terça-feira, agosto 25, 2009

O Flamengo , a aposta e o bilhete





Aristides não era o que poderíamos chamar de um homem bem apessoado; quem o conhecia sabe que ele não tinha lá qualquer coisa que indicasse elegância ou a mais tênue camada do tal “verniz social”. Aristides era rude até na aparência, no alto da cabeça que vinha direita mas no cume se estreitava, habitavam cabelos crespos e já embranquecidos por ofício do tempo e dos problemas.




Tinha um nariz chato, próprio da sua cor. Era mulato o Aristides, e, como todos os mulatos, parecia-se com um. Não cheirava mal, também não cheirava bem. Possuía um cheiro característico de loções pós-barba compradas no mercado mais conveniente da vizinhança, não fazia questão de roupa bem passada e há quem diga que possuía limitado número de camisas devido à freqüência com a qual as repetia. Aristides não era , definitivamente, um modelo de beleza e charme, mas tinha seus encantos justamente em sua aspereza, em sua rudeza.




Se era simples na aparência, nada diverso poderia ser dito de seus hábitos. Costumava – quando estava de folga – ir a um bar localizado em seu bairro, tomar algumas doses de aguardente, assistir ao jogo de futebol que estivesse passando e voltar para sua casa, onde morava sozinho, o que bastante o incomodava, tinha medo da solidão.




Aristides trabalhava como pedreiro, sua função em uma obra era seguir à risca o que diziam os homens que estudaram mais que ele; ouvia atentamente, derrubava parede, construía parede, rebocava a parede, tudo de acordo com o gosto e a vontade de quem o ordenasse. Não costumava falar muito, algo que, em sua profissão, poderia ser até de grande serventia, dizia que um bom pedreiro era aquele que tinha bons ouvidos e mãos fortes para agüentar a labuta diária.




O nosso homem, como já dá para perceber, era o típico brasileiro mediano, possuía pouca instrução e trazia na alma uma espécie de apatia que transbordava pelos seus olhos e por toda sua face, que acompanhava a postura sempre submissa, derrengada. Aristides tinha os ombros largos e curvados para baixo. Tinha também orelhas de abano, fato que lhe rendera muitos traumas na infância durante os poucos anos em que freqüentou a escola.




Se tinha uma diversão, essa era às quartas-feiras, quando ia ao tal bar da esquina, beber e ver futebol, sozinho: Aristides não tinha muitos amigos e fazia questão de sentar numa mesa afastada das outras e da qual via os jogos de bola, munido sempre de uma cadernetinha vagabunda na qual anotava os resultados dos jogos de todos os times brasileiros que jogavam às quartas-feiras desde o ano de 1995.


Aristides era organizado, a mesma caderneta, quatorze anos depois: rascunhava, desenhava linhas pretas nas folhas brancas para criar tabelas nas quais constavam dia, mês, ano e gols marcados por todos os times brasileiros os quais via jogar pela televisão. A caderneta era a única alegria na vida de Aristides, pode-se dizer. Era como se naquele espaço, dentro das linhas daquelas tabelas ele pudesse controlar o mundo a seu redor, buscar explicações para o sucesso ou a derrota. Aristides com sua caderneta se sentia importante, pois sonhava um dia debater com os narradores dos jogos a queda e ascensão dos times ao longo dos quatorze anos.


Se não tinha muita imaginação, utilizou o pouco que tinha ao criar, em sua mente, um dia em que seria comentarista de futebol e falaria, sem papas na língua, sobre os técnicos e os jogadores de cada time brasileiro, sempre embasado nos dados estatísticos anotados detalhadamente em sua caderneta. Mais além seria pedir demais à escassa imaginação do pedreiro, achava feio sonhar e, mais feio ainda, acreditar no próprio sonho: não raramente caía com a barriga no chão toda vez que se prestava a devanear e a sonhar com o ofício de comentarista; logo que sua cabeça subia às alturas e a imaginação parecia pegar no tranco, Aristides atrapalhava fazendo-a estancar, prontamente pensava: - Ora homem, isto nunca acontecerá, volta pro teu mundo que teu sonho acaba é nesta mesa de bar.


– Moço, me dá mais uma dessa branquinha.

E lá se iam os primeiros quarenta e cinco minutos e com ele a página em que Aristides copiava as impressões gerais dos times adversários. Sempre que se pegava escrever, pensava em si mesmo engravatado, em um paletó de brim escuro, comentando os jogos com preparo e astúcia.
Foi numa dessas quartas-feiras que Aristides ouviu um bafafá nas mesas ao lado, logo se sentou, tirou do bolso a carteira surrada e o chaveiro enferrujado em que pendurava a única chave de sua casa. Mal se sentou e foi logo colocar as suas orelhas de abano à serviço da informação:



- Vai ser empate, rapaz!E digo mais, vai ser 2 a 2 porque o time é novo e não pegou confiança no técnico ainda, sem pensar que em casa, a coisa muda...


A discussão começava na mesa ao lado da de Aristides e era protagonizada por quatro homens que não conseguiam se entender toda vez que o assunto era futebol. Aristides escutava com cuidado tudo que diziam e comparava as opiniões alheias com as suas, quando então ouviu a aposta:


- Certo, então eu aposto o meu bilhete da mega-sena, esse aqui ó, do meu bolso. E olha que eu tenho sorte, já ganhei dois liquidificadores e uma moto numa festa de formatura. Minha mulher sempre que sonha com água me diz os números que ficaram na sua cabeça e eu faço a minha fezinha. Aposto esse bilhete, esse mesmo que esse jogo vai ser 2 a 2, quem arrisca o resultado? Quem acertar o que der ganha o meu bilhete.


O que se seguiu foi um bate-boca desordenado, um murmurinho incontrolável que agitava e animava a noite. Os amigos do tal apostador não sabiam se decidir, e também não achavam que o tal bilhete valesse alguma coisa. Foi tanto que um deles disse:


– Ah, mas veja, eu prefiro apostar coisas reais, mesmo, de carne e osso, ou melhor, de álcool e cana. Pra mim tava de bom tamanho você me pagar 4 doses da branquinha e fim de papo. Pra quê eu quero este bilhete, vou saber lá se tua mulher sonhou direito, se te deu os números certos? Eu gosto de aposta mais simples e que a gente veja logo o prêmio!Se der 2 a 2 eu te dou este boné, mas se for 1 a 0 você me paga uma caninha e pode ficar com teu bilhete que não quero isso.


Aristides continuava atento à discussão dos dois amigos que rapidamente tomava o bar inteiro, posto que até o garçon viera palpitar, aconselhar que o outro não aceitasse o bilhete nem nada disso. Subitamente espalhou-se o clima de polêmica o qual foi alimentado pela valentia do apostador:


– Quero ver quem é o homem nesse bar para apostar comigo este bilhete, o bilhete que foi cantado pela minha santa mulher , o bilhete premiado da mega-sena. Eu quero ver é mesmo se tem homem nessa espelunca,que queira apostar comigo, porque eu tenho coragem de apostar isso aqui , mesmo sabendo que está premiado.”


Ao ouvir que o apostador não avistara nenhum homem no bar, Aristides logo pensou em se apresentar, iria lá, chegaria à mesa do valente com sua cadernetinha em mãos e explicaria para ele, de acordo com o retrospecto do time do Flamengo quando jogava em casa, que o jogo não poderia ser empate, ele, Aristides, que não era flamenguista, acreditava que o jogo seria 3 a 0 para o Flamengo.

Pensou em peitar o corajoso e dizer: “Ei, espere aí, eu sou homem e lhe digo que o Flamengo não empata em casa faz tempo, os jogadores demonstram empolgação e entusiasmo, tudo isso renovado pela confiança que já depositam no novo técnico, isso só pode dar em uma vitória daquelas!”


Pensou, mas não disse. E lá ficou calado. O intervalo passou, o jogo continuou e , para a felicidade dos amigos incrédulos, o Flamengo fizera o primeiro gol. Seria o prenúncio da convincente vitória.


O tempo passava, e com ele o time do Flamengo parecia triturar o adversário, vários gols perdidos por falta de uma pontaria precisa ou por astúcia maior do goleiro. Foi contando com um momento de vacilo do zagueiro que o Flamengo marcou mais uma vez.


– Viu só? Agora é a hora da virada, o Fluminense jamais vai aceitar isso, eles vão é correr atrás do prejuízo, vai ser agora!


Se as palavras do dono do bilhete servissem de algo, certamente serviriam de estímulo para os jogadores do Fluminense cujas pernas ou não agüentavam percorrer o campo inteiro ou sofriam com as câimbras causadas por exaustão. Porém, de nada serviria o estímulo, a confiança do dono do bilhete: O time do Fluminense se entregava lentamente, reconhecendo a superioridade do adversário ou contribuindo diretamente para a ampliação do placar.
O terceiro gol veio justo num momento de descuido do zagueiro que, achando que o escanteio cobrado tinha como endereço certo a meta do goleiro, não se fez de rogado e adiantou a cabeçada, contribuindo tragicamente para o terceiro gol do time do Flamengo.


O murmurinho foi geral. Naquele bar não havia homem, não havia quem quisesse entrar na aposta e, por isso, ficou o dono do bilhete a sorrir e a desmerecer os seus amigos.


"- Seus burros, esse bilhete poderia ser de alguém aqui, e agora ele volta pro meu bolso! Haha, quando eu ficar rico, não piso mais aqui , ou melhor, se pisar, eu vou é descer do meu carrão e gritar: Nesse bar não tem homem não!”.



A brabeza logo se desfez e os amigos passaram a brincar juntos e num espaço de cinco minutos já se esqueceram do Flamengo, da aposta e do bilhete. Esqueceram até que não eram homens, de acordo com a lógica do dono do bilhete. Beberam até não se agüentarem nas próprias pernas.


Aristides se levantou, alcançou a carteira de couro preto e tirou os quatro reais para pagar as quatro caninhas que tomara. Foi ao balcão, deu um último gole no copinho que não tinha secado e seguiu caminhando, cambaleando , pensando no que poderia ter feito.


Devia ter chegado lá, mostrado sua caderneta e levado o bilhete do valentão. Ainda diria a ele que era muito homem, mais do que um homem, um comentarista nato, um cara responsável pelas estatíticas, desses que tem na tevê.


Pensou, mas não disse, não apostou e não levou o bilhete. Abriu a porta de casa, deixou o corpo cair no sofá estragado e por falta de força nas pernas já cansadas e embriagadas, dormiu por lá mesmo esquecendo, ele também, do Flamengo, da aposta e do bilhete.


Passaram-se umas muitas quartas-feiras até Aristides voltar ao bar. Tinha se resfriado e pensara ser o sereno da noite o responsável por sua moléstia, decidira então, numa tacada só, evitar o bar e com isto evitar as caninhas; seria melhor para ele, arrumaria uma mulher agora, porque mulher nenhuma gostava de boca com bafo de cana, pensava.
Ao tempo que pensava, imaginava que gostava do bar, que se não bebesse tanto poderia ir tranquilamente. Era sua única diversão, não iria abandoná-la por mulher alguma. “ Ah, as mulheres que apareçam nos outros dias da semana, a quarta-feira é minha”, pensou revoltado consigo mesmo o Aristides.


Foi logo ao entrar no bar que percebeu mais um murmurinho. Olhou para o relógio, olhou para a tevê e o jogo ainda não tinha começado, não entendera o barulho. Foi quando sua curiosidade, mesmo tímida, resolveu abrir a boca:



- O que tá acontecendo? Nem começou ainda. – Perguntou ao garçon.


- O que aconteceu? Meu amigo, o que aconteceu é que o Alves ganhou na mega-sena, com aquele mesmo bilhete que ele tava outro dia aqui, não sei se você viu, mas o Alves apostou o bilhete premiado, como ele mesmo dizia. Acontece , meu amigo, que o homem agora é milionário e com certeza vai chegar aqui com o carrão e cuspir na nossa cara, e ainda mais, dizer que a gente não é homem nem nada. Mas tem uma sorte aquele Alves!
Aristides ficou uns segundos sem acreditar, balançava a cabeça para ver se as idéias se sacudiam um pouco e formavam de volta o seu juízo. Imaginou como tudo poderia ter sido diferente, imaginou ele mesmo descendo do carrão, dando ordens aos arquitetos na construção e cuspindo na cara do Alves e de todo o mundo as palavras “ Eu sou homem, tá vendo? E ainda sou um homem rico!”.


O pedreiro sorriu levemente com o que imaginara, viu-se rico, de carrão e esnobando a turma do
Alves. O sorriso que brotou em seus lábios por entre seus dentes cariados foi verdadeiro, mas o que tinha de verdadeiro tinha também de efêmero: A imaginação era mesmo frágil e ele não era homem, nem muito menos rico. Ficou ali, a anotar os resultados de mais um jogo, na mesa de sempre, bebendo as quatro caninhas.
No caminho para casa pensou no Alves, no carro do Alves e tomou algumas resoluções em sua vida, as quais listou em casa, na mesma caderneta:


Número 1: Começar a apostar.
Número 2: Arranjar uma mulher que sonhe com água.

segunda-feira, agosto 24, 2009

Soneto do amor total




Amo-te tanto, meu amor... não cante

O humano coração com mais verdade...

Amo-te como amigo e como amante

Numa sempre diversa realidade

Amo-te afim,

de um calmo amor prestante,

E te amo além, presente na saudade.

Amo-te, enfim, com grande liberdade

Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente,

De um amor sem mistério e sem virtude

Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim muito e amiúde,

É que um dia em teu corpo de repente

Hei de morrer de amar mais do que pude.



Vinícius de Moraes