domingo, dezembro 27, 2009

Sobrevivendo a um papo-cabeça



Mal pude conter minha euforia quando encontrei um pequeno, porém curioso título numa prateleira despretensiosa de um supermercado, lá estava o Pequeno Manual de filosofia para sobreviver a um papo-cabeça (Editora Agir, 2008), olhando para mim, não pude evitar: levei-o.


O livro, escrito por Sven Ortoli e Michel Eltchaninoff, um físico, outro filósofo é um interessante manual, tal como está expresso no título, para que possamos sobreviver àquelas conversas intermináveis nas quais , muitas vezes, somos jogados, assim, de pára-quedas, e nos vemos perdidos, encrencados, no popular: metidos numa enrascada.


Dividido em capítulos que nos lembram todos os rituais típicos em que se constituem um jantar qualquer, tais como "O aperitivo" , " As entradas", " O prato principal", os autores discorrem sobre as trivialidades que fazem parte de um nem sempre agradável encontro entre pessoas que mais desejam aparentar uma cultura inexistente do que serem claros e objetivos. De Slavoj Zizek, a quem chamam de astro pop da Filosofia, à Simone de Beauvoir e seu segundo sexo, os autores nos dão divertidas dicas para entrarmos na onda e não nos sentirmos massas acéfalas diante de um caldeirão de intelectualidade. Não, com o nosso manual nas mãos jamais seremos chamados de frívolos, ignóbeis, tampouco obtusos.


Em "O aperitivo", no tópico chamado "Do bom uso da citação", os autores dão um show de humor e ironia, tudo escrito com a pena do sarcarmo, desmascarando aquelas pessoas que tão bem conhecemos por trás dos discursos pomposos e elegantes. Não podemos esquecer uma das preciosas lições que o manual nos ensina:


" Assim como os aperitivos, o emprego das citações exige equilíbrio e atenção incansáveis. Todos têm um pequeno arsenal cuidadosamente equipado, testado e, supõe-se, pronto a ser acionado. É mister, porém, saber utilizá-lo no momento certo". (p.27)


De acordo com Sven e Michel, desafiar as citações de alguém pode revelar-se perigoso: "você pode passar por pedante ou agressivo". No entanto, cabe questionarmos: será que o objetivo dessas reuniões da "massa pensante" , da "nata intelectualóide" não são, a rigor, justamente claras demonstrações de pedantismo regadas por uma agressividade velada? Sim. O são, e por isso mesmo, lançar mão de um manual como este soa apropriado e até mesmo necessário, isto constitui-se na mais genuína tática de guerrilha, autodefesa pura, acredite.


"Massa crítica", "Desconstrução", "Situacionistas", " Gênero" e "Hipermodernidade" são outros conceitos explorados pelos autores e que fazem o público leigo, a mesma massa acéfala da sociedade, aquele 1% da população mundial que não leu Dostoiévski e tão pouco já ouviu falar em Hegel, entender um pouco os maiores pensadores da Filosofia até hoje, e isto significa dizer que o livro vai de Sócrates, como dissemos, até Zizek.


Além de mergulhar o leitor numa verdadeira aula de filosofia bem descontraída, também podemos sempre nos deliciar com a ficção construída pelos autores, sobretudo no que diz respeito aos perfis psicológicos de alguns tipos com os quais podemos nos deparar quando estivermos inseridos numa reuniãozinha de egos desse tipo. Não raramente encontraremos certos tipos dos quais devemos nos proteger de alguma forma, como, por exemplo:



1 - Jornalósofo: [...] o sujeito não é, ou não é exclusivamente, filósofo; ad minima, fez estudos de filosofia, recusando energicamente o rótulo de 'jornalista', embora tenha pelo menos um programa de rádio, uma crônica num noticiário e artigos regulares publicados na impresa diária regional [...] É facilmente reconhecido pelo visual. Num jantar superchique, ele aparece de gola rolê, conciliador e sem afetação, exibindo extrema smplicidade, realçada por sandálias e dar inveja aos franciscanos". (p.24)



2- O antenado: "Ele não é desses intelectuais para quem a filosofia termina onde a vida começa, a verdadeira. Para ele, 'D & G' não evoca apenas o binômio Deleuze-Guatarri, mas também uma célebre grife de moda. [...]. Baixinho, olhar faiscante por trás dos óculos de aros de metal, lembra vagamente um John Lennon diretor de cinemateca". (p.31)


3- O musicólogo pirado: " Casaco de couro, blue suede shoes e mecha grisalha. (p.35)


4- O neo-hippie: " adepto de valores autênticos, apóstolo do trabalho em cooperativa e do estilo ethnic chic [...] expelindo superficialidades com uma voz meiga e um sorriso digno do buda alcançado o último degrau da verdade, ele vê filosofia em tudo.


5-O vilão: " Você fala das próximas férias? Ele anuncia com fleuma que está de partida para a Coréia do Norte [...]. O assunto é política? Opõe-se categoricamente à independência do Kosovo e improvisa uma homenagem póstuma a Milosevic. [...]" (p.74)



Sem dúvida, seja qual for a "cena" do momento, não poderemos nos desvencilhar deste tipo de reunião; acredite: cedo ou tarde você se verá enrascado, metido numa destas circunstâncias em que o que mais importa é arrotar eloquência e destilar um veneno pseudo-cultural. Filosofia pode não ser o prato principal sempre; é possível que você tenha que trazer na manga um manual específico sobre cinema novele vague, expressionismo alemão, vanguarda literária, estar a par do que se passa na cena cult berlinense, e , claro, saber quem está na capa da Bravo! do mês.


Devemos também saber nos portar, vestirmo-nos com acessórios vintage, utilizar maquiagem demais ou de menos (nunca o razoável), também devemos ter em mente, tal como dito no livro, uma ou duas citações, de cabeça, mesmo, isto é imprescindível.


As preferidas do momento são as que fazem referência ao Pequeno Príncipe, se você for mulher, digo, uma mulher no início da fase adulta, beirando os 25 anos, certamente terá que trazer no bolso uma citação de Clarice Lispector, algo que fale de "dor", "vazio" e "medo", não necessariamente nesta ordem.


Falar de Freud também pode ser interessante, mas acredito que os autores pós-modernos estejam mais em voga. Citar Debórd, Susan Sontag e Zizek fazem toda a diferença, isso demonstra que você é alguém extremamente sábio e antenado no que acontece atualmente. Não podemos esquecer também de citar em algum lugar, qualquer que seja, uma referência à Chico Buarque, Clara Nunes ou Cartola ( que ficou mais conhecido pela multidão quando do lançamento do filme Cazuza, verdade tem que ser dita).


Uma gafe? Citar poesia talvez não seja nada bom. É considerada uma arte menor, pois, qualquer obtuso é capaz de decorar um "Soneto da Fidelidade", quero ver mesmo é entender " Deus está morto", de Nietzsche. Outra coisa também que poderá prejudicar-lhe é não saber francês, sequer um "L'amour"? Vire-se com o que souber, nem que seja um Eau de parfum. Tudo vale a pena, se a alma não é pequena , acredite, tudo depende do sotaque, muitas vezes.



Bem, a despeito da minha vontade, a lista termina aqui; porém a cada dia que passa descubro novas artimanhas , novos interesses e trejeitos da população pseudo-cult com a qual convivo , mesmo contra vontade. Por ora, contento-me com meus próprios conselhos e com as pérolas graciosas do manual, que, com certeza, se não me fará mais culta, ao menos me oferece a oportunidade de rir muito dessas circunstâncias tão entediantes. Mais que recomendo.