quarta-feira, agosto 13, 2008

O cantor de barzinho



Fiquei aqui pensando sobre o que pensa o cantor de barzinho. Vamos ser sinceros, poucos se interessam em escutar quem está tocando em tal bar, o que está tocando e mais, muitos inclusive reclamam por serem persuadidos (pra não dizerem obrigados) a pagar o tal "couvert artístico".

Não foi uma vez. não foram duas que eu ouvi algum comentário maldoso acerca do cantor de barzinho, seja devido ao seu repertório, seja devido a sua voz.

O certo é que, na falta de alguém mais interessante para criticar, na falta do que fazer, preferimos falar do cantor de barzinho.

Há alguns mistérios cercando essa entidade tão comum nos dias atuais, essa pessoa que alegra ou entristece - dependendo do ponto de vista - o dia das pessoas que, despretensiosamente, decidem ir a um barzinho, comer um petisco e conversar com amigos.
Eis alguns dos mistérios:


No que o cantor de barzinho pensa enquanto toca?


Veja você, ponha-se no lugar do pobre coitado: Ele está ali, cercado de gente que não presta atenção nele, observa as pessoas em grupo, comendo, rindo , namorando e discutindo. Já ele...ele está ali, numa espécie de isolamento, sentado em um banquinho, junto a uma mesa vagabunda na qual pode-se ver um copo d'água. Em alguns bares mais decentes oferecem cerveja ou refrigerante.

Mas, no que pensa aquele ser que está ali sozinho, com seu violão? Solitário, na vida boêmia, não lhe resta muito a não ser observar os frequentadores do bar e tocar seu repertório chatíssimo de MPB.

Começa a sessão Djavan, porque não pode faltar " E o meu jardim da vida, ressecou, morreu, no pé que brotou Maria, nem margarida nasceu". Ouve alguns aplausos e é com isto que ele tem que se contentar.

Não sei se o cantor de barzinho pensa nas pessoas que, empolgadamente, cantam junto com ele, ou então esboçam alguma reação ao ouvir os primeiros acordes da música preferida.

Na verdade já ouvi um cantor de barzinho se irritar com um senhor muito folgado que, desesperadamente, tentava convencê-lo a tocar "Oceano". Ao que minha experiência indica, parece que para ser cantor de barzinho, o sujeito deve fazer um curso intensivo de Djavan, Cazuza e Ana Carolina. Ou você aprende uma ou duas músicas de cada ou jamais será um cantor de barzinho decente.


Alguém percebe o erro do cantor de barzinho?


Essa é difícil. Levando-se em consideração que o cantor de barzinho é um ser solitário em seu banquinho (rimou), e que as outras pessoas estão mais preocupadas com suas conversas e refeições do que propriamente com o que está entrando em seus ouvidos, arriscaria dizer que o cantor de barzinho é uma figura criativa no que se refere às melodias e letras de música. Ele mesmo, visto não lembrar de um determinado acorde, põe-se a inventar um lá ou um dó aonde não tem e pronto, eis a nova música.

O mesmo acontece com a letra. Canso-me de ouvir contribuições originais a composições do Cazuza ou mesmo de Chico Buarque toda vez que vou a um barzinho cuja atração é "música ao vivo".

Se você não estiver tão preocupado com o que come ou com sua conversa, saberá apontar a invenção original do cantor de barzinho. Sou a favor que se desmascare tal enrolada, somente para ver a criatura pacata, herdeiro da bossa nova de João Gilberto e amante da boa MPB desconcertar-se, seria interessante apontar algum erro com a única intenção de auxiliar o cantor a concentrar-se mais na tarefa do entretenimento a qual se presta.


Será que tem fome?


Isso daria uma pesquisa. Observe: Ele está ali, num ambiente em que a comida é a atração principal, devendo, portanto, portar-se como "extra" ou um "plus" do tal restaurante/bar. Ora, não é à toa que não se diz "Música ao vivo e comida" e sim "Comida e música ao vivo". Dito isto, é notório que a atração é a comida, o atendimento, o ambiente e , também, o fato de o local oferecer música.

Então está ali a figura solitária, entoando os versos "Vem me fazer feliz porque eu te amo...", seu olhar involuntariamente pousa num prato de batatas fritas da mesa ao lado, percebe então que daria um dedo para poder beliscar aquela batata crocante, amarelinha e suculenta. Porém, ossos do ofício: Não pode, veio ali para tocar e entreter, comer é secundário, no exercício da profissão.

O máximo que pode fazer, no caso de fome extrema, é tentar educar seu olhar para um ponto fixo, uma parede, um coqueiro, uma pilastra, qualquer ponto, enfim, que o livre das tentações gastronômicas.

Outra medida seria a sublimação: Cantar para esquecer. Proponho trocar "Oceano" por "Te devoraria" , ambas sao do Djavan e cantor de barzinho que não toca Djavan não pode ser chamado de cantor de barzinho.


O que inspira um cantor de barzinho?


Outro grande enigma. Como já foi dito anteriormente, é bem provável que as pessoas não prestem atenção no cantor posto que a comida e as companhias, na maioria das vezes, são mais interessantes do que aquela figura solitária renascida dos anos 50 (quando tem o bom gosto de ser amante da Bossa Nova). É sabido que quase ninguém presta atenção se a letra é errada em algum momento, muito menos se algum acorde foi inventado. Fato é que o sujeito que tem um violão e 10 dedos para manuseá-lo jamais estará em perigo em se tratando de MPB: invente qualquer coisa, dedilhe e cante Cazuza. Na dúvida, toque Legião Urbana, "Será" é uma boa pedida.

Bem, que seja. O que importa é tentar entender o que serve de inspiração para o cantor de barzinho. Será uma mesa muito animada que chama a sua atenção? Será que, no fundo, espera reconhecimento por parte das pessoas que estão "escutando" sua música? Não sei qual é a inspiração, mas acredito haver alguma. A vida é muito solitária e triste se não a temos, e todos, até mesmo o cantor de barzinho merece alguma. Sua vida é boêmia, noturna, certamente tem alguma inspiração, não o subestimemos.


Como será que reage a pedidos de música?


Então a criatura está lá, em seu banquinho, com seu violão, desviando seu olhar da batata frita suculenta da mesa ao lado, procurando sua inspiração maior e, ao mesmo tempo, atento para não errar tão feio os acordes e as letras das músicas as quais se propõe cantar quando ouve alguém gritar " - Toca Yolanda!". Geralmente são as músicas mais odiadas pelos cantores aquelas que a "platéia" pede "bis". Isso é cientificamente comprovado (estou brincando).

Por um lado, suponho que o cantor de barzinho fique feliz: finalmente alguém reconheceu seu talento ou, melhor dizendo, finalmente alguém mostrou-se atento a sua música, só por esse motivo, deve prestar homenagem ao atento cliente e tocar a música que lhe foi pedida. Mas, e se não aguentar mais? E se o cliente estiver completamente alcoolizado e não parar de pedir bis? Aí cabe o bom senso do cantor de barzinho: desvencilhar-se do chato de plantão sem ser mal educado.

Outra vez ouvi um caso exemplar: Um sujeito, fora de seu juízo normal, pedia desesperadamente para o cantor do barzinho tocar "Pais e filhos". O cantor inicialmente fingiu não escutar, tocou outra coisa. O sujeito então, com porções consideráveis de álcool até no suco gástrico, insistia e entoava os versos do refrão em voz alta: "É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã...".
Percebi a irritação no semblante do cantor que, no momento, tocava Bossa Nova. Educamente, então, ao fazer o intervalo breve entre uma música e outra comentou: " - Veja, amigo, essa música já foi cantada, agora, espera o próximo show, hehehe".

Show? Por acaso ele acha que os 2m² que ocupa próximo a cozinha do bar deve ser considerado palco e que pode chamar aquilo que faz todas as quintas-feiras de show? com platéia e tudo? Não sei, aí é uma questão de "ego" e a vida me ensinou que, de acordo com nossos desejos mais secretos, podemos ser quem quisermos.

O que importa e que ressalto aqui é a educação e os bons modos do cantor que, se não fez a vontade do antipático sujeito, ao menos prestou-se a tocar outras músicas do Legião Urbana, mostrando ética e diplomacia.


Como se pode notar, o cantor de barzinho também tem coração, é uma pessoa, como eu e você. Sabe o que agrada e o que desagrada, tem fome, inspiração, aborrece-se. Tem sentimentos, enfim. Depois de duas ou três horas expediente, deve ser duro escutar comentários como " Mas eu ainda vou ter que pagar porque não sou surdo?" "Nossa, 7 reais de couvert artístico? Mas nem ouvi nada?".

É...Não é fácil viver de música nesse país. Melhor deve ser viver de futebol.