quinta-feira, maio 05, 2011

Ato de saudade.






Do doce amor agora me restam uns olhos



Esses olhos tão profundos que Deus te deu



Agora, quis a vida, que passassem dois dias assim, longe dos meus






Do doce amor agora me restam uns olhos e uma boca



Do doce amor, agora, é a saudade



que invade e atesta



que, de fato, só o que resta



a uma namorada bem modesta



é uma meia dúzia de rimas



é ser um tanto quanto brega






e chorar a ausencia de quem



somente por dois dias



se ausenta






Doces olhos, voltem



que dois dias é muita coisa



pra quem te quer a vida inteira.

Transferência: O difícil lugar por trás do véu rendado





Em 1912, em um texto chamado "A dinâmica da transferência", Freud já evidenciava o caráter perigoso da transferência, talvez o conceito psicanalítico que mais suscita polêmicas nos mais variados âmbitos em que a invenção freudiana penetrou.








No referido texto Freud indica, de saída, que a transferência é a arma mais forte de resistência, justamente por sua intensidade e por sua persistência. Em outras palavras, o autor chega a afirmar que a transferência consiste numa luta entre o racional e o instintual, entre a compreensão e a procura da ação entre médico ( na época não existia a função do psicanalista) e paciente.



De tudo isto, podemos dizer que, em palavras menos rebuscadas, transferir é próprio do neurótico e, se aceitamos a assunção de Freud de que todos somos neuróticos - uns em alto nível, outros ainda engatinhando rumo à neurose - e a transferência, essa arma quase letal está presente em tantas outras situações que não necessariamente clínicas, entre médico- paciente.



Existe transferência porque existe o bom neurótico que, devido a sua ambivalência típica, dirige sentimentos afetuosos positivos e negativos a uma figura que assume um lugar em seu desejo. Além de Freud, é interessante lembrar também de Racker , que vem nos ensinar que a transferência não se justifica pela pessoa do médico, nem por sua conduta. Ou seja, mais uma vez, simplificando:






O lugar da transferência é um lugar de suplência: o sujeito alvo de transferência , seja ele médico, analista, psicólogo, professor e até amigo, nunca é ele mesmo quando revestido pelo belo véu da transferência aos olhos do outro, que fantasia, que o pinta com as cores mais bonitas, que tece o véu com as rendas mais esmeradas. O grande problema é que o véu é - e deve ser - rasgado, para que o sujeito volte a ser ele mesmo.


Existe a ambivalência típica do neurótico embasando e dando forma ao véu da transferência, véu este do qual o sujeito nada sabe, posto que se situa por trás desta fina camada revestida de fantasias, tecida pela via do imaginário do Outro.



Assim, entramos, não mais na discussão teórica acerca do conceito "Transferência", mas começamos a abordar os efeitos desta, efeitos do olhar do Outro, que me torna um Outro para ele também. Assim, somos alçados a um lugar de suplência, um lugar que o o Outro nos dá. Aos olhos do Outro não somos nós, somos Outro: mais belos, mais fortes, mais seguros e, também, menos belos, menos fortes, menos seguros.






Da tranferência, desta que acontece em todas as situações em que existam mais de um sujeito, só se sabe seus reflexos. Ninguém supõe o que representa para um Outro, mesmo que esse Outro nos coloque naquele lugar privilegiado para, depois , nos retirar a fantasia, nos desvelar.






Pelo que se nota, ocupar esse lugar requer sensibilidade e, diria eu, até humildade - claro que não estou falando aqui de um lugar teórico - estou falando, em geral, da humildade que se deve ter em se saber que se é tudo diante do Outro, menos si mesmo. Ao passo que um sujeito pode ser alçado às alturas por alguém, pode ser também destituído deste lugar, posto no lugar de dejeto ( não resisti e me remeti à Lacan) .






O dejeto, este sim é um lugar que não desejamos ocupar. Mas ocupamos. Na situação clínica, já nos ensina Lacan, que este lugar é previsível, deve acontecer. Mas , e o narcisismo? Como fica diante de tudo isto, desta queda súbida das nuvens rumo ao chão? Resposta: Analise-se.



Estou aqui pensando em transferência e escrevendo intento elaborar esse lugar de dejeto, coisa pouco confortável com a qual teremos que lidar. Professor, por natureza, é um sujeito que se coloca - e é colocado - em lugar de transferência. Não se pode saber o que um aluno pensa do professor, por sua didática, por sua técnica e por seu conhecimento, você poderá ser reconhecido, mas, repito o que já disse noutro momento, nem tudo é cognição neste mundo de meu Deus.






A palavra aluno tem uma significação tão pejorativa mas deve ser trazido aqui à guisa de justificativa da temática escolhida. Aluno - A-luno, aquele que é desprovido de luz. Não concordo, mas , vejamos. Se é desprovido de luz, consegue, misteriosamente iluminar, por seus olhos, os olhos do Outro, este Outro que vem em suplência.





Aluno não é sem luz, mas , talvez pelo fato da transferência estar relacionada à saber - e este saber não quer dizer um saber intelectual, apenas - é importante que veja a luz no Outro, o professor. É aí que reside a luz do aluno: quando ele é capaz de dirigi-la ao professor, que, coitado dele, nada ou pouco sabe diante do desejo do outro, tal como o analista. Assim chegamos aos céus. Mas o tombo, o tombo é feio e previsível.






O tombo vem no momento em que o sujeito assume suas cores reais, ele é aquilo e não mais é recoberto pelo véu imaginário repleto das rendas mais belas e feito no tecido mais delicado. Somos xingados, expurgados, criticados, imitados ( e se algum professor acha que nunca foi imitado, sinto dizer, não existe professor que não tenha sido, uma vez na vida, imitado por seus alunos, seus trejeitos são meticulosamente estudados, talvez mais até do que a teoria que você tente trabalhar) ejetados da cadeira do suposto saber. Eis o tombo.





Alguém poderia perguntar se é possível escapar desse lugar tão instável, escapar desse movimento que, ora lhe condecora, ora lhe condena. Não. A resposta é não. Porque um sujeito será um Outro para outro sujeito ( mesmo que eu tente, é difícil deixar Lacan) e este Outro é repleto de todos os materiais possiveis à sua construção, menos os reais). Não se escapa à transferência, e a ela se deve, no mínimo, a aprendizagem da humildade, na aceitação da função-dejeto.






Nesse momento, lembro de Machado de Assis, que, se não nega a inevitabilidade do tombo, o minimiza em seu célebre aforismo: "Antes cair das nuvens, do que de um terceiro andar".