quarta-feira, março 30, 2011

Reflexões para docentes, discentes e para os que duvidam


Docente: Palavra de origem latina que significa "aquele que ensina".


Docente é um substantivo adjetivado que vem sendo empregado a torto e a direito, de frente e pelo avesso por aí. Eis que surge algo fruto da minha reflexão sobre a própria profissão. Aqui vão as minhas reflexões, inquietações, desabafos e a minha definição de docência a qual, sem dúvida, sinto-me capaz de explicar, de ensinar, pois sou aquela que ensina e nada mais natural do que isso para mim.


Aquele que ensina recebe o título de docente. Quanto mais o docente estuda, mais o seu substantivo ganha companhias: é mestre, é doutor, é pós-doutor, mas nunca deixa de ser docente, caso ainda insista na difícil arte de ensinar. Arte sim, porque nem tudo é cognição nesta vida de meu Deus.


Segundo nos ensina Freud, existem três profissões impossíveis: governar, psicanalisar e ensinar. Eu, por ora, fico no ensinar. Talvez eu venha, em outro momento, a falar das outras duas, mas, agora falo do ensinar. Não foi à toa que Freud começou a nos advertir sobre a impossibilidade da docência.


Endosso a opinião do pai da psicanálise porque , como não sou nem governante nem psicanalista, cabe-me apenas a terceira, fico então na minha seara, buscando meios de falar do impossível. Vejamos os argumentos para enfatizar tamanha impossibilidade.


1. Acredito que a impossibilidade reside num simples fato: Analogamente àquele que casa, o docente quer casa, e, não se engane ingênuo leitor, (voltei ao meu lado machadiano mais oculto, agora fui descarada) a casa do docente é a Academia. É lá que investe todos os recursos os quais amealhou durante a vida, esse duro processo do amadurecimento, e de lá pretende nunca sair. O docente sabe-se docente desde o primeiro dia em que pisa na Academia; fascina-se pelas aulas, pelo quadro negro, pela eloquência ou pela falta dela nos professores, os primeiros agentes do fascínio, modelos para aquele que , mesmo verde, sabe: Serei docente.

De lá para cá o que se vê é um sujeito que entende que a biblioteca é uma ilha - e disso ele sabe porque já deve ter lido Saramago , um acervo sem fim (mesmo aquelas mais limitadas) de conhecimento e cultura. O docente ainda engatinha com a docência latente em seu espírito. Gosta de ler, passa horas na companhia dos livros e muitas vezes recorre a eles por gosto e não obrigação. De poucas coisas tem certeza, costuma duvidar das falas dos professores, duvida de Foucault, de Freud, de Piaget, duvida de Hegel, duvida de Sócrates e - valha-me Deus - duvida até de Descartes.


O pequenino docente não duvida de apenas uma coisa: ele não duvida da gestação lenta daquele embriãozinho da docência. Quer ensinar, quer saber, saber muito, saber além e depois disso tudo, entender que o que vale mesmo é o que não se sabe. Ele sabe que quer ser docente, quer ser é professor, apesar de todos os comentários que invariavelmente neste processo de gestação irá ouvir.


O docente sai da Academia para nunca sair dela, pois um lugar aspira em meio a tanto conhecimento. Busca incessantemente tudo saber: especializa-se, torna-se mestre, termina um doutorado tudo para nunca deixar a Academia e poder, um dia, ser um daqueles que fizeram tudo isso acontecer. Quer ser professor, e , além do simples querer, desejou e fez por onde: Habilita-se para tal.


O problema está prestes a aparecer no horizonte daquele esperançoso docente. Aquele recém chegado à Academia da qual nunca saiu e que deve ocupar , agora, uma outra posição: É professor. Fato. Tudo poderia ser explicado assim , porém, sabe-se que nem sempre os dias que seguem uns aos outros costumam se imitar; são sempre diferentes, uns mais coloridos, outros nevoentos, uns quentes, outros gélidos. Não se espante se aquilo que pareceu um céu de brigadeiro tornar-se, em seguida, uma noite escura, refletida num céu de mistérios sem nenhuma estrelinha para animá-lo. Surge a maturidade no ingênuo docente, e com ela os problemas da casa. Ou foram os problemas da casa que trouxeram a maturidade de presente para o docente?


É que docente que é docente ama a Academia e, para a infelicidade de muitos, esta Academia da qual falamos facilmente é confundida com outra academia, aquele lugar de exercitar os músculos, músculos que talvez nem soubéssemos que possuíamos, devido ao total desuso destes. Academia vira assim a outra academia e os docentes passam a se portar como se narcisistas fossem, uns ostentando mais do que outros os músculos torneados, a beleza dos cérebros e egos inflados.


Nessa confusão entre academia e Academia, entre músculos e cérebro, entre exibir-se e ensinar perde-se o objetivo da docência em si. Perde-se o porquê, perde-se a razão de ter buscado com afinco usar o tal substantivo adjetivado. É que tem docente que se acostuma tanto em adjetivar-se que esquece do essencial, esquece o substantivo ali, largado na esquina, pedindo um trocado.


Perde-se tempo e inocência com egos e cérebros inflados. Perde-se o sentido da docência, perde-se a decência da docência que deveria ser o norte da profissão. Eis que surgem os docentes indecentes, os que, nesta academia são os mais fortes, os mais esbeltos e torneados. O objetivo do "ser aquele que ensina" se perde em discussões teóricas que têm a profundidade de uma colher de chá, em alusões desrespeitosas ao trabalho do outro, perde-se, enfim, na luta de egos bombados o desejo mobilizador de tudo isso, a alegria de descobrir algo e de continuar s espantando com isto, perde-se o desejo de aprender e ao mesmo tempo ensinar.


Apesar de tanto ter falado do problema em questão, não mencionei o maior deles: Toda essa confusão entre livros e halteres entre egos e sabedoria deixa rastros, e quem perde é o lado mais fraco de tudo isso: os discentes, aqueles outros que personificam esse outro substantivo adjetivado que deveria ser o objetivo daquele que ensina. Na luta de egos e halteres o mais ferido é o discente, aquele que guarda consigo o maior dos tesouros: o desejo de aprender.


Não sei aonde poderíamos chegar falando das feridas que respingam dessa luta de egos , mas sei o que cada um deveria fazer. Ao docente, lutar, sempre, mesmo que pareça clichê, lutar pela disciplina, pela ordem, por todas essas coisas chatas que hoje em dia muita gente despreza.

Lutar pelos alunos, lutar pela função crítica, lutar contra a preguiça e não se preocupe em saber responder todas as perguntas porque você jamais terá todas as respostas. Lutar para ficar na memória daqueles que um dia lembrarão do que aprenderam e certamente não estou falando apenas de teorias e métodos. Lutar todos os dias para se empolgar e se deixar fascinar todos os dias, todas as vezes em que você começar uma aula, porque naquilo você acredita. Duvide dos livros e deles faça nascer a sua crítica, a sua interpretação. Brigue com os livros, mas saiba também afagá-los porque você os tirou daquela mesma ilha perdida e maravilhosa e ele lhe deu tesouros os quais você jamais esperava encontrar.

Lute pelo ensino, pelos livros, pelas boas salas de aula, pelo quadro branco, por melhores salários, por respeito, por Freud, por Skinner, por Marx, por Hegel, por qualquer um em que acredite, mas essa luta só deve ser travada se o docente de fato acreditar em algo. Se a resposta for positiva, que vista a melhor indumentária e faça uso dos melhores escudos, pois há que se preparar para a batalha de egos.


Se a resposta depois disso tudo for negativa, desista, desista da disciplina da ordem, da lista de frequencia, desista do quadro branco porque , uma vez desistindo de tudo isso o docente desiludido estará provando para si mesmo que não acredita nem em Freud, nem em Skinner, nem em Marx, nem em Hegel e com isso, prova-se o pior: não acredita nem em si mesmo.


Ao discente cabe uma tarefa talvez mais fácil: duvide sempre. Da teoria, da prática, da técnica, dos egos. Duvide.


Quanto a mim? A resposta que eu dei a mim mesma foi positiva. Vou continuar lutando, defendendo tudo aquilo em que acredito, e isso provavelmente vai manter acesa uma pequenina chama de ingenuidade que fará de mim sempre, a esperançosa docente.