terça-feira, dezembro 01, 2009

Nem Pasárgada nem Canaã: "As cidades de Freud"





" A psicanálise é projetada como uma cidade sem muros e sem fortificações, como uma ‘fábrica do pensamento’ , livre para a pesquisa e governada por uma única política, a da ética. É totalmente diversa da cidade utópica ou da cidade celeste que se fundamentam no princípio de uma harmonia necessária”.


Giancarlo Ricci



Em um livro que mais se parece um diário de viagem, Ricci guia o leitor pelas cidades maravilhosas que fizeram parte do itinerário de um viajante ilustre: Sigmund Freud. Suas constantes idas e vindas, seus trajetos por vezes labirínticos , tal como Ricci os avalia, outrora montanhosos contribuiram para a elaboração e desenvolvimento do arcabouço teórico da chamada "bruxa metapsicologia freudiana", a Psicanálise.


Em As cidades de Freud ( Zahar, 2005), Ricci nos apresenta a geografia, os sotaques diferentes, os hábitos e costumes de cidades pelas quais Freud perambulou e sem as quais seria mesmo difícil imaginar o desenvolver da história do movimento psicanalitico.


Assim o autor nos guia por Viena, Berlim, Frankfurt e mais outras 37 cidades as quais tiveram extrema importância para o pensamento freudiano. O mais interessante parece ser o artifício que Ricci utilizou: as próprias palavras do pai da psicanálise. Servidos de trechos retirados das correspondências de Freud para sua noiva, Martha Bernays, do amigo Fliess e do futuro desafeto Jung, Ricci nos leva a conhecer ainda mais o homem Freud por trás do criador da teoria psicanalítica.


Assim, somos levados em seis capítulos a mergulhar no relevo montanhoso de Karlsbad e quase enxergar suas águas termais as quais tão bem faziam à saúde de Freud, também conhecemos um pouco da impaciência de Freud diante da agitada Paris, pois, segundo confidencia à noiva o médico austríaco:


" A cidade e as pessoas eu as sinto estranhas, parecem de um tipo absolutamente diferente do nosso; acho que são todos possuídos por mil demônios... Tenho a impressão de que não são capazes nem de vergonha nem de horror, todos - homens e mulheres - aglomeram-se igualmente em torno da nudez da vida como dos cadávares da Morgue e dos cartazes horripilantes afixados pelas ruas..."

(Ricci, 2005, p. 64)


Ora, era o espanto de um homem que sempre se julgara, possuir , em essência " um coração alemão-provinciano" diante das aglomerações, dos cafés e da agitação da grande Paris que nada lembrava a natal Morávia. Freud também, como Ricci sustenta, não gostava de Viena; não seria exagero também dizer que Viena era odiada por Freud com a mesma força com que odiava o jovem médico das histéricas. De acordo com o autor de As cidades de Freud, Viena pode ser considerado o ponto mais baixo do itinerário da viagem de Freud rumo à cidade da Psicanálise.


Nesse momento, cabe perguntar: se Viena é o ponto mais baixo, qual seria, então, o clímax desta viagem pela qual o homem Freud percorre e transgride os próprios limites rumo à cidadania única, a cidadania da cidade psicanalítica?


Não seria puro acaso a nacionalidade italiana de Ricci: a cidade considerada o marco, o cume desta "viagem de uma vida", era Roma, a qual, segundo nos informa o autor, sempre fora protelada, como que deixada para depois no itinerário freudiano. Depois de ter percorrido Palermo, Veneza e Milão, Freud finalmente visita a cidade de seus sonhos e de seu herói Aníbal.


Um lugar simbólico, sem dúvida, que representa também um divisor de águas para a história da psicanálise: Em 1901 Freud chega à Roma e pela primeira vez pode-se dizer que já há um esboço de psicanálise, um mapa bem delimitado ( A Interpretação dos Sonhos tinha sido lançada um ano antes, marcando um novo início para a teoria).


O itinerário, depois de ultrapassar esta primeira fronteira, não se esgota: ainda há muito a percorrer, pessoas a conhecer e , sem dúvida, Freud foi um aventureiro viajante rumo a um lugar que nem mesmo ele sabia precisar ou localizar: a riqueza de sua própria invenção.


Assim, acompanhamos esta viagem e com o passaporte na mão chegamos ao Novo Mundo: A América do jovem Brill, a América que hoje denigre e pinta com cores outras o esboço que o precursor deixou-nos de herança.


De acordo com o que se sabe, através da biografia de Ernst Jones, Freud murmurou nos ouvidos de um amigo, logo ao avistar a Estátua da Liberdade: "Mal sabem eles que estamos a lhes trazer a peste". Honrado pela Universidade de Worcester, em Massachussets, querido por muitos acadêmicos como William James, Freud conhece Nova York, Worcester e nada do que vira ali, no Novo Mundo, lhe enche os olhos: continua achando tudo muito cansativo, comemorando a volta ao seu velho continente , como escreve para a filha Mathilde:


" Estou muito feliz por estar de volta e ainda mais feliz por não ter que viver na América". ( Ricci, 2005, p.144).


Parece que Freud já previa, podemos arriscar, os riscos que sua psicanálise sofria em nome da adequação ao american way of life. Sem dúvida o pragmatismo e o puritanismo americanos contribuiram para uma coisa outra que foi criada no lugar da teoria do inconsciente freudiano; a chamada Ego Psychology emerge no continente americano fazendo o inconsciente desaparecer e transformando o psicanalista em meros "espremedores de cérebro" ( Ricci, 2005, p. 142).


À despeito desta mediocrização que sofre a psicanálise em solo americano, Freud continua suas viagens, dá prosseguimento a seus novos empreendimentos, às vezes retornando à velhas questões que nunca pareciam saciadas, resolvidas ( vide o caso de Moisés e as várias vezes em que Freud retorna à mesma questão), noutras anunciando novos conceitos, novas inspirações, como se estivesse sempre vindo de Karlsbad , a cidade termal de que eu já falei.


As cidades de Freud nos mostra um viajante, um homem de seu tempo, preocupado com a ética da nova disciplina que criara, um judeu que não utilizava a origem para vitimizar a si e nem a seu povo, um homem cuja laicidade auxiliou o desenvolvimento de sua própria metapsicologia, que, se não pode hoje ser entendida como um percurso acabado, um projeto concluído, tampouco este fato torna , nós, psicanalistas, psicológos ou somente curiosos da área psi, menos aptos para fazermos nós mesmos os nossos próprios mapas, seguindo as nossas próprias rotas rumo à cidade psicanalítica a qual Freud alcançou, no fim de sua vida, ele mesmo um homem originalmente de fronteira, nos ensina a romper os limites e ir mais longe.


É a isto que Ricci nos convida neste instigante e belo livro.