sexta-feira, janeiro 30, 2009

À espreita de Graciliano


" Escreve-me aí qualquer coisa, meu amor. Se te faltar assunto, se não houver em tua alma uma pequenina parcela de afeição para mim, manda-me dizer o romance que estás lendo, a cor da roupa que vestes, o enredo da última fita a que assististe"


Graciliano Ramos, 31 de janeiro de 1928



Este homem apaixonado e que mendiga atenção pouco lembra o crítico mordaz e o prosista que se revelou em "Caetés". Verdade seja dita, o missivista tem muito do prosista, mas é impossível conhecer Graciliano Ramos apenas através do mito que se criou em torno de sua figura taciturna, por vezes irônica e sarcástica. Em " Cartas de amor a Heloísa" ( editora Record, 1994), conhecemos um outro Graciliano, diverso do autor de "Vidas Secas".


Aqui cabe uma reflexão: ao ler as cartas de amor de Graciliano , estamos tendo contato com brilhante romancista? De acordo com Tania Rivera, o artista designa-se por sua obra e não antes dela, ele não preexiste como artista a seu trabalho, logo, partindo desse pressuposto, ler " Cartas de amor a Heloísa" constitui quase uma indiscrição; é como se , sorrateiramente, invadíssemos a privacidade de um homem de trinta e cinco anos, viúvo e apaixonado por uma jovem dezessete anos mais nova.


Simples assim: estamos diante de um apaixonado trocando cartas de amor com sua noiva, e não diante do mestre Graça, exímio contador das estórias sofridas do homem sertanejo e de alma árida.


Esqueçamos, pois, o escritor e foquemos no homem Graciliano: as cartas são datadas do fim dos anos 20, mais precisamente escritas no ano de 1928, inspiradas por uma paixão avassaladora, pois, segundo a mesma pena romântica:


" A vinte e quatro de dezembro eu julgava que te chamavas Ana Leite, a sete de janeiro era teu noivo. Julgas que perguntei a alguém se tinhas habilidades, se tocavas piano, se fazias flores de parafina? Não perguntei nada. Minha loucura revelou-me tudo de pronto, e acredito que ela não me haja enganado"


24 de janeiro de 1928



Como se pode notar, foi uma paixão fulminante que uniu Graciliano e Heloísa, dessas paixões que chegam sem avisar, como uma febre que se apossa do corpo débil de algum moribundo sem previsão de partida. Graciliano é assim; o tempo todo, em suas cartas percebe-se alguma ironia, quando ele mesmo desdenha da sua condição de homem apaixonado, comparando seu sentimento a uma espécie de loucura, loucura esta que ora percebe recíproca,


" E tu, meu amor, que fizeste? Sabes lá quem sou, donde venho, para onde vou, que tenho feito neste mundo em trinta e cinco anos duramente arrastados? Nada conheces de mim".


24 de janeiro, 1928


ora solitária:


" [...] Falas nas lutas que tiveste, nas incertezas que te faziam avançar e recuar, nas esperanças e nas tristezas que sentias. Afinal, gostavas de mim. Pouco, muito pouco, dona Lili me disse. Mas és tão boa, tens um coração tão grande, minha filha, que o pouco que me davas era demasiado para mim".


4 de fevereiro, 1928


De fato, o homem era romântico, não resta dúvidas ao leitor mais distraído; de um amor que tudo exige e que tudo demanda, inclusive cartas longas tais quais às recebidas:


" Onze palavras!Imaginas o que um indivíduo experimenta ao receber onze palavras frias da criatura que lhe tira o sono? Não imaginas."


16 de janeiro, 1928


Ao que se nota, o amor era tamanho que tornava o constante missivista um homem frágil, à mercê do sentimento que nutre por sua amada, um sentimento digno de um romance de José de Alencar, constituído de todos os arroubos passionais os quais caracterizam um lord Byron, um Álvares de Azevedo:


" Eu te procurei porque endoideci por tua causa quando te vi pela primeira vez. É necessário que isto acabe logo. Tenho raiva de ti, meu amor".


16 de janeiro, 1928


Ler as "Cartas de amor de Graciliano a Heloísa" nos faz perceber que todos nós, não importando se somos Graciliano ou José da Silva, quando nos encontramos em tal estado de embriaguez e torpor da consciência, tendemos a exaltar a coisa amada como se esta fosse artigo único, polido por mãos das fadas e embrulhado por obra divina. É, não precisa ser Graciliano para perceber que a paixão embota os sentidos, inspira coisas muito belas e nos torna imortais, posto que vivemos no e para o amor. Amar a coisa amada é existir um pouco mais, é dar um fôlego a mais à existência que já vinha morna.


As cartas de Graciliano nos revela um coração nada árido, posto que inundado de amor e de paixão, um homem vulnerável às intempéries causadas pela ação da coisa amada. Em suma, conhecemos mais de um homem apaixonado, menos do romancista. Ler as cartas de Graciliano é como adentrar em seus aposentos em Palmeira dos Índios e deixar-se ali ficar por alguns minutos a espreitar a mão e a pena que leve e torridamente vão se unir para preencher a folha branca que tanto teima em exagerar o bem querer.


A quem espreita, desejo que se faça discreto e que se deixe inundar pelo turbilhão de emoções.



terça-feira, janeiro 27, 2009

Montanha e Árvore



Uma casa na montanha era o que ela queria. Desde muito nova, se alguém lhe perguntasse de supetão: “ Vá, diga lá um desejo!”, certamente ela não hesitaria em dizer que gostaria muito de uma casa numa montanha.

Verdade seja dita, não via muitas paisagens dentro da prisão de concreto em que habitava; montanha ou coisa assim só poderia ser , quando muito, imaginada, assim como cachoeiras e pardais, pois era comum retirar dos livros as ilustrações e fazê-las morar num canto de sua imaginação.
Como bem se pode notar, ao contrário da geografia, imaginação não conhece limites ou barreiras territoriais, mesmo morando ela em cidade pequena, teimou que queria uma casa no alto de uma montanha e que fosse sempre inundada por uns raios solares os quais sempre pensou muito vívidos e longos.
Interessante é que no mesmo mapa se acharam: ela que queria a casa no alto da montanha, já ele se via habitando uma bela residência de madeira no topo de uma árvore de tronco fino, porém não menos forte e robusto. Sendo montanha e árvore coisa própria da natureza e comum a toda paisagem que se preze, deu-se o encontro:
- O que você faz no meio da mata? Perguntou ele, com seus olhos grandes.
- Ora, o mesmo que você. Procurando algo. Disse a menina, como se o conhecesse há muito.
- Mas eu não lhe disse que estava procurando algo, como adivinhou?
- Tenho poderes, sinto lhe informar, sou espécie de bruxa, melhor ficar longe!
- Bruxa? Nesse tamanhinho de gente? Bruxa é gente adulta, alta e vestida de preto, você é pequena como eu, criança e está de vestido azul.
- Acho que você não sabe muito sobre estudos de bruxas, também fica impossível de conversar com gente assim, passar bem!
A menina disse isso no alto de seus 1.40, achando-se adulta demais para ter um minuto ou dois de prosa gastos com aquele menino que parecia tanto duvidar. Resolveu ir buscar a sua montanha, pensou que iria conquistar algo novo e já previa bandeira a fincar ali, num território desconhecido.
- Eu queria achar uma árvore. Disse o menino como se buscasse alcançar os passos da menina
que já queria ir longe dali, em busca de sua montanha; de fato colina também serviria, pensou em não ser tão exigente e achou mesmo que se encontrasse morro qualquer faria dele sua morada.
- Ah eh? Árvore tem é muita, não está vendo? Jacarandá, pé de jaca, de jambo e de manga. Tem até cerejeira, é só escolher e pronto, já eu... procuro é uma montanha, você já viu uma?
Disse a menina, já não tão valente, atendendo ao chamado do menino do calção vermelho.
- Não por essas bandas. Retrucou ele, em tom ameno como de costume.
- É...Vou andar muito e não vai ter hora de almoço nenhuma que me impeça hoje, hoje vou achar minha montanha.
- Ah, boa sorte, eu vou achar minha árvore, trouxe madeira para meu projeto.
A palavra “projeto” soou diferente aos ouvidos da menina; pensou que projeto estaria ligado a
alguma coisa do tipo “teoria” ou “invenção”, sendo ela muito dada a ambas as palavras, resolveu se interessar também pelo tal projeto, voltando os olhos curiosos para o tal menino, pensou-o arquiteto, engenheiro, algo desse tipo, pois trabalhava com madeira e devia ser alguém até mesmo ocupado.
- Você quer ser engenheiro?
- Não, eu acho muito chato, eu queria mesmo era ser arquiteto, mas trouxe madeira sim, adoro mexer com essas coisas, vou fazer uma casa na árvore.
- Uma casa na árvore? Sério mesmo? E você sabe? Você consegue? Você vai conseguir?
- Claro, eu tenho duas mãos fortes e muita, muita vontade, sempre quis uma casa na árvore e nunca tive, agora vou fazer, trouxe até serrote.
A menina definitivamente, ao ouvir a palavra “serrote” juntou-a logo com “projeto” e o menino passou a ser muito interessante àqueles olhos. Achou que ele sabia de muita coisa, que lhe podia ser útil e até mesmo amigo.
Pensou em chamá-lo de arquiteto, engenheiro. A verdade é que não sabia muito bem de onde ele surgira e porque ali estava, mas algo lhe fez querer bem àquele menino, talvez fosse essa coisa de ele usar palavras tão estranhas a seu vocabulário, deixando espaço a sua imaginação para completar o esboço que ali se apresentava na figura do menino que parecia tão sério.
- Rapaz, já que você é tão sabido, me empreste esse serrote , também acho que vou precisar de madeira. É que eu estou procurando uma montanha muito bonita, quero fazer uma casa lá. Você me ajuda?
- Uma casa? Também? Mal terminou a frase e já se notava o menino um tanto quanto interessado na tal busca à montanha perdida.
- Sim. Uma casa a qual nunca tive, a qual eu agora vou construir. Me empresta o serrote?
- Empresto, e se você quiser eu te ajudo também a construir.
- Certo, então venha, ali deve ter uma, me ajude e eu também te ajudo a achar a tal árvore. Serve mangueira?
- Serve sim!
E passaram os dois a caminhar em busca conjunta, um a sonhar com uma árvore frondosa, alta e vistosa, a outra a imaginar o encontro com a tal montanha. Se alguém os visse ali diriam que se criou amizade perpétua daquele encontro tal como uma flor que nasce e cresce mesmo que não se note.
Se alguém os visse crescidos, diria que da busca brotou um amor mui bonito o qual todos os dias se parece com uma busca infinita em torno de árvores e montanhas perdidas, através das quais se perceba uma infância perdida que jamais voltará.
Se alguém mesmo pudesse prever, preveria aquelas mãos unidas em um só desejo de criar raízes, sejam elas de pés de manga ou jambo, mas sempre raízes profundas. Se alguém mesmo pudesse arriscar, diriam que ele encontrou a árvore, esta não tão distante da montanha.

* Ilustração: Cristiano Leão