segunda-feira, junho 29, 2015

12 provas inquestionáveis de que Los Hermanos foram influenciados pela Psicanálise

Quem é fã de Los Hermanos certamente se identifica muito com as letras da banda. Segundo Maria Ribeiro, diretora do documentário “Esse é só o começo do fim das nossas vidas” (2014), a banda foi responsável por espalhar um discurso amoroso entre as pessoas, há toda uma vibe “all you need is love” nas músicas dos quatro rapazes de...enfim, dos quatro rapazes barbudos e isso não poderia passar despercebido.

Há um fato desconhecido por muitos e aqui o revelo para quem não saiba: há uma grande inspiração por trás das letras de grande repercussão da banda -  e não estamos falando de Beatles.

Nesse momento alguém poderá se remeter à figura mítica de Anna Júlia, figura que se tornou conhecida em todo território nacional por volta dos já longínquos anos 2000. Engana-se, caro leitor e amante de Los Hermanos. Não é Anna Júlia, nem Aline, nem Bárbara, nem Melissa, não é nenhuma dessas.

A grande inspiração de Camelo e Amarante em suas composições é o discurso psicanalítico. Pasme você.

Se você ignorava o fato da dupla mais famosa da indie music brasileira ter compartilhado suas mazelas com analistas, jorrado lágrimas sofridas em tantos divãs por aí, acompanhe atento algumas provas cabais que não vão deixar dúvidas de que as letras da banda têm sim muito de Psicanálise, sobretudo no que tange aos desenvolvimentos freudianos e lacanianos.

As pistas estão em muitas das letras e talvez o querido leitor, tomado pelo arrebatamento típico de quem é fã, não tenha percebido o recado nas linhas e nas entrelinhas, pois muito tomado estava de um afeto indomável: A peste freudiana estava à solta e Camelo e Amarante foram responsáveis por traduzi-la em música, nos seus acordes chorosos, e até mesmo nas melodias mais bonitas, há um pouco de castração, sim, inevitalmente. Mas há um alento: somos todos falasser, somos seres de linguagem, e que bom que existe a música!

Se você não está convencido disso, duas palavras talvez te tragam alguma iluminação: Cara estranho. Não há retrato mais digno da castração do que nessa composição que narra uma pessoa desalojada em seu ser, desassossegada em seu corpo-carne à mercê do gozo alheio. Cara estranho é sujeito castrado, e Miller concordaria com isso (Vale dizer que também o tal “Cara valente” é tão castrado quanto, mas talvez, por encenar tão bem possuir o falo, possa parecer um homem mais viril, na verdade, o cara valente é o mesmo cara estranho).

Nesse momento talvez você esteja cantarolando as canções em sua mente, e quem sabe até concorde comigo. Não se tratando do caso, trago mais algumas evidências que esclarecem o argumento que venho sustentando até então: rolou muito divã e a indie music deve muito à Psicanálise.

Iniciemos pelo começo de tudo, com a famosa Traumdeutung lançada ao mundo em 1900. Poucos devem lembrar de algo anterior ao famigerado sétimo capítulo desta bíblia psicanalítica, mas cabe aqui uma alusão ao prólogo tirada de “A divina Comédia”: “Flectere si nequeo Superos, Acheronta movebo”, que nada mais significa do que “Se não posso comover os deuses de cima, moverei o Acheronte”.

À frente de tudo e de todos, Freud entendia que havia um sentido no sonho que precisava ser descoberto, e isso era polêmico, era necessária uma dose de coragem para falar de tal assunto devido ao zeitgest da época, Freud mexeu e remexeu o Acheronte e lá achou muita coisa que falava à alma e que hoje vemos musicada.

Tal como uma escrita hieroglífica, o sonho se mostra confuso e desconexo, cabendo ao analisante amarrar os fios que podem fazer da experiência onírica um relato inteligível. Como Freud já dizia que os poetas e artistas o precederam na descoberta do inconsciente, deixá-los-ei apenas com as sábias palavras “loshermânicas”. Seguem minhas provas, são apenas doze, e a leitura do que vem abaixo requer coragem e uma dose de empenho:

(1)

“[...]O que é um sonho ruim,
E o que é um sonho bom.
Que diferença? a vida é igual,
assim e eu não sei
Eu não sei...Quem bate aí?
Se é pra eu te ver então deixa eu dormir.”

Como se nota facilmente, “Os Pássaros” parece relatar a confusão do sonhado diante do sonhador, a pérola virgem na ostra do mar psicanalítico. A confusão, o pesadelo, a realização do desejo parecem tomar conta de Amarante – será que não podemos notar em sua voz esse mesmo tom perdido, angustiado?

Conte, amigo, conte as vezes em que se nota nas composições do autor o mesmo tom desconsolado - e frequentemente blasé – restos de imaginário não analisado?

Dificuldade em remexer o próprio Acheronte, Amarante? “Não sei mais e é um sonho bom ou ruim, sei apenas que isso fala de mim” – poderia complementar Amarante (inclusive, há rumores que essa parte da letra foi censurada, como uma espécie de censura onírica, jamais saberemos, mas já podemos antecipar aí um trabalhinho que sem dúvida foi executado com a ajuda dos nossos velhos conhecidos mecanismos “deslocamento” e “condensação”, não sejamos tolos, todos vocês já devem saber disso...)

Não sabemos de fato se a letra passou pela censura onírica, podemos imaginar, pelo tom de desencanto e dúvida que há uma elaboração nesse material, estamos diante do discurso manifesto que não lembra mais o sonho sonhado; eu poderia apostar que é fruto dos percalços que um analisante encontra em seu percurso...

O desencanto pela vida, o não saber, e, por fim, a certeza/clichê freudiana: que em sonhos poder-se-á realizar o desejo por tanto tempo acalentado: a musa de Amarante aparece em seus sonhos, então, o melhor momento será mesmo a hora de dormir.

Se isso não for uma licença poética da célebre frase freudiana “O sono é o guardião do sonho” eu não sei mais o que é.

Se você tem alguma dúvida, peço que prossiga nessa leitura:

(2)

“Como pode alguém sonhar
O que é impossível saber”

Diante de tão impactante lição que a canção psicanalítica “O vento” nos traz, precisei reparti-la em dois segmentos, para melhor fundamentar meus argumentos. Sinta o choque, e a presença viva de Freud no trecho acima referido:

 “Como alguém pode sonhar o que é impossível saber”.

Fico estupefata e creio que também o indie leitor ficará ao analisar essa frase com lentes de aumento. Veja se não há um quê de Traumdeutung novamente? Vejo, inclusive, menções à Lacan, nesse pequeno, porém tão profundo trecho poético.

Se estamos já tão acostumados com a virada cartesiana que Lacan faz ao promover o clichezão “sou aonde não me penso”, podemos também nos lembrar do tão famoso “o sujeito não é senhor em sua própria casa” – e Tania Rivera ainda diria não saber nem se o sujeito tem casa. 

Ora, se o sujeito tem casa ou não, não nos é importante nesse momento, pense apenas nessa pérola que  promove o antagonismo entre o que se sonha versus  o que se sabe.


Los Hermanos já parece deixar clara a influência psicanalítica ao fazer isso, ao nos colocar diante desse antagonismo que ilustra o que é a Psicanálise em geral.

Sonho aonde não me penso, portanto, sonho o impossível de ser sabido, estamos falando de lógicas diferentes, portanto, isso já nos levaria, de graça, à Lacan e toda a noção que está implicada na Psicanálise: há um saber inconsciente, um saber não sabido, disso Amarante já sabe há tempos.

Perceba a genialidade da banda ao trazer esses conceitos tão profundos para a simplicidade da canção. Lembre-se sempre que o sonho é a loucura do homem são.

* Bônus: “Eu sei que ainda vou voltar, mas eu quem será” (O velho e o moço)

(3)

“Não te dizer o que eu penso
Já é pensar em dizer”
[...]
Sinto que é como sonhar
Que o esforço pra lembrar
É a vontade de esquecer”

 Está ficando chato, não é verdade? Toda essa preocupação de Amarante com o conteúdo onírico, me parece claro como um dia de sol que essa canção foi pensada – e quem sabe até composta – em um divã. Amarante aqui faz novamente alusão à divergência entre desejo e o querer consciente, porém, se ainda não se tornou claro o suficiente, à guisa de compreensão, didaticamente explicarei:

 Esforça-se para lembrar (consciente), porém há algo que se opõe a isso: há uma vontade de esquecer (mecanismo inconsciente).

 Vejamos aí outra coisa ou vemos mesmo o Verdrängung freudiano? A vontade de esquecer, Amarante, diga logo, nada mais é do que o mecanismo de recalcamento, que sabemos que não é necessariamente o mesmo que esquecer.

Todo vivente que assistiu ao menos uma aula de Psicanálise na faculdade saberá que existe uma grande diferença entre recalcamento e esquecido. Amarante apenas nos revela que existe um jogo de opostos: ora se esforça para lembrar, ora se entrega ao recalcamento. Cena primária, lembranças infantis , o caso Emma e a loja de roupas (presente na carta 52 e no Projeto de 1895).

Todos nós já estamos cientes de que as lembranças encobridoras tomam o lugar de algo maior, infantil e de origem sexual que fora convenientemente recalcado. As lembranças foram postas aí porque há algo recalcado.

Em palavras mais rasteiras: a lembrança encobridora é o esforço para lembrar; a vontade de esquecer é o mecanismo do recalcamento operando sobre o material mais antigo e, portanto, mais revelador do inconsciente. Gostaria de saber o sexual traumático de Amarante, e por que tanto apelo ao mundo onírico...


 (4)

“De onde vem a calma daquele cara?
Ele não sabe ser melhor, viu?
Como não entende de ser valente?
Ele não sabe ser mais viril
Ele não sabe não, viu?”

Se não me engano esta letra é de Camelo, uma criatura que, por suas letras, podemos pensar que vive às voltas com a castração. Aceitá-la, negá-la, ignorá-la? Tudo isso parece ecoar na cabeça do exímio compositor que, perdido diante da barra originária, entrega-se às suas canções.

Vejamos em “De onde vem a calma” o sujeito castrado e barrado diante de seu gozo quimérico, detido em seu desejo. O que resta a esse cara cuja angústia de castração tomou conta, a calma?

Recomendo um retorno à Freud, tal como o fez Lacan, para que possamos analisar melhor essa canção. Um sujeito castrado diante de um mundo hostil; não lhe sobrou dignidade, não lhe sobrou muita coisa, porém, para aquele que irá agora ter acesso à música completa, lhe digo que há esperança no que Camelo escreve, pois apesar do mundo ser hostil, o sujeito parece não desistir, nem ceder.

Vemos aí uma esperança de reaver a Coisa freudiana, Das ding reencontrada? Gozo não mais interditado? Mamãe? Sim! O sujeito, que não é viril (Quer algo mais claro que isso para chamar de desfalicizado?) irá, um dia, ser coroado rei de si mesmo – Cai o pano, lembra uma tragédia, hein?

Recuperar o trono, se apossar de mamãe, é isso que você quer nos dizer, Camelo? Recuperar mamãe depois de ter matado papai?

Ser coroado rei de si não seria uma óbvia e ululante alusão à Oedipux rex? Deixo essa com você...

(5)

“Hoje estou tão sozinho
Não sei mas o que fazer
A minha vida se acabou
Você se foi e agora não sei mais”

(6)

Faz tanta falta o teu amor...
Te esperar...
Não sei viver
Sem te ter não dá mais pra ser...
Assim”

(7)

Deus por onde você foi?
Cansei de procurar
Não posso mais te dar o pouco que sobrou
Eu tinha algum amor
Eu era bem melhor
Mas tudo deu um nó
e a vida se perdeu
Se existe Deus em agonia
manda essa cavalaria
que hoje a fé me abandonou”


Estamos agora diante de três canções que querem nos dizer algo especial: o que “Tão Sozinho”, “O pouco que sobrou” e “Quem sabe” têm em comum? O leitor desavisado diria “Sofrência”. Porém quero que você vá além de modismos musicais.

Para acompanhar a genialidade de Amarante/Camelo eu só sugiro ao indie leitor que recorra à letra freudiana mais uma vez, pegue lá em seu armário o volume XIV da edição Standard e busque o texto de 1915 chamado “Luto e Melancolia”.

Seu esforço será recompensado, pois nas primeiras laudas encontrarás o que foi dito, de formas diversas, nas três músicas. Diz Freud: “Os traços mentais distintivos da melancolia são um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de autoestima” (Freud, 1996/1917[1915], p.250).

Sobre o luto, Freud nos ensina: “O luto profundo, a reação à perda de alguém – a mesma perda da capacidade de adotar um novo objeto de amor (o que significa substituí-lo) e o mesmo afastamento de toda e qualquer atividade que não seja ligada a pensamentos sobre ele” (Freud, 1996/1917[1915], p.250).

Se você ficou confuso e não sabe diferenciar se Amarante e Camelo estão falando de Luto ou Melancolia, dou-lhe novamente a palavra de Freud: “No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio ego” (Freud, 1996/1917[1915], p.251).

Quando alguém diz que não sabe viver, que a fé o abandonou, estamos tratando aqui de um desinteresse total pelo mundo, não porque o mundo é vazio, mas o ego que foi apequenado, esvaziado.

O trecho “eu era bem melhor” nada mais é do que a prova cabal de que há um sentimento forte de baixa autoestima e isso tudo está no ego, o mundo está lá, eu apenas não tenho força porque já fui bem melhor, num outro tempo, quando tinha um amor – diria o restante da letra, mas nós já sabemos do que se trata.

Canções melancólicas que envolvem egos fragilizados, isso é mais do que dizer “Sofrência”, não é verdade?

Nas canções de “sofrência” existe algo relacionado ao corpo como palco do sintoma; há um apelo ao álcool para fazer frente a um sofrimento ou a uma situação penosa - é puro Lacan do Real.

 Vemos aí a toxicomania e a pulsão de morte enlaçadas, basicamente o sujeito goza em seu corpo e busca aplacar o sofrimento se entregando a subterfúgios.


Em Los Hermanos é a frustração sóbria que está presente, é o aguentar a frustração e a ferida narcísica, sem álcool, sem nada. Haja divã, haja lencinho de papel.

(8)

“Pois eu, eu só penso em você
Já não sei mais por que
Em ti eu consigo encontrar
Um caminho, um motivo, um lugar
Pra eu poder repousar meu amor”

Aqui vemos uma bela oportunidade de anunciar como Los Hermanos fugiram do lugar comum, pois ao conceber “Fingi na hora rir”, os compositores foram muito além da letra “água-com açúcar”, a melodia aprazível, que agrada aos ouvidos e que deve ter sido tema de muitos romances, revela algo muito mais profundo e de inspiração psicanalítica. Vamos subir um degrau no nível de dificuldade agora.

Em Lacan, sabemos que há todo um jogo encenado entre as posições masculina e feminina, um jogo intermediado pelo falo, que não é o pênis, mas sim, esse objeto imponente e majestoso, revestido de grande poder social mas que é totalmente quimérico.

Camelo encontra "um caminho, um motivo, um lugar”, e poderíamos dizer...”Um falo”? Se você duvida, basta abrir em qualquer página de “O Seminário livro 20” e verá que tudo não passa de uma falácia, um engodo: a posição masculina acha estar na posição feminina o falo que lhe falta e que supõe completá-lo: O feminino É o falo.

(9)

“Ouvi dizer
Que o teu olhar ao ver a flor
Não sei por que
Achou ser de um outro rapaz
Foi capaz de se entregar
Eu fiz de tudo pra ganhar você pra mim
Mas mesmo assim”

Se está me acompanhando e já está quase convencido de que as letras de Los Hermanos foram escritas atrás das páginas dos seminários de Lacan, eu só tenho que tornar isso cada vez mais evidente, com esse belíssimo argumento em favor do que foi dito em relação ao falo e à posição masculina diante do feminino: “A flor”.

Digo mais: desafio o leitor a substituir a palavra “flor” por “falo”. Há fortes rumores que as palavras foram trocadas propositalmente, e como as duas palavras servem como significantes relacionados ao sexual, deixaram “flor” para parecer poético e menos polêmico. A flor é, descaradamente, uma ode ao falo sempre buscado e nunca encontrado por ambas as posições.

Também em "A flor" ingressamos no enigma feminino e sua busca pelo falo  que lhe fora negado pela mãe tão má que é a mãe da menininha castrada (e que achou ser de um outro rapaz!).

Em suma: masculino e feminino se relacionam como se num palco estivessem, uma comédia, diria Lacan em “Televisão”: uma busca incessante no Outro masculino detentor do falo (a flor) perdido; a mulher busca no masculino o falo que lhe falta. Sendo, que...SPOILER!



  • Ninguém tem ou é o falo que falta a ninguém...tudo é engodo. Desilusão!

Apesar dessa descoberta, lembremos que Camelo pensa um dia recuperar das Ding; é, portanto, mais do que um romântico incorrigível, é alguém que tem esperança em se tornar rei de si próprio (toda a onipotência da majestade o bebê aí presente, pense no alerta de Freud!).

Sendo assim, fica fácil entender que esse endereçamento ao Outro que seja “seu caminho, seu motivo e seu lugar” poderia ser, na verdade, seu falo. Será Malu? Fica aí a questão, se quiser saber, recorra  ao cego Tirésias, recorra à esfinge se não quiser ser devorado. 

QUEM ÉDIPO É NUNCA PERDE A MAJESTADE.

(10)

“De perto eu não quis ver
Que toda a anunciação era vã
Fui saber tão longe
Mesmo você viu antes de mim
Que eu te olhando via uma outra mulher”

 Talvez esta seja a prova que faltava para o cético entender que há Psicanálise em todo repertório de Los Hermanos. Veja com seus próprios olhos e pense, sem algum esforço, se você já não sabe quem é essa outra mulher - ideal - que Amarante diz ver na mulher atual.

Uma dica? Mulher atual imagem da mulher atemporal, das ding, não há ainda um terceiro ursupador...


Ficou fácil, né?

Vou dar mais uma dica, essa mais específica ainda: “Identificação anaclítica”. Mais fácil que isso só se eu dissesse que a primeira letra do nome dessa mulher é M – Evitarei dizer mais.

(11)

“Dei pra ti as estrelas os peixinhos e as aves
Todas as montanhas nas escalas dei as claves
Todas as cancões que eu fiz, eu fiz pra ti princesa
Tudo de mais belo que encontrei na natureza”

Essa canção profundíssima do primeiro álbum, você deve dela lembrar, chama-se “Lágrimas sofridas” é por muitos cantada com uma gota de ódio e decepção, um certo azedume (para voltarmos ainda mais no tempo...) e deve ser considerada como uma canção raivosa, muito diferente das canções do último álbum, considerado “maduro” pelos fãs.

Veja você que essa divisão entre o que é maduro e o que é pop não parece corresponder ao conhecimento intelectual que a banda já demonstrava ali, no começo de sua estrada, ao menos não é o que parece.

“Lágrimas sofridas” nos apresenta talvez o mais belo clichê lacaniano “Amar é dar o que não se tem”. É verdadeiramente isto que está em jogo nessa música que fala direto ao coração: um sujeito que deu a sua bem amada coisas materiais, tais como seu sapato, seu vestido, mas não esqueceu de lhe presentear com o intangível: "as estrelas, os peixinhos e as aves”.

“O dar o que não se tem” fica ainda mais claro na estrofe seguinte:

"TODAS as montanhas, nas escalas dei as claves; TODAS as canções que eu fiz [...] TUDO de mais belo que encontrei na natureza".

Vejamos que muito embora se trate de coisas conhecidas e apreciáveis, é evidente que o narrador/cantor não possui todas as montanhas, os peixinhos, as aves; é patético, inclusive, pensar que alguém seria dono das estrelas. No máximo, todas as canções que ele fez, porque na verdade, ele quis dizer TODAS as canções do mundo e toda a beleza da natureza – porque o amor é hiperbólico mesmo.

Ou seja, dar o que não se tem a alguém que não o pediu. O resultado disso é melancolia, já vimos aqui e parece coincidir com a ordem cronológica dos álbuns: primeiro o amor desmesurado, louco e infantil, e depois a melancolia (praticamente todo último álbum).

(12)

“Quem te vê passar assim por mim
Não sabe o que é sofrer
Ter que ver você, assim, sempre tão linda
Contemplar o sol do teu olhar, perder você no ar
Na certeza de um amor
Me achar um nada
Pois sem ter teu carinho
Eu me sinto sozinho
Eu me afogo em solidão”

Por último, mas não menos importante, eu não poderia deixar de citar a linda “Anna Julia” para trazer à baila aquela que foi considerada a única contribuição original de Lacan à teoria psicanalítica: ele mesmo, o brilhoso e comovente petit a. O objeto pequeno a ou simplesmente (a).

Lacan, em seu seminário da Angústia trata do objeto a como o que resta da relação entre sujeito e Outro (lê-se grande Outro), porém o conceito ganha vida e outras significações ao longo dos outros textos de Lacan e só podemos dizer que o objeto a é tudo aquilo que cai do Outro, sempre inacessível.

Como é muito provável que Camelo e Amarante andem por aí com os seminários de Lacan debaixo do braço, na fila do pão, eu sei que também devem ter lido Miller, Nasio, etc (nunca subestime a intelectualidade de uma banda indie).

Irei recorrer à Nasio, porque tenho certeza que as folhas de “Um psicanalista no divã” serviram de rascunho para as primeiras estrofes de Anna Julia, esse clássico contemporâneo.
Vamos à Nasio:
O amante apaixonado se sente subitamente arrancado de si mesmo, despojado de sua liberdade e submetido ao sortilégio do amado. Ora, como explicar o mistério do charme? Pois bem, somos incapazes disso. [...]O objeto a é portanto o nome dado à presença indizível e inebriante do amado, aquele que, em meu coração, o torna insubstituível (Nasio, 2003, p.138-139)

É, eu não tenho muito a dizer, mas quem quiser se certificar de que em Anna Júlia se trata do objeto a, volte à letra, parece pueril, infantilóide, cansativa, alguns dirão que não representa toda a sonoridade a  maturidade da banda, mas, aí onde pensas haver apenas um hit pop, encontrarás uma grande ode  à invenção lacaniana.

Anna Julia é o objeto a, é a mulher fetichizada na fantasia masculina, cantada e retalhada, eu seu olhar e em seu charme magnético. Isso é pura poesia e todo aquele que maldiz essa canção não sabe o que está fazendo.

Essas são apenas 12 provas que elenquei para que fique claro ao público que Los Hermanos não é apenas uma banda cujo compromisso foi espalhar sua melancolia e seus acordes nostálgicos aos nossos ouvidos. 

Há muito mais do que melodrama e corações partidos por Alines e Bárbaras em suas canções, há muito mais do que os significantes “mar”, “barco” e “morena” (os três valem uma análise); há muito édipo, muito Outro, muito objeto a, muita das Ding e quem disso ainda duvidar, aconselho ouvir a discografia completa com mais atenção, quem sabe em companhia de Freud e Lacan. 

Só lhe digo mais uma coisa: as barbas, estas não são por acaso (vide os judeus vitorianos...).