segunda-feira, agosto 29, 2011

Um conto chinês ou até onde a alteridade nos conduz



Um argentino ermitão, um chinês perdido e uma mulher apaixonada. Essas são as personagens centrais de Un cuento chino (Argentina, 2011). A trama busca lançar luz sobre um relacionamento insólito mantido por acidente entre Roberto (Ricardo Darín, de O segredo de seus olhos, Abutres e O filho da noiva) e Jun (Ignacio Huang).

Darín, que consegue ser unânime em críticas quanto a sua vibrante e precisa atuação, vive uma personagem solitária, imersa em um mundo obsessivo em que não se come os miolos dos pães. Roberto é dono de uma pequena loja de ferragens a qual, herdada de seu velho pai, serve de palco para muitas atitudes típicas de um verdadeiro rabugento, como, por exemplo, maltratar clientes que buscam parafusos.

Roberto, apesar de suas próprias manias, herdou outras de seus pais: costuma colecionar notícias de jornal que guardam em comum o fato de serem estranhas: a prova da hipótese de Roberto de que a vida não faria o menor sentido. É com esta certeza que Roberto coleciona recortes de jornal que comprovam a veracidade de sua hípótese, mas o estranho hábito vai além: é através do mergulho nas vidas alheias, desconhecidas, que Roberto consegue dar um sentido a sua própria vida: aí está o paradoxo: é tentando obsessivamente provar que a vida não tem o mínimo sentido que Roberto vai reunindo e colecionando sentidos para sua , uma motivação que o faz acordar todos os dias e apagar a luz de seu quarto, indefectivelmente, às 23 horas da noite.

Tão sem sentido como as notícias bizarras colecionadas por Roberto é a vida do chinês Jun, perdido na Argentina desde a tragédia que matou sua noiva: um desastre insólito, um fato considerado por muitos improvável, bizarro: eis que surge, do alto do céu, uma vaca a mugir que acaba atrapalhando o pedido de casamento que Jun faria à noiva, que não resiste à pesada vaca. Assim a história começa e também começa a relação estranha mantida entre Roberto e Jun.

Apesar da incompreensão entre os idiomas, os hábitos e culturas tão diferentes entre Argentina e China, Ún cuento chino vai além do óbvio: o que está claro no filme - e esta deve ter sido a verdadeira intenção de seu realizador Sebastián Borensztein - é que para além dos idiomas é a própria subjetividade que afasta e ao mesmo tempo une as pessoas.

O atrapalhado chinês que não consegue pronunciar sequer o nome de Roberto , estranha não só a sisudez do anfitrião argentino: estranha-lhe os hábitos, o gosto pela comida, a casa, os recortes. O belo e simples filme nos mostra nada de novo e, ao mesmo tempo, nos coloca à frente uma verdade que parece sempre inédita: o Outro nos constitui e nos dá um lugar em seu discurso, e por isso existimos, é através do olhar do Outro, representado pelo chinês que "é limpo, calado e colaborador", que Roberto consegue encontrar um sentido em sua vida tão perpassada pela própria incapacidade típica dos obsessivos de lidar com os sentimentos.

O pobre e inadequado chinês ensina a Roberto coisas sobre sua cultura, sua gente, sua língua , mas ensina, sobretudo, lições sobre os sentimentos e como estes podem ser acessados: solidariedade, compaixão e agradecimento estão presentes neste sensível filme como se fossem lições das quais Roberto deveria entender. Apesar das confusões entre as línguas e da necessidade de tradutores, Jun e Roberto se entendem pelo fio mais tênue que os liga à vida: o insólito e trágico acidente com a vaca e sua consequência, o não menos insólito encontro entre o argentino solitário e rabugento e o chinês sensível e observador.

A pista sobre o que de fato está em jogo neste filme é-nos jogada pela personagem de Muriel de Santa ana, Mari, de quem Roberto não consegue se aproximar da maneira como deveria segundo os próprios sentimentos. Mari insiste, convida e oferece afeto à Roberto que, diante disto, não consegue expressar nada além do que uma cansativa e obsessiva educação. Enquanto isto, Jun consegue comprender bem o vínculo afetivo que existe entre o novo amigo e a moça romântica, mesmo sem falar uma palavra em espanhol.

O filme gasta seus quase noventa e quatro minutos falando, inclusive nas entrelinhas, de como precisamos do olhar do Outro, esse mesmo outro que nos constitui à medida que nos desaloja, nos desterritorializa em nosso próprio espaço, em nossa própria subjetividade.

Era preciso que Roberto encontrasse Jun, e este filme, sincero, convicente e coeso mostra todo esse desencontro diante do Outro, tão bem representado pelo estrangeiro, pela "cultura estranha", o encontro como o novo, como o diferente faz com que ambos ultrapassem os próprios limites e, com isto, encontrem o verdadeiro sentido das suas vidas, mesmo que isso tenha sido determinado no fatídico dia em que uma vaca caiu do céu.