa desalojada em seu ser, desassossegada em seu corpo-carne à mercê do gozo alheio. Cara estranho é sujeito castrado, e Miller concordaria com isso (Vale dizer que também o tal “Cara valente” é tão castrado quanto, mas talvez, por encenar tão bem possuir o falo, possa parecer um homem mais viril, na verdade, o cara valente é o mesmo cara estranho).

Nesse momento talvez você esteja cantarolando as canções em sua mente, e quem sabe até concorde comigo. Não se tratando do caso, trago mais algumas evidências que esclarecem o argumento que venho sustentando até então: rolou muito divã e a indie music deve muito à Psicanálise.

Iniciemos pelo começo de tudo, com a famosa Traumdeutung lançada ao mundo em 1900. Poucos devem lembrar de algo anterior ao famigerado sétimo capítulo desta bíblia psicanalítica, mas cabe aqui uma alusão ao prólogo tirada de “A divina Comédia”: “Flectere si nequeo Superos, Acheronta movebo”, que nada mais significa do que “Se não posso comover os deuses de cima, moverei o Acheronte”.

À frente de tudo e de todos, Freud entendia que havia um sentido no sonho que precisava ser descoberto, e isso era polêmico, era necessária uma dose de coragem para falar de tal assunto devido ao zeitgest da época, Freud mexeu e remexeu o Acheronte e lá achou muita coisa que falava à alma e que hoje vemos musicada.

Tal como uma escrita hieroglífica, o sonho se mostra confuso e desconexo, cabendo ao analisante amarrar os fios que podem fazer da experiência onírica um relato inteligível. Como Freud já dizia que os poetas e artistas o precederam na descoberta do inconsciente, deixá-los-ei apenas com as sábias palavras “loshermânicas”. Seguem minhas provas, são apenas doze, e a leitura do que vem abaixo requer coragem e uma dose de empenho:

(1)

“[...]O que é um sonho ruim,
E o que é um sonho bom.
Que diferença? a vida é igual,
assim e eu não sei
Eu não sei...Quem bate aí?
Se é pra eu te ver então deixa eu dormir.”

Como se nota facilmente, “Os Pássaros” parece relatar a confusão do sonhado diante do sonhador, a pérola virgem na ostra do mar psicanalítico. A confusão, o pesadelo, a realização do desejo parecem tomar conta de Amarante – será que não podemos notar em sua voz esse mesmo tom perdido, angustiado?

Conte, amigo, conte as vezes em que se nota nas composições do autor o mesmo tom desconsolado - e frequentemente blasé – restos de imaginário não analisado?

Dificuldade em remexer o próprio Acheronte, Amarante? “Não sei mais e é um sonho bom ou ruim, sei apenas que isso fala de mim” – poderia complementar Amarante (inclusive, há rumores que essa parte da letra foi censurada, como uma espécie de censura onírica, jamais saberemos, mas já podemos antecipar aí um trabalhinho que sem dúvida foi executado com a ajuda dos nossos velhos conhecidos mecanismos “deslocamento” e “condensação”, não sejamos tolos, todos vocês já devem saber disso...)

Não sabemos de fato se a letra passou pela censura onírica, podemos imaginar, pelo tom de desencanto e dúvida que há uma elaboração nesse material, estamos diante do discurso manifesto que não lembra mais o sonho sonhado; eu poderia apostar que é fruto dos percalços que um analisante encontra em seu percurso...

O desencanto pela vida, o não saber, e, por fim, a certeza/clichê freudiana: que em sonhos poder-se-á realizar o desejo por tanto tempo acalentado: a musa de Amarante aparece em seus sonhos, então, o melhor momento será mesmo a hora de dormir.

Se isso não for uma licença poética da célebre frase freudiana “O sono é o guardião do sonho” eu não sei mais o que é.

Se você tem alguma dúvida, peço que prossiga nessa leitura:

(2)

“Como pode alguém sonhar
O que é impossível saber”

Diante de tão impactante lição que a canção psicanalítica “O vento” nos traz, precisei reparti-la em dois segmentos, para melhor fundamentar meus argumentos. Sinta o choque, e a presença viva de Freud no trecho acima referido:

 “Como alguém pode sonhar o que é impossível saber”.

Fico estupefata e creio que também o indie leitor ficará ao analisar essa frase com lentes de aumento. Veja se não há um quê de Traumdeutung novamente? Vejo, inclusive, menções à Lacan, nesse pequeno, porém tão profundo trecho poético.

Se estamos já tão acostumados com a virada cartesiana que Lacan faz ao promover o clichezão “sou aonde não me penso”, podemos também nos lembrar do tão famoso “o sujeito não é senhor em sua própria casa” – e Tania Rivera ainda diria não saber nem se o sujeito tem casa. 

Ora, se o sujeito tem casa ou não, não nos é importante nesse momento, pense apenas nessa pérola que  promove o antagonismo entre o que se sonha versus  o que se sabe.


Los Hermanos já parece deixar clara a influência psicanalítica ao fazer isso, ao nos colocar diante desse antagonismo que ilustra o que é a Psicanálise em geral.

Sonho aonde não me penso, portanto, sonho o impossível de ser sabido, estamos falando de lógicas diferentes, portanto, isso já nos levaria, de graça, à Lacan e toda a noção que está implicada na Psicanálise: há um saber inconsciente, um saber não sabido, disso Amarante já sabe há tempos.

Perceba a genialidade da banda ao trazer esses conceitos tão profundos para a simplicidade da canção. Lembre-se sempre que o sonho é a loucura do homem são.

* Bônus: “Eu sei que ainda vou voltar, mas eu quem será” (O velho e o moço)

(3)

“Não te dizer o que eu penso
Já é pensar em dizer”
[...]
Sinto que é como sonhar
Que o esforço pra lembrar
É a vontade de esquecer”

 Está ficando chato, não é verdade? Toda essa preocupação de Amarante com o conteúdo onírico, me parece claro como um dia de sol que essa canção foi pensada – e quem sabe até composta – em um divã. Amarante aqui faz novamente alusão à divergência entre desejo e o querer consciente, porém, se ainda não se tornou claro o suficiente, à guisa de compreensão, didaticamente explicarei:

 Esforça-se para lembrar (consciente), porém há algo que se opõe a isso: há uma vontade de esquecer (mecanismo inconsciente).

 Vejamos aí outra coisa ou vemos mesmo o Verdrängung freudiano? A vontade de esquecer, Amarante, diga logo, nada mais é do que o mecanismo de recalcamento, que sabemos que não é necessariamente o mesmo que esquecer.

Todo vivente que assistiu ao menos uma aula de Psicanálise na faculdade saberá que existe uma grande diferença entre recalcamento e esquecido. Amarante apenas nos revela que existe um jogo de opostos: ora se esforça para lembrar, ora se entrega ao recalcamento. Cena primária, lembranças infantis , o caso Emma e a loja de roupas (presente na carta 52 e no Projeto de 1895).

Todos nós já estamos cientes de que as lembranças encobridoras tomam o lugar de algo maior, infantil e de origem sexual que fora convenientemente recalcado. As lembranças foram postas aí porque há algo recalcado.

Em palavras mais rasteiras: a lembrança encobridora é o esforço para lembrar; a vontade de esquecer é o mecanismo do recalcamento operando sobre o material mais antigo e, portanto, mais revelador do inconsciente. Gostaria de saber o sexual traumático de Amarante, e por que tanto apelo ao mundo onírico...


 (4)

“De onde vem a calma daquele cara?
Ele não sabe ser melhor, viu?
Como não entende de ser valente?
Ele não sabe ser mais viril
Ele não sabe não, viu?”

Se não me engano esta letra é de Camelo, uma criatura que, por suas letras, podemos pensar que vive às voltas com a castração. Aceitá-la, negá-la, ignorá-la? Tudo isso parece ecoar na cabeça do exímio compositor que, perdido diante da barra originária, entrega-se às suas canções.

Vejamos em “De onde vem a calma” o sujeito castrado e barrado diante de seu gozo quimérico, detido em seu desejo. O que resta a esse cara cuja angústia de castração tomou conta, a calma?

Recomendo um retorno à Freud, tal como o fez Lacan, para que possamos analisar melhor essa canção. Um sujeito castrado diante de um mundo hostil; não lhe sobrou dignidade, não lhe sobrou muita coisa, porém, para aquele que irá agora ter acesso à música completa, lhe digo que há esperança no que Camelo escreve, pois apesar do mundo ser hostil, o sujeito parece não desistir, nem ceder.

Vemos aí uma esperança de reaver a Coisa freudiana, Das ding reencontrada? Gozo não mais interditado? Mamãe? Sim! O sujeito, que não é viril (Quer algo mais claro que isso para chamar de desfalicizado?) irá, um dia, ser coroado rei de si mesmo – Cai o pano, lembra uma tragédia, hein?

Recuperar o trono, se apossar de mamãe, é isso que você quer nos dizer, Camelo? Recuperar mamãe depois de ter matado papai?

Ser coroado rei de si não seria uma óbvia e ululante alusão à Oedipux rex? Deixo essa com você...

(5)

“Hoje estou tão sozinho
Não sei mas o que fazer
A minha vida se acabou
Você se foi e agora não sei mais”

(6)

Faz tanta falta o teu amor...
Te esperar...
Não sei viver
Sem te ter não dá mais pra ser...
Assim”

(7)

Deus por onde você foi?
Cansei de procurar
Não posso mais te dar o pouco que sobrou
Eu tinha algum amor
Eu era bem melhor
Mas tudo deu um nó
e a vida se perdeu
Se existe Deus em agonia
manda essa cavalaria
que hoje a fé me abandonou”


Estamos agora diante de três canções que querem nos dizer algo especial: o que “Tão Sozinho”, “O pouco que sobrou” e “Quem sabe” têm em comum? O leitor desavisado diria “Sofrência”. Porém quero que você vá além de modismos musicais.

Para acompanhar a genialidade de Amarante/Camelo eu só sugiro ao indie leitor que recorra à letra freudiana mais uma vez, pegue lá em seu armário o volume XIV da edição Standard e busque o texto de 1915 chamado “Luto e Melancolia”.

Seu esforço será recompensado, pois nas primeiras laudas encontrarás o que foi dito, de formas diversas, nas três músicas. Diz Freud: “Os traços mentais distintivos da melancolia são um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de autoestima” (Freud, 1996/1917[1915], p.250).

Sobre o luto, Freud nos ensina: “O luto profundo, a reação à perda de alguém – a mesma perda da capacidade de adotar um novo objeto de amor (o que significa substituí-lo) e o mesmo afastamento de toda e qualquer atividade que não seja ligada a pensamentos sobre ele” (Freud, 1996/1917[1915], p.250).

Se você ficou confuso e não sabe diferenciar se Amarante e Camelo estão falando de Luto ou Melancolia, dou-lhe novamente a palavra de Freud: “No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio ego” (Freud, 1996/1917[1915], p.251).

Quando alguém diz que não sabe viver, que a fé o abandonou, estamos tratando aqui de um desinteresse total pelo mundo, não porque o mundo é vazio, mas o ego que foi apequenado, esvaziado.

O trecho “eu era bem melhor” nada mais é do que a prova cabal de que há um sentimento forte de baixa autoestima e isso tudo está no ego, o mundo está lá, eu apenas não tenho força porque já fui bem melhor, num outro tempo, quando tinha um amor – diria o restante da letra, mas nós já sabemos do que se trata.

Canções melancólicas que envolvem egos fragilizados, isso é mais do que dizer “Sofrência”, não é verdade?

Nas canções de “sofrência” existe algo relacionado ao corpo como palco do sintoma; há um apelo ao álcool para fazer frente a um sofrimento ou a uma situação penosa - é puro Lacan do Real.

 Vemos aí a toxicomania e a pulsão de morte enlaçadas, basicamente o sujeito goza em seu corpo e busca aplacar o sofrimento se entregando a subterfúgios.


Em Los Hermanos é a frustração sóbria que está presente, é o aguentar a frustração e a ferida narcísica, sem álcool, sem nada. Haja divã, haja lencinho de papel.

(8)

“Pois eu, eu só penso em você
Já não sei mais por que
Em ti eu consigo encontrar
Um caminho, um motivo, um lugar
Pra eu poder repousar meu amor”

Aqui vemos uma bela oportunidade de anunciar como Los Hermanos fugiram do lugar comum, pois ao conceber “Fingi na hora rir”, os compositores foram muito além da letra “água-com açúcar”, a melodia aprazível, que agrada aos ouvidos e que deve ter sido tema de muitos romances, revela algo muito mais profundo e de inspiração psicanalítica. Vamos subir um degrau no nível de dificuldade agora.

Em Lacan, sabemos que há todo um jogo encenado entre as posições masculina e feminina, um jogo intermediado pelo falo, que não é o pênis, mas sim, esse objeto imponente e majestoso, revestido de grande poder social mas que é totalmente quimérico.

Camelo encontra "um caminho, um motivo, um lugar”, e poderíamos dizer...”Um falo”? Se você duvida, basta abrir em qualquer página de “O Seminário livro 20” e verá que tudo não passa de uma falácia, um engodo: a posição masculina acha estar na posição feminina o falo que lhe falta e que supõe completá-lo: O feminino É o falo.

(9)

“Ouvi dizer
Que o teu olhar ao ver a flor
Não sei por que
Achou ser de um outro rapaz
Foi capaz de se entregar
Eu fiz de tudo pra ganhar você pra mim
Mas mesmo assim”

Se está me acompanhando e já está quase convencido de que as letras de Los Hermanos foram escritas atrás das páginas dos seminários de Lacan, eu só tenho que tornar isso cada vez mais evidente, com esse belíssimo argumento em favor do que foi dito em relação ao falo e à posição masculina diante do feminino: “A flor”.

Digo mais: desafio o leitor a substituir a palavra “flor” por “falo”. Há fortes rumores que as palavras foram trocadas propositalmente, e como as duas palavras servem como significantes relacionados ao sexual, deixaram “flor” para parecer poético e menos polêmico. A flor é, descaradamente, uma ode ao falo sempre buscado e nunca encontrado por ambas as posições.

Também em "A flor" ingressamos no enigma feminino e sua busca pelo falo  que lhe fora negado pela mãe tão má que é a mãe da menininha castrada (e que achou ser de um outro rapaz!).

Em suma: masculino e feminino se relacionam como se num palco estivessem, uma comédia, diria Lacan em “Televisão”: uma busca incessante no Outro masculino detentor do falo (a flor) perdido; a mulher busca no masculino o falo que lhe falta. Sendo, que...SPOILER!



  • Ninguém tem ou é o falo que falta a ninguém...tudo é engodo. Desilusão!

Apesar dessa descoberta, lembremos que Camelo pensa um dia recuperar das Ding; é, portanto, mais do que um romântico incorrigível, é alguém que tem esperança em se tornar rei de si próprio (toda a onipotência da majestade o bebê aí presente, pense no alerta de Freud!).

Sendo assim, fica fácil entender que esse endereçamento ao Outro que seja “seu caminho, seu motivo e seu lugar” poderia ser, na verdade, seu falo. Será Malu? Fica aí a questão, se quiser saber, recorra  ao cego Tirésias, recorra à esfinge se não quiser ser devorado. 

QUEM ÉDIPO É NUNCA PERDE A MAJESTADE.

(10)

“De perto eu não quis ver
Que toda a anunciação era vã
Fui saber tão longe
Mesmo você viu antes de mim
Que eu te olhando via uma outra mulher”

 Talvez esta seja a prova que faltava para o cético entender que há Psicanálise em todo repertório de Los Hermanos. Veja com seus próprios olhos e pense, sem algum esforço, se você já não sabe quem é essa outra mulher - ideal - que Amarante diz ver na mulher atual.

Uma dica? Mulher atual imagem da mulher atemporal, das ding, não há ainda um terceiro ursupador...


Ficou fácil, né?

Vou dar mais uma dica, essa mais específica ainda: “Identificação anaclítica”. Mais fácil que isso só se eu dissesse que a primeira letra do nome dessa mulher é M – Evitarei dizer mais.

(11)

“Dei pra ti as estrelas os peixinhos e as aves
Todas as montanhas nas escalas dei as claves
Todas as cancões que eu fiz, eu fiz pra ti princesa
Tudo de mais belo que encontrei na natureza”

Essa canção profundíssima do primeiro álbum, você deve dela lembrar, chama-se “Lágrimas sofridas” é por muitos cantada com uma gota de ódio e decepção, um certo azedume (para voltarmos ainda mais no tempo...) e deve ser considerada como uma canção raivosa, muito diferente das canções do último álbum, considerado “maduro” pelos fãs.

Veja você que essa divisão entre o que é maduro e o que é pop não parece corresponder ao conhecimento intelectual que a banda já demonstrava ali, no começo de sua estrada, ao menos não é o que parece.

“Lágrimas sofridas” nos apresenta talvez o mais belo clichê lacaniano “Amar é dar o que não se tem”. É verdadeiramente isto que está em jogo nessa música que fala direto ao coração: um sujeito que deu a sua bem amada coisas materiais, tais como seu sapato, seu vestido, mas não esqueceu de lhe presentear com o intangível: "as estrelas, os peixinhos e as aves”.

“O dar o que não se tem” fica ainda mais claro na estrofe seguinte:

"TODAS as montanhas, nas escalas dei as claves; TODAS as canções que eu fiz [...] TUDO de mais belo que encontrei na natureza".

Vejamos que muito embora se trate de coisas conhecidas e apreciáveis, é evidente que o narrador/cantor não possui todas as montanhas, os peixinhos, as aves; é patético, inclusive, pensar que alguém seria dono das estrelas. No máximo, todas as canções que ele fez, porque na verdade, ele quis dizer TODAS as canções do mundo e toda a beleza da natureza – porque o amor é hiperbólico mesmo.

Ou seja, dar o que não se tem a alguém que não o pediu. O resultado disso é melancolia, já vimos aqui e parece coincidir com a ordem cronológica dos álbuns: primeiro o amor desmesurado, louco e infantil, e depois a melancolia (praticamente todo último álbum).

(12)

“Quem te vê passar assim por mim
Não sabe o que é sofrer
Ter que ver você, assim, sempre tão linda
Contemplar o sol do teu olhar, perder você no ar
Na certeza de um amor
Me achar um nada
Pois sem ter teu carinho
Eu me sinto sozinho
Eu me afogo em solidão”

Por último, mas não menos importante, eu não poderia deixar de citar a linda “Anna Julia” para trazer à baila aquela que foi considerada a única contribuição original de Lacan à teoria psicanalítica: ele mesmo, o brilhoso e comovente petit a. O objeto pequeno a ou simplesmente (a).

Lacan, em seu seminário da Angústia trata do objeto a como o que resta da relação entre sujeito e Outro (lê-se grande Outro), porém o conceito ganha vida e outras significações ao longo dos outros textos de Lacan e só podemos dizer que o objeto a é tudo aquilo que cai do Outro, sempre inacessível.

Como é muito provável que Camelo e Amarante andem por aí com os seminários de Lacan debaixo do braço, na fila do pão, eu sei que também devem ter lido Miller, Nasio, etc (nunca subestime a intelectualidade de uma banda indie).

Irei recorrer à Nasio, porque tenho certeza que as folhas de “Um psicanalista no divã” serviram de rascunho para as primeiras estrofes de Anna Julia, esse clássico contemporâneo.
Vamos à Nasio:
O amante apaixonado se sente subitamente arrancado de si mesmo, despojado de sua liberdade e submetido ao sortilégio do amado. Ora, como explicar o mistério do charme? Pois bem, somos incapazes disso. [...]O objeto a é portanto o nome dado à presença indizível e inebriante do amado, aquele que, em meu coração, o torna insubstituível (Nasio, 2003, p.138-139)

É, eu não tenho muito a dizer, mas quem quiser se certificar de que em Anna Júlia se trata do objeto a, volte à letra, parece pueril, infantilóide, cansativa, alguns dirão que não representa toda a sonoridade a  maturidade da banda, mas, aí onde pensas haver apenas um hit pop, encontrarás uma grande ode  à invenção lacaniana.

Anna Julia é o objeto a, é a mulher fetichizada na fantasia masculina, cantada e retalhada, eu seu olhar e em seu charme magnético. Isso é pura poesia e todo aquele que maldiz essa canção não sabe o que está fazendo.

Essas são apenas 12 provas que elenquei para que fique claro ao público que Los Hermanos não é apenas uma banda cujo compromisso foi espalhar sua melancolia e seus acordes nostálgicos aos nossos ouvidos. 

Há muito mais do que melodrama e corações partidos por Alines e Bárbaras em suas canções, há muito mais do que os significantes “mar”, “barco” e “morena” (os três valem uma análise); há muito édipo, muito Outro, muito objeto a, muita das Ding e quem disso ainda duvidar, aconselho ouvir a discografia completa com mais atenção, quem sabe em companhia de Freud e Lacan. 

Só lhe digo mais uma coisa: as barbas, estas não são por acaso (vide os judeus vitorianos...).





quinta-feira, fevereiro 19, 2015

As Solteironas (por Carmen da Silva, fevereiro de 1974)

Solteirona é uma palavra pesada, com uma conotação precisa, às vezes amarga, às vezes maliciosa, que ecoa socialmente como uma punição à mulher que vive sozinha. Carmem traça três perfis distintos, três maneiras de uma mulher enfrentar esta situação: aceitando, e se tornando uma solteirona irrecuperável; ou mulher realizada, ligada à vida e às coisas; ou o tipo solteirona por atitude



Matéria original
Todas vocês seguramente conhecem alguma solteirona. Talvez ela não tenha mais de 30 anos (às vezes nem isso) e seu aspecto seja excelente; mas, mesmo assim, ela já mostra as características da solteirona. Aliás, se vocês forem boas observadoras, já terão descoberto esses traços desde que ela tinha 18 anos. Ela é uma pessoa cheia de pudores e medos; tem tendência a achar que tudo está mal, abstém-se de mil coisas por causa da possível opinião dos outros ( que nem estão reparando no que ela faz) e critica com mal disfarçada acritude os modos das que são sexy, espontâneas, flertadoras, admiradas, populares. Às vezes posa de indulgente: ‘Não é que eu reprove, mas eu não tenho temperamento para agir assim’ – e seu tom está insinuando quem está certa é ela, ou melhor, que as outras estão muito erradas e são ‘salientes’ demais. Nossa solteirona é um pouco beata, bastante piegas e muitíssimo apegada aos pais, sobretudo à mãe; basta um gesto meio displicente desta para afundá-la na fossa; ela fica deprimida como uma criancinha cujo universo ainda girasse exclusivamente em torno das atitudes maternas; se os pais são mortos, ela cultua a memória deles; não é apenas o carinho e a gratidão normais, senão a dedicação fundamental que os transforma em eixo da vida dela. Exigente demais com as amigas, nunca dá tanto quanto recebe, nunca se considera obrigada a tomar uma iniciativa, a dar o primeiro passo: fecha-se em copas e espera que a outra se aproxime, chame, convide, insista. 


Ciumenta e absorvente, sente-se traída quando a amiga tem outros interesses, outras relações afetivas, de amizade ou de amor, que absolutamente não a excluem, mas que ela, em sua hipersensibilidade, considera como uma escolha que a desfavorece, uma exclusão: quer ser a única importante na vida dos outros – e nada faz para conquistar esse lugar. Amargurada, só sorri com meio lado da boca; parece estar sempre insinuando: ‘Claro, para você é muito fácil: com um marido ao lado...’ – como o pobre faminto que olhasse de fora o banquete alheio. Nunca pensa em marido em termos de compartilhar a vida, as responsabilidades, os prazeres e as vicissitudes: pensa só em termos de proteção e apoio, de jogar-se como um fardo nas mãos de alguém.


Convidada para uma festa ou reunião, logo esquece que se divertiu, conversou, brincou: a única coisa que lembra é que na hora de ir embora cada um pegou seu par e ela não tinha par; foi levada em casa ( com toda a gentileza, com toda a consideração) por um casal amigo que lhe deu carona e isso envenena retrospectivamente a noitada. Ela tem inveja da felicidade – real ou suposta – dos outros e essa inveja lhe estraga todos os bons momentos; não desfruta do que tem e passa o tempo lamentando o que não tem.


A solteirona triunfante, a casada

Se nossa solteirona é mulher de sucesso em seu trabalho, em seus negócios, o mais provável é que ela e torne masculinizada, da forma mais crua: voz áspera, gestos abruptos, atitudes de quem não admite brincadeiras, conversas puramente intelectuais ou comerciais, impaciência com os interesses, que ela acha frívolos, das outras mulheres; será a amiga dos maridos, que só tolera as esposas com  um grau visível de desdém. Mas talvez vocês conheçam uma solteirona casada: ela existe, responde ao tipo descrito e o erro não é da natureza, e sim, do Registro Civil. Por assim dizer, ocorreu uma mancada, e a solteirona foi parar onde não tinha nenhuma vocação de estar. Tem infinitas queixas contra o marido: nenhum homem está em condições de dar – ou suportar – o que ela espera dele. Sua atitude é de dependência viscosa ou de dominação castradora. Para o olho sagaz, a coisa é clara: ela continua sendo a ‘filhinha de mamãe’ com relação ao marido, ou é para ele a mamãe de um ‘filhinho’ irresponsável e imaturo – nos dois casos se sente frustrada, pois nenhum homem, por mais neurótico que seja, consegue cumprir totalmente suas exigências regressivas. Ela não se casou para ser feliz ao lado de um homem, senão para repetir com ele, na forma passiva ou ativa, uma relação materno-filial em moldes infantis: a única relação de que ela é capaz.


Quando uma mulher, com vocação de solteirona, se casa, é comum que acabe se desquitando; e aí todos os amigos sagazes têm a impressão de que ela encontrou seu verdadeiro caminho; apesar de todos seus ressentimentos, está mais tranquila, mais ‘normal’, sem um homem.


A celibatária

Vocês conhecem uma celibatária? Uma mulher que é solteira além da idade, sem ser solteirona. Talvez não, pois o tipo é bem mais raro entre nós: os preconceitos de nossa sociedade não são propícios ao seu desenvolvimento. Mas ela existe e é uma personalidade bem definida. Vive de seu trabalho e tem a sorte de adorar seu trabalho – ou então, se esse for o caso, consegue suficiente tempo livre para fazer algo que adora e, com isso, se sente realizada. Mora num apartamentinho cheio de bossa e repleto de  amigos que se sentem bem aí. As outras mulheres, casadas ou solteiras, correm para ela para contar-lhes seus problemas e serem confortadas, tendo ouvido a palavra cordial e compreensiva de que necessitavam. As crianças são vidradas nela: a tia que todas desejariam ter.

Os homens procuram sua companhia, acham-na estimulante, divertida, generosa, sempre pronta a ouvir com simpatia uma confidência difícil, a dar o conselho sincero e desinteressado ou, se for o caso, a debater opiniões com altura e objetividade. Dela dizem os maridos das amigas: ‘Puxa, não compreendo como  é que Fulana continua solteirona: será que os homens não têm olhos?’ – e as respectivas esposas aprovam, sem o menor ciúme. Ela pode ter ou não ter um amor: isso depende de sua escolha. E não é raro que, já bem avançada nos 40, ela ainda tenha um bom número de candidatos na fila de espera. 


Se chega a decidir-se por algum deles, não é por medo de terminar sua vida sozinha: ela sempre ‘se virou’ e nunca sofreu de solidão; é porque achou que dá pé. Isto é, que sua vidinha feliz será ainda mais feliz com ele. E o escolhido vai esfregar as mãos de contente, sentindo-se um privilegiado. Nunca pensará: ‘Peguei alguém que ninguém mais quis’, mas sim: ‘Ela passou anor recusando uns e outros para finalmente se decidir por mim: sou o maior’


A vidinha pedida a Deus

 Confesso que fico profundamente penalizada ao ler cartas de mulheres solteiras que já estão acima da considerada ‘idade casadoura’, morando sós ou com os pais e me escrevem queixando-se de solidão, vazio, necessidade de amor, frustração por não ter ao lado marido e filhos, falta de objetivos, vontade de morrer. 


Elas me fazem pensar no mendigo que tem milhões escondidos no colchão e vive uma existência miserável, alimentando-se de sobras e abrigando-se com farrapos. Pessoalmente, casei tarde e antes morava sozinha; sei por experiência própria o que é a vida de celibatária, curtindo seu apartamentinho, seus amigos incondicionais, seus bons papos, sua turma sempre disponível, seu telefone sempre chamando – enfim, uma vida plena de afetividade, comunicação, diálogo.

Posso garantir que desfrutei cada minuto dessa existência. E se bem não a lamento, agora que entrei em outra, não é sem saudades que relembro minha vidinha de celibatária. Eu trabalhava fora e a empregada vinha fazer a limpeza durante as horas em que eu não estava em casa; assim, eu encontrava tudo em ordem sem ter preocupações domésticas e sem ver minha intimidade invadida por uma estranha.


Fazia minhas refeições em restaurante e não tinha de pensar em compras, cardápios, etc.

Às vezes o dinheiro ficava curto e eu rondava pelas redações, oferecendo matérias freelance para desapertar o orçamento. Amigos dos dois sexos vinham todas as noites, e juntos discutíamos a arte, o futuro do mundo. Quem quiser um panorama mais completo desse estímulo de vida, leia A força da Idade, de Simone de Beauvoir; aí poderá ver o que  é uma existência baseada em objetivos próprios, mas sem carências afetivas; livre de amarras convencionais e aberta aos acontecimentos, aos contatos, às surpresas.


É certo que nem todas podem ter ao lado um Sartre: mas quantas o desejam? Nem sempre é preciso tanto para satisfazer – e satisfazer plenamente – o nível das próprias aspirações.

Enfim, ao ler uma dessas inúmeras cartas que dizem: ‘Tenho xis anos, sou solteira, vivo do meu trabalho e não me conformo por não ter ao lado marido e filhos, sofro uma solidão horrorosa, sinto-me diminuída, inferiorizada, vazia, infeliz’, é com muito de reação pessoal que penso: Puxa, essa moça tem a vidinha que qualquer uma pediria a Deus – e ainda se queixa?


A diferença

As circunstâncias externas são praticamente as mesmas nos dois casos. O que as distingue é a atitude emocional de cada uma. A celibatária não tem pressa de casar e nem sequer decidiu a priori se um dia chegará ao casamento: optará por ele ou não, de acordo com suas inclinações, quando chegar o momento oportuno. Não está pensando que suas amigas casaram e ela não; imagina que, se as outras já casaram, é porque tinham para isso boas razões que ela ainda não tem. Não olha o par com inveja ou ciúme; ao contrário: se a amiga ou o amigo casou, seu parceiro (ou parceira) é mais uma amizade que lhe vem ‘ de quebra’.


Frustração dos instintos maternais? Isso é relativo, muito fomentado: a sociedade espera que a mulher que não tenha tido filhos na idade convencional seja infeliz e frustrada. Os homens saltam muito rápida e arbitrariamente à conclusão de que assim é – a tal ponto que, às vezes, fico pensando se eles não projetam nela sua própria frustração pela incapacidade biológica de procriar. A verdade é que a vida oferece muitíssimas outras satisfações além da maternidade: o amor, a tarefa, a realização, a criatividade, a amizade: e essas tradições se substituem entre, si, umas compensam a ausência de outras. O único que não é possível é viver sem nenhum tipo de gratificação: mas quando vários são possíveis, a pessoa bem integrada não tem nada a lamentar. A celibatária não se sente incomodada pela falta de filhos ou de um homem a seu lado, assumindo a vida por ela, responsabilizando-se por ela: é mais do que capaz de assumir-se e responsabilizar-se sozinha.


Enfim, a celibatária é uma mulher que resolveu construir sua própria existência, ser uma pessoa por si mesma. Isso de nenhum modo exclui o amor de um companheiro, mesmo que ele não seja o definitivo; e também não exclui a escolha de um companheiro definitivo, em qualquer etapa: o casamento não está eliminado de suas cogitações, sem ser, entretanto, a finalidade primordial de sua vida. A celibatária se organiza a partir de  dados reais: o que ela é, o que ela tem em si, o conjunto de  sua situação, as potencialidades que ela pode desenvolver – sem idealizar o que poderia ter sido. Em resumo, ela possui suficiente maturidade emocional para enfrentar o desafio.


As limitações do casamento

O casamento não é nenhuma prisão. Mas a verdade é que, nas condições vigentes na sociedade patriarcal, mesmo um casamento feliz e harmonioso cerceia em muito a liberdade o desenvolvimento da mulher. Por mais que numa união desse tipo não haja ciuminhos tolos nem restrições absurdas à liberdade de ação da esposa, os próprios preconceitos sociais pautam sua conduta em moldes rígidos, privando-a de seguir certos impulsos, tomar atitudes espontâneas, permitir-se gestos e modos menos circunspectos, que só seriam tolerados numa solteira. Ela se submete a essas imposições em atenção ao bom nome do marido, pois, se a mulher não se conduz conforme as convenções, todo mundo passa a chamá-lo de ‘coitado’ ou ‘boboca’.


Por outro lado, recai sobre ela a carga da rotina doméstica, com o peso das preocupações materiais, miúdas, rotineiras embrutecedoras, embotando-lhe o cérebro e absorvendo-lhe o tempo e as energias que assim são desviados de finalidades mais criativas.

E não me digam que a solteira que mora só, numa pensão ou apartamentinho, tem os mesmos problemas: todo mundo sabe que seu estilo de vida, no que tange às tarefas domésticas, é infinitamente mais simplificado. E nem poderia ser de outro modo, pois ela tem de trabalhar para sustentar-se.


Tudo isso sem falar nos filhos. Aqui nem vale a pena pormenorizar: qualquer mãe de família sabe das milhares de obrigações de seu dia-a-dia, da impossibilidade de dispor de suas noites, da atenção constante e dos inúmeros cuidados materiais – não falo dos outros – que ela tem de dispensar às crianças.


Nessas condições, eu me pergunto: se uma mulher não está apaixonada por ninguém em particular – uma pessoa cuja companhia lhe pareça compensação mais do que suficiente por tudo de que ela deverá abdicar – , se ela se mantém sozinha com seus próprios recursos: se ela tem um vasto campo de possibilidades de realização, afetiva e social, por que é que ela não desfruta dessa maravilhosa liberdade e vive amargurada pela falta de marido, pela falta de amor?


O cárcere interior

Em realidade, quando falo de liberdade, refiro-me somente à celibatária. A solteirona, embora com as circunstâncias a seu favor, não a tem, porque vive encarcerada dentro de si mesma. Dentro de sua neurose, de sua própria incapacidade de dar amor.


Sei que as atingidas vão protestar. Pois se elas não fazem mais do que pensar em amor, o amor é sua ideia fixa, seu desejo obsessivo; sentem-se asfixiadas de amor sem objeto.

Quem tem amor de verdade para dar, sempre recebe amor em troca. Pode haver um intervalo, uma pausa, um período em que essa pessoa não esteja apaixonada por ninguém em especial; mesmo assim, mesmo assim, ela continua dando amor aos parentes, aos amigos, à tarefa que realiza, às atividades que lhe agradam, às ideias ou causas em que crê. E por fazer tudo isso com amor, ela se sente fundamentalmente feliz, mesmo que o lugarzinho privilegiado em seu coração esteja temporariamente desocupado. Essa momentânea ausência de um objeto específico de amor não a angustia: segura de suas disponibilidades, de suas reservas afetivas, não precisa estar sempre provando a si e aos outros que as possui.


No caso da solteirona, esse amor encruado, sem extravasão, só lhe traz frustração, rancor contra os homens que não a procuram, inveja das mulheres que tiveram mais ‘sorte’, ressentimento pela felicidade alheia, senso de exclusão injusta, de barreira que as separa do resto do mundo. Vê-se, pois, que esse chamado ‘amor’ só se traduz em sentimentos negativos: em realidade, ele não é senão o disfarce de um profundo ódio recalcado, isso se torna particularmente evidente quando um homem se aproxima da solteirona com intenções eróticas. Em geral, ela começa por afastá-lo: com sua frieza camuflada de recato, sua agressividade dissimulada em ‘nervosismo’, suas atitudes pouco cordiais, seus intensos receios de que possa ‘não dar certo’, seu medo de comprometer-se numa ligação que talvez venha a fazê-la sofrer, ela encontrará meios e modos de estragar tudo. E só quando ele tiver ido embora definitivamente, ela começará a alimentar a fantasia de amá-lo: adora-o, sofre por ele, está desesperada, tem vontade de morrer – mas tudo isso quando ele já se tornou inalcançável. É óbvio que ela não se atreve a amar um homem real. O que ela fez, no caso, é tomar um homem real como modelo físico para sua própria fantasia: ama um objeto criado e idealizado em sua imaginação; esse objeto pode ter as feições de Fulano ou Sicrano, mas isso é tudo: como pessoa concreta, Fulano ou Sicrano não consegue ter acesso ao mundo interior narcisista.


Muitas vezes esse amado ideal nem tem rosto; em outras ocasiões, a solteirona cultua a memória de um ex-namorado da adolescência, de um noivo morto há vinte ou mais anos atrás.


Em busca de uma saída

As solteironas se revoltam quando me escrevem pedindo ajuda, e eu respondo ‘Psicoterapia, psicoterapia!” Não se consideram doentes, e sim, infelizes. Acham-me dura, insensível, incapaz de compreender as infinitas riquezas de amor que elas têm no íntimo, de simpatizar com seu sofrimento. Neste último ponto estão redondamente enganadas: posso avaliar, talvez melhor do que elas próprias ( pois há muita coisa que elas reprimem, negam, escondem de si mesmas), a extensão de sua dor, o caráter absorvente e esmagador de sua depressão. O que não posso é dar cumplicidade ao seu sistema de autoengano: elas não sofrem de amor – aliás, ninguém sofre de amor; sofrem é de ódio que não ousa assumir seu nome; e por essa distorção, isto é, por não estar conscientizado, ele neutraliza todo o amor real que elas possam ter em si.


A solteirona é uma pessoa que, não tendo sido suficientemente amada, ou tendo tido exigências excessivas de amor, na sua infância, ficou fixada a essa fase da vida, om um senso de reivindicações. Ela cresceu em anos, mas não em estrutura psicológica: já adulta, continua querendo vingar-se daquela mãe que não a amou o bastante, daquele pai indiferente ou severo demais. Ou recuperá-los, se, ao contrário, eles abafaram sua personalidade com excesso de mimos e proteção. É a eles, os pais, que está referido seu desejo de dar e receber amor; mas esse intercâmbio é concebido em termos infantis: mamar, ser levada ao colo, paparicada, dirigida, dependente; portanto, ele é impossível, mesmo que haja pais vivos e dedicados. Ela está situada fora do tempo real: não quer um amor aqui e agora, que, como todo o amor normal, se projete no futuro: ela quer amor ontem. E isso, sendo irrealizável, deixa-a permanentemente frustrada e, em consequência, permanentemente raivosa – e culpada por essa raiva, punindo-se por ela através da solidão e da depressão. Ela também não quer o amor do outro: para o bebê, os pais não são “outros”, são partes de  si mesmo; o que a solteirona deseja é o vínculo narcisista com sua imagem no espelho, a simbiose com os pais, que lhe permitirá amar-se.


Enfim, ser celibatária é ser madura de idade e de estrutura psíquica, e não estar casada, agora, no momento; ser solteirona é ser madura de idade, imatura de estrutura psíquica, sofrer com sua condição e não ter dentro de si os recursos para modificá-la. Não ridicularizemos, como fazem alguns, os tormentos da solteirona: ela sofre a carência instintiva e afetiva mais radical, que é a de quem vive voltada para uma satisfação impossível, porque baseada em fantasias regressivas, reivindicações arcaicas.


A tomada de consciência do verdadeiro núcleo do problema (através da psicoterapia como método ideal; ou, quando esta for impossível, mediante uma honesta e corajosa auto-análise, até chegar às raízes) daria à solteirona sua oportunidade de transformar-se numa celibatária e viver uma vidinha invejável, com todas as perspectivas – inclusive matrimoniais – da celibatária. Uma mulher – feia ou bonita, não vem ao caso – tão cordial, tão generosa, tão gente que todo mundo que a conhece diz: “Puxa, será que os homens não têm olhos?” E vai ver  que eles têm – e estão lá: quem fala é porque não sabe.