sábado, novembro 13, 2010

Encontros com a Poesia de Osvaldo Chaves



Era para ser apenas mais um poema, algo do qual poderia falar, me debruçando sobre o tema que tanto me interessa , o tema da interface Psicanálise-Literatura. Quando me foi feito o convite, no início deste ano, para participar da coletânea Encontros com a poesia de Osvaldo Chaves (Edições Bagaço, 2010), me senti inicialmente impactada: Como seria escrever sobre um poeta que não conheço? Como seria escrever um capítulo de livro?


De fato, isso assustava, mas confesso que, a despeito do primeiro amedrontamento, veio a curiosidade de conhecer a obra de Osvaldo Chaves, padre e poeta cearense que, infelizmente, não tem sua obra reconhecida no restante do país.


Organizado pelas professoras Jerzuí Mendes Tôrres e Maria Heloísa Melo de Morais, Encontros com a Poesia de Osvaldo Chaves, é uma coletânea que contou com a colaboração de oito críticos literários que disseram sim ao delicioso convite de se debruçarem sobre a obra Exíguas (2008), coletânea em que Chaves reune poemas com as mais variadas temáticas, escritos em diversos períodos da vida do poeta.
É interessante ressaltar que o lançamento de Encontros com a poesia de Osvaldo Chaves cumpre com a função de disseminar o conhecimento sobre a obra de um poeta tão consistente como padre Osvaldo Chaves, mas que, devido à dificuldade de publicação tão típica do nosso país, não pôde ser conhecido por outras pessoas fora do Ceará

Como participante desta iniciativa de Jerzuí e Heloísa, agradeço o convite e agradeço, especialmente, a oportunidade de ter conhecido um sítio tão singelo, tão vivo e tocante, como o Angelim. O poema Angelim Intacto, obra que me escolheu, hoje faz parte dos seletos poemas que guardo com carinho, porque algo me acrescentaram. Sobre esse algo, não sei dizer o quê, mas sei que o sítio me tocou, me escolheu e por isso, agora, também é meu.


O poema, como todo poema, não requer explicação. Mas, se alguma cabe, digo que o poeta, em Angelim Intacto, convida o leitor a conhecer o sítio de sua infância. Em sua essência de poeta, Osvaldo Chaves nos guia pela mão , por entre os cômodos, as escadas, os alpendres e os pés de jabuticaba lá do Angelim que resistiu às secas e a todas as intempéries da natureza, para permanecer vivo, intacto, na memória de poeta que, em cada estrofe, nos convida a sentir a atmosfera, os aromas, tudo que rodeia a sua infância, jamais perdida, porque transformada em arte.

Segue abaixo um trecho deste poema tão comovente, que tanto me mobilizou. O angelim, surpreendentemente, tornou-se meu, porque o senti, porque o escutei, porque o testemunhei, em minha memória, através do dom da poesia:



Nem tudo morre, muita coisa fica

Intacta:

o aroma, o gosto, o som, a imagem e o contato

são a alma imortal das coisas transitórias.


Depois de morto o olfato,

É vida, na memória, o aroma das coisas

Apagada a visão,

É vida a imagem, o relevo e a cor

Morta a audição, ficam vivos os sons


Gravados

Nos microssulcos do íntimo do espírito

terça-feira, novembro 09, 2010

Meus quatro segundos com Jean-Pierre Lebrun



Se você tivesse a sua disposição 4 segundos de frente com seu ídolo, como usaria estes momentos de maneira proveitosa de modo que jamais se arrependesse destes momentos infinitos, duradouros, eternos?

Pois bem, a história seria quase essa, senão fossem os detalhes que a diferem de qualquer outra mostrada em algum programa de televisão. Tudo aconteceu no XXXIX Encontro Anual do Centro de Estudos Freudianos do Recife - CEF/Recife. O palestrante-estrela-da-vez era Jean-Pierre Lebrun, psicanalista belga, autor de O mundo sem limites, A perversão comum, O futuro do ódio, entre outros.

Lebrun é sumidade no que tange à Psicanálise contemporânea, tendo escrito em dupla com Melman O homem sem gravidade, o psicanalista belga é firme em suas considerações, simpático em sua postura e articulado no que pretende expor. Em seu curso sobre "Os estados-limite" defende que o psicanalista de hoje deve começar a considerar estes estados não como uma quarta estrutura, após as conhecidas: Neurose/Psicose/Perversão. Lebrun vai além em sua exposição, relembrando aos desavisados e aos resistentes que o inconsciente é social, que não se concebe um trabalho de humanização, de psicanálise que prescinda do entendimento das realidades sociais e, como se não bastasse, ainda faz menção a certas instituições psicanalíticas que funcionam nos moldes de instituições religiosas.

Lebrun é resoluto ao dizer que a cada novo paciente o analista se depara com a urgente necessidade de reinventar sua clínica, de atualizar o que chama de recursos de "navegação psicanalítica" para que sejamos - e aqui me coloco no lugar do psicanalista, por pura pretensão - ainda úteis nesta sociedade contemporânea.

Tudo caminhava para a perfeição. Lebrun falava diante de um público sedento de conhecimento sem pestanejar, sem beber um gole d´água, simpática e pacientemente aguardando que sua fala fosse traduzida para o bom e velho português , língua-mãe daqueles que povoavam a plateia do evento e que, por uma infelicidade, não poderiam ter acesso á Lebrun em francês.

Eu lá estava, agora chegou a hora de me situar nesta historieta: estava na primeira fila, do primeiro dia de curso, busquei com unhas e dentes agarrar-me àquela fila inaugural como se dali pudesse captar melhor o conhecimento que Lebrun fazia transbordar em meus ouvidos. Não raramente podia me dar conta do feito que era, para mim, uma psicóloga que sempre quis mesmo ser psicanalista, estar ali, diante daquele homem que parecia tudo saber: haja suposto-saber nisso tudo.

Somente em estar ali e poder dividir com Lebrun, a poucos metros de mim, a mesma cota de oxigênio já era honra o suficiente para me encher de orgulho e preencher um ano inteiro de aulas na Universidade. Acontece que , tal como nos ensina a Psicanálise, dá-se o unheimlich, o desconhecido, o estranho motivador deste pequeno relato sem pretensão: Estou eu, em minhas idas e vindas de elevador, buscando ou trazendo alguma coisa, num determinado momento em que o curso estava em seu intervalo: Tudo se dá.

Quando estou eu mais preocupada em apertar o botão certo do elevador, me deparo com o unheimlich em pessoa: aquele sujeito branco, com cara de gringo e um jeito um tanto quanto bonachão, jeito de pai ou de vô, diriam outros. Era ele: Jean-Pierre Lebrun, em carne e osso, na mesma viagem, no mesmo elevador, naqueles infinitos 4 segundos que eternizaram o dia 05 de novembro de 2010.
O que dizer em quatro segundos que traduza admiração e respeito? O que poderia eu, que não sei francês, falar àquele homem que é considerado um dos pensadores contemporâneos mais influentes da disciplina da qual venho buscando me inteirar há quase uma década?

É preciso dizer que também houvera antes deste, um outro encontro com Lebrun, também quase particular e que durou cerca de 4 segundos, agora são 8 segundos em que Lebrun se dedicara a mim ou só tivera a mim como pessoa para olhar. Os quatro primeiros aconteceram quando eu , seguindo uma fila imaginária criada por alguém igualmente sedenta, decidi pedir-lhe um autógrafo em meu exemplar de O Mal-estar na subjetivação. Mais uma vez me vi diante do obstáculo da língua: dara um dedo para poder falar , em francês: "Por favor, o senhor poderia me dar a honra de autografar este exemplar?". Somente isto, não precisava de um francês para traduzir um Seminário de Lacan, bastavam essas palavras.

Não o fiz , o máximo que pude fazer foi esboçar um gesto que universalmente pode ser compreendido como: " Escreve aqui?", passando-lhe a caneta a qual Lebrun gentilmente aceitou e, cuidadosamente tratou de entender meu nome. Pronunciou um breve: "Miriam", com todo sotaque que Deus lhe deu e rabiscou com sua letra um tanto quanto ilegível até mesmo para quem sabe francês: " A Miriam , com toda minha simpatia. Jean-Pierre Lebrun, Recife Novembro 2010" ( Claro que contei com a ajuda de uma pessoa que traduziu tanta simpatia que eu julgava ser apenas um estranho "spaghetti, tal a dificuldade no francês e no deciframento da letra).

Ok, como era Lebrun, deixei passar o que raramente perdôo: a falta do famigerado acento no primeiro "i" do meu nome, era a assinatura de Lebrun e isto equivale a um autógrafo de Freud na minha Interpretação dos Sonhos ou mesmo de John Lennon em meu Imagine. Tudo quase igual em importância para mim.

Esta foi a primeira vez que obtive um autógrafo de alguém , em outro evento fiz o que sempre odiei nos outros: pedi para que David Zimmerman tirasse uma foto comigo. Odiei, a foto ficou boa, mas me senti tão tiete que nunca mais repeti o feito e no meu álbum com celebridades psicanalíticas só consta uma foto, e será a única.

Mas voltando ao elevador, senti uma verdadeira necessidade de dizer-lhe tantas coisas, tantas que, naquele exato momento consegui fazer rapidamente uma lista mental do que poderia dizer, perguntar, questionar.

Começaria assim: "Lebrun, Lebrun!Sou sua fã, Adorei o Mundo sem limites, não conheço de fato tanto sua obra, mas me identifiquei tanto com você, com sua luta em dizer que Psicanálise também é social , com sua maneira sutil e firme de demonstrar sua relação de amor e ódio com Melman, sobretudo me identifico com sua posição de 'marginal' no que tange ao que concebe como psicanalítico, longe do centro parisiense, tal como eu me sinto longe do centro acadêmico ...". " Ah, Jean, posso chamá-lo assim?, antes que você fale alguma coisa, quero agradecer, porque eu só tenho a agradecer a oportunidade de ver assim tão de perto um intelectual, assim, como você e simples, simples que nem gente normal!"

Sim , isso seria uma demonstração pura de afeto e admiração, muito confundida com o que poderiam dizer "idolatria", "tietagem". Não pretendia apenas isso.

Claro que eu poderia contar com a possibilidade de o elevador emperrar e que ficássemos alguns minutos, quem sabe horas, quem sabe mesmo um dia inteiro, a espera do socorro, conversando sobre a função paterna, a função patriarcal, o declínio da função paterna, as cores do incesto, as cores do Édipo...seria um verdadeiro arco-íris.

Talvez não durasse tanto, talvez durasse mesmo apenas quatro segundos os quais eu deveria aproveitar inteiramente desabafando o que me assombra há tanto tempo: "Lebrun, Lebrun, por favor, me diga e ensine a este povo que Psicanálise é social, eu estou cansada de dizer, de divulgar, aonde posso vou e falo sobre isso, deixo claro, mas preciso de você ao meu lado para continuar com essa cantiga enfadonha ' o inconsciente é social' , 'somos sociais', 'a linguagem é social', por favor, me ajude, faça essa gente ver!" .

Muitas coisas poderiam ser ditas, mas naquele momento, porque não falo francês, porque não tenho coragem suficiente e porque não havia tempo, substituí todas as minhas dúvidas, minha tietagem, minha admiração por um singelo sorriso, ao qual Lebrun, em sua simpatia quase paterna, me retribuiu. O resto que eu poderia dizer seria invenção, não disse nada, retornei ao meu quarto no qual pude espalhar: "vim com ele no elevador!". O resto seria lenda.