terça-feira, novembro 24, 2009

O conto do derradeiro dia


Acordou. Eram sete horas de uma manhã que levantava cinzenta, sendo o cinza o prenúncio do que viria a ser o último dia de sua vida, vã em quase todos os momentos, mas com relances de interessantismo.


Estava decretado, por alguma ordem divina, que aquele seria o derradeiro dia de sua existência: preparou-se para levantar, posto que tudo que até agora turvava seus pensamentos apareciam em sua mente ainda sem a companhia dos olhos, estes estavam preguiçosamente fechados, à espera de algum comando, de um som qualquer, do bater de asas de uma andorinha. Eram olhos fechados que inauguravam aquele dia, dia em que tudo findaria.



Acordou-se, ou, dizendo de maneira mais correta, abriu a fina cortina que trazia diante dos olhos, oferecendo-os àquele cinza e aos raios de sol que não vinham. Tão logo registrava o mundo, as nuvens e o céu, sentiu a necessidade premente de alimentar-se: o estômago companheiro reclamava o de comer e era preciso atendê-lo para acabar com todo aquele protesto em forma de sons estranhos.


Preparou para si mesmo um copo de leite o qual, cuidadosamente, colocou numa bandeja, ao lado de uma manga: assim, pensou, seria mais fácil suportar a morte que inadiavelmente aconteceria.


Era preciso adiantar o processo, uma vez que do destino último nada ou pouco se sabe, e, por
questão de evitar fila, era necessário apressar de vez o último suspiro, era mesmo imprescindível abrir a porta à ceifadora antes que ouvisse as primeiras e temidas batidas na velha madeira.


Com desdém olhou para o copo de leite: era muito , certamente seria o suficiente para fazer a passagem deste para outro mundo de barriga cheia, sem reclamações ou protestos estomacais de qualquer espécie. A manga seria apenas para facilitar o acesso rumo ao desconhecido, pensou sem titubear: se é para ir, que seja de uma vez e sem delongas.

Depois de sorver o leite e chupar a manga que em nada lembrava as frutas maravilhosas que colhia no pomar de sua mãe, memórias de sua doce infância, repleta de igualmente doces jaboticabas e melancias, deu prosseguimento ao penoso processo de adiantar a vindura da morte.


Foi quando atentou para o fato de que somente se preocupou em tomar o leite e chupar a manga, mas esquecera do mais urgente: era preciso virar as chinelas, isto era de lei e não poderia faltar nos preparativos derradeiros.

Tirou as velhas chinelas e virou-as de sola para cima, imaginando ser este um gesto de mau agouro, e, se o mau agouro honrasse seu nome, certamente adiantaria em uma ou duas horas a morte inescapável. Era preciso, sim, virar as chinelas, como não pensara nisso antes?


Certamente deveria tê-lo feito ao levantar, antes mesmo de calçá-las, esse retardo, sem dúvida, retardaria também o início do seu fim.


De qualquer forma, fê-lo: virou as chinelas e já achava que tê-lo feito era melhor do que andar por aí, calçado, somente esperando morrer por ter tomado leite e chupado uma manga. Tudo parecia muito bem, todos os rituais estavam sendo seguidos e isto com certeza lhe daria algum respaldo quando qualquer um outro falasse destas conversas de deixar a vida, de ir para outro plano ou outra existência.

Porém, nada poderia ser tão perfeito se não fosse um esquecimento: Não ouvira um pio de coruja , nenhum, durante a madrugada. Isto o deixou perplexo: "Como pretendo antecipar a minha morte se não há sinal qualquer de coruja, nenhuma lembrança, mesmo que vaga, de ter ouvido nada, nem um piozinho sequer anunciando a chegada da indesejada das gentes?", constatou.


Não, isso não estava certo, urgia substituir o pio da coruja por algo que assegurasse a eficiência dos últimos momentos rumo à eternidade. Pensou no mais óbvio sinal de azar: o gato preto. Sim!


E porque não, se este não aparecia apenas à noite, se este era mesmo um animal doméstico e melhor, se era tão acessível?


Eis que surge a idéia: foi ao encalço de Benedito, um gato preto e tísico o qual sempre passou por maus bocados mas que, insistentemente, costumava posar diante da morte com um ar de escárnio, de superioridade, como se não a temesse. Benedito, sim! apesar de desafiar a ceifadora, seria ele o melhor substituto do pio da coruja. Acreditava que se o gato gastava seu tempo a se esquivar habilmente da própria morte, sem dúvida a desviaria de si mesmo ao colocá-la face a um outro inimigo, maior, humano, que era para se dar uma morte melhor.

Desejou ser ele mesmo o substituto do gato quando a morte viesse buscar alguém. Benedito, que já vinha fazendo uso da oitava vida, se não demonstrou repúdio à idéia, tampouco se fez de rogado em aparecer e dar umas voltinhas diante de seu dono. Continuou, então, todo faceiro, passando para lá e para cá, esperando ser ele uma espécie de coruja piando e trazendo todos os mau agouros possíveis em seus tímidos, porém expressivos miados.


Depois de achar o gato, virar as chinelas, tomar o leite e chupar a manga, pensou: " Agora é que ela vem mesmo, sem dó nem piedade, ceifar-me a vida como sempre tem feito por ofício, agora sim, é o momento e não haverá nada além disso, uma morte rápida e rasteira, uma espécie de suspiro e pronto...outro espaço, outra vida, nuvens? Fogo? Harpas? Não se sabe, a única certeza que se tem é que ela vem e que será lépida, ágil", empolgou-se.

Nada de alvoroço, nada de meses em unidades de tratamento intensivo. Ela virá como vem o vento minuano nas querências gaúchas, ela virá como uma estrela cadente que poucos conseguem acompanhar. Virá como um cometa, como um espirro, será eficiente e cumprirá seu papel com maestria. Nada de extrema-unção; não haverá tempo. Nada de último desejo, tampouco restará consciência para sequer imaginar um último pedido. Ela virá como um furacão e levará aquilo que sempre foi uma existência pacata, por vezes morna, mas nunca arrebatadora.


Diante de todos os preparativos percebeu-se plácido, calmo, como sempre fora em vida: sentou-se, leu as primeiras notícias de seu último dia e pensou: “ É, a bruxa está solta...”. Foi quando atentou para um dos mais simples rituais e que, porém, esquecera de seguir: Procurou a primeira escada que desse com as vistas para passar por debaixo dela, porém, seria preciso sair de casa, pois lá não havia sequer qualquer escadinha de três, quatro degraus, tudo isto parecia já cansativo, mas, pensou, o que seria mais um último cansaço diante daquela vida quase sempre entediante?
Por que não dar um derradeiro passeio, contemplar as últimas flores que insistirão em florescer mesmo quando seus olhos virarem comida de minhocas? Vá lá, a morte requer certos sacrifícios, e era preciso fazê-los, nem que fosse para morrer em paz.

O fato de andar pela rua já poderia adiantar em muito o processo, concluiu. Por isso, preparando-se para sair de casa, resolveu dar várias chances ao azar e com isto talvez chegasse a sua morada final com muitas horas de antecedência na frente de muitos outros que certamente estariam cansados, em fila, tendo passado por uma morte mais difícil.


Deixou todas as portas destrancadas, que era para pegar o ladrão desprevenido, procurou sair também com todo o dinheiro de que dispunha em mãos: não era uma soma alta, mas era alguma coisa para qualquer um que fosse menos privilegiado pela vida ou pelo destino. Saiu com notas de cinqüenta reais na mão esquerda, levando Benedito à coleira, sem chaves ou carteira. Seguiu seu caminho com passos calmos, como se não houvesse pressa alguma no mundo.

Não pôde deixar de notar os olhares curiosos: não era todo dia que se via um homem de ceroulas azuis, descalço, com um gato preto numa coleira e notas visivelmente esmagadas na mão. Todos olhavam-no e ele parecia trazer no peito um desejo tão bravio, uma coisa de herói destemido, não temia ladrão, queria mesmo que estes chegassem e lhe atacassem, levassem seu dinheiro e sua vida, isso estaria nos planos da ceifadora.
Também queria ser visto, mesmo que tivesse passado toda a vida se escondendo dos olhos de quem quer que fosse. Um exibicionismo último não lhe cairia mal, pensara enquanto formulava alguma frase engraçada para ser colocada em sua lápide.


Seguiu seu rumo e só parou quando avistou a escada e não hesitou: preparou-se, deu o último suspiro e seguiu, pronto para passar por baixo daquela estrutura de metal enferrujado. No entanto, como esta vida pode ser tudo, menos justa, nada acontecera e a escada não funcionou como um portal para outra vida, longe disso. Era apenas uma escada enferrujada, mas, se não morreria pelo simples trabalho do mau agouro, morreria de tétano se seus dedos dessem com alguma espécie de prego enferrujado, animou-se.

Passou algumas horas a passar por baixo da velha escada até que cansou e seguiu para sua casa. Lá voltando, encontrou tudo como antes: nenhum sinal de arrombamento, nenhum sinal de intruso, era ele, sozinho, se deparando com o espelho. Aquela figura já patética, praticamente nu, aparentava cansaço, mas, pelo que pôde observar nos próprios olhos, não aparentava tédio; aquele último dia fora bastante movimentado, diria certamente a quem quer que lhe interrogasse, nos lados de lá.


Deprimiu-se pela última vez com sua aparência, Foi até a cama e pensou que esperar pela morte deitado seria muito mais conveniente, uma vez que nunca viu ninguém ser enterrado em pé. Deitou-se para vê-la chegar e , quando ela chegasse, não poderia ter nenhum reflexo, nenhum ímpeto de lutar contra a voraz inimiga: até aí a preguiça já teria consumido todos os seus ímpetos ou impulsos, tudo isto que nunca usara em vida.

Deitou-se e lá ficou, a esperar a eternidade, que, face o adiantado da hora, certamente não viria mais. Resolvera dormir porque durante a noite a tal coruja piaria e estaria, enfim, completo o ciclo de uma vida lastimável. Se não fosse hoje, pensou, de amanhã não escaparia.