terça-feira, junho 20, 2006

A pele que reveste o ser amado

Quando começamos um relacionamento, ou mesmo quando estamos só apaixonados, nossos sentidos são completamente alterados, além de termos nossas faculdades mentais levemente embotadas, nosso senso crítico torna-se altamente prejudicado.
A causa de todo embotamento intelectual não pode ser outra que a presença do objeto amado.
Segundo a física quântica, o fenômeno é alterado pelas expectativas do observador empenhado a investigá-lo. No apaixonamento, podemos dizer que ocorre algo semelhante. Nada pode deter o brilho que o ser amado ou o objeto amado irradia. Esse brilho nos atinge, na categoria de observadores, de tal modo que já não pensamos ou sentimos apuradamente. Tudo está investido no outro e é para o outro. Pouco sabemos sobre nosso narcisismo quando estamos apaixonados.
Os sintomas fisiológicos nós estamos cansados de conhecer: taquicardia, sudorese, vermelhidão na face...há de se presumir, pelo menos uma coisa, esse objeto de amor realmente é poderoso. Segundo nossas expectativas, ele pode se tornar tudo do que precisamos, e é geralmente isto que ocorre.
Não mais que de repente o objeto de amor nos arrebata, influência nossos sentidos e não é por suas qualidades que o amamos, e sim, utilizando o pensamento da Física Quântica, por aquilo que desejamos que ele se torne. Assim, encontramos a “razão de nossa vida”, alguém capaz de preencher uma falta que – ilusoriamente- pensamos poder extinguir. Sim, nós influenciamos o fenômeno – o objeto de desejo – através de nossas expectativas em relação a ele.
Nessa tentativa vã de preencher a falta vestimos com outra pele o objeto de nosso desejo, damos um colorido maior, para que assim possamos nos apaixonar. O triste e o que invariavelmente vamos descobrir, mais tarde, é que a pele com a qual vestimos nosso objeto de desejo não faz parte realmente do que ele é, não diz nada e nem reflete nada sobre ele.
Ou seja, através dessa pele nova, vemos outra coisa, vemos beleza, vemos magnitude, vemos coragem, vemos inteligência. Vemos tudo, menos o que realmente é o sujeito. O sujeito por baixo dessa pele especial em nada lembra o que vemos diante de nossos olhos – ofuscados pelo brilho, O objeto de desejo, podemos dizer, é tudo, menos o sujeito real, aquele que não queremos ver, que tem defeitos, que não é capaz de saciar nossa necessidade de completude. Não, ele não o fará, nunca, e isso é o que temos que aceitar.
Aceitar, no entanto, não significa deixar a ilusão de lado. É fato que, apesar de todo o engodo em que estamos envolvidos, a sensação de apaixonamento é importante, revigorante até, dá um colorido as nossas vidas. Não devemos deixar a ilusão de que alguém irá nos completar, ela é vital, faz a nossa vida circular. A ilusão é sempre necessária.
O triste é sabermos que essa pele especial, de brilho próprio e insinuante, tende a descamar ao longo do tempo, ela vai rompendo, descascando, perdendo o viço, perdendo a cor até que... a tragédia se dá: avistamos o sujeito entranhando ali. O sujeito como ele é verdadeiramente nos assusta e nos remete a nós mesmos – ou não temos nós nossas falhas e nossas incapacidades?
Narciso que é, o ser humano odeia tudo que é espelho, após essa “visão do inferno” tende a um outro movimento, ao afastamento e, por que não dizer, asco, repúdio? O sentimento que se tem é de incompreensão: Como pudemos nos apaixonar por isto?Onde está o tal brilho que vimos?
Nunca se vai ter respostas para tais desafiantes perguntas. O que interessa é que, em um dado momento, estivemos disponíveis ao apaixonamento, queríamos, tivemos expectativas em torno de um objeto o qual vestimos como quisemos, com a pele que mais nos agrada. Triste é que não podemos nos apaixonar sem antes vestir o outro com essa pele tão fascinante.
Dessa forma, estejamos sempre preparados para as palpitações, para a taquicardia e a delícia que é experiência dessa sensação. Como ilusão que é, um dia evanescerá, mas, nos enganarmos dá um certo ar de graça à vida. Então, vamos ao mundo empírico!

domingo, junho 18, 2006

Flectere si nequeo superos, Acheronta Movebo!



Em 1900 essa frase inaugurou, oficialmente, a Psicanálise. Freud deu a luz ao famoso Traumdeutung, a Interpretação dos sonhos e deixou ali um pouco de sua vida, de sua experiência profissional, há até quem diga que deixou seus devaneios.
Pronto, o filho veio ao mundo. Segundo Freud, algo como aquilo não nasceria novamente de suas entranhas. O rebento veio ao mundo e não foi sem espanto que a frase título desse texto foi lida. O conteúdo do livro continua um tanto indigesto para os céticos após mais de um século de sua publicação. Imaginem vocês o que o tal livro não causou no meio científico europeu no começo do século XX.
Cabe dizer que a frase que consta no prólogo de “A interpretação dos sonhos”, “Flectere si nequeo superos, Acheronta Movebo” é da autoria de Vigílio e consta na “Eneida”. Em bom português significa: “Se não posso mover os deuses de cima, moverei o Acheronte”.
O Acheronte do qual fala o médico austríaco é o mesmo rio localizado no inferno descrito por Dante em “A divina Cómedia”. Fico eu aqui pensando... O que Freud quis, realmente, dizer com essa frase no prólogo de uma obra de tamanha significância?
Como qualquer nova idéia, a Psicanálise recebeu pedradas e aplausos. Vamos ser sinceros: mais pedradas do que aplausos. Na época o meio científico alemão, no qual estava inserido Freud não aprovou as idéias do jovem médico. Seu livro foi execrado, criticado. Como assim, o sonho é o guardião do sono? O sonho é a loucura do homem são?
As palavras de Freud ecoavam e causavam cada vez mais espanto e cada vez mais críticas. O fato de que o homem não é o guia de sua própria vida foi um golpe duro demais para a arrogância positivista vigente. Eu entendo porque Freud faz tantas explicações, justificativas ao longo de sua produção teórica. Pode-se pensar que é reflexo das pedradas que recebeu ao lançar suas idéias: O homem praticamente estava no banco dos réus. Isso é refletido em toda sua forma de escrever.
Em “A Interpretação dos sonhos” Freud pretende convencer a medicina, os cientistas de que a Psicanálise é uma nova ciência: O que está proposto é uma quebra de paradigma. Mas...o que pensar do fato de que o homem não governa o que passa dentro de si, o que pensar que podemos, sim, sonhar com as coisas mais bizarras e jamais imaginadas por nós (na vida de vigília e consciente) nem nos mais febris delírios?
Entendo essa frase, utilizada como uma pontinha de sarcarmo do velho Freud. Ora, já que não posso convencer os grandes nomes do Positivismo, as autoridades, como Meynert, que pelo menos exerça alguma influência sobre o inferno. E qual inferno seria este que não o nosso próprio inferno de dentro?
Trancado em nós mesmos, relegado ao porão da nossa existência, coberto de poeira. Lá está o nosso Acheronte. E temos que lidar com ele todos os dias, o que é profundamente desesperador. Mesmo ali, coberto de camadas espessas de poeira, ele grita, esperneia. Lá está e de lá não arreda o pé. Matreiro às vezes, arquiteta novas estratégias sem que possamos sequer imaginar...estamos no andar de cima, e a música está alta.
Nosso inconsciente é barulhento mesmo no silencioso porão em que o trancafiamos. Nosso desejo é jamais ali botar os pés. E foi justamente lá que Freud pôs os dois.
O Acheronte certamente não foi o mesmo depois de Freud. A humanidade, de fato, não é a mesma depois da Psicanálise. Suas idéias sobre a sexualidade humana, sobre os atos falhos, chistes e sobre os sonhos, se na época não foram capazes de mover os “deuses de cima“, no mínimo causaram barulho. O eco ouvimos até hoje.
Por mais que artigos contemporâneos não cessem de sepultar a Psicanálise, ela está aí, está nos consultórios, está nas anorexias, nas bulimias, nos adultérios, nas obsessões, nas esquizofrenias, nas paranóias, nas depressões...está no Acheronte nosso de cada dia.
Talvez a interpretação que fiz da frase não faça sentido para muita gente. Eu considero que, para agüentar aquele bando de gente metido a superior – vamos falar bem rasteiramente agora! – Freud não podia ser um cara tão recluso, tão coitadinho. Se não podia realmente mover os senhores da razão, os detendores do Falo (isso aí já é lacanês, esqueçamos por agora ) , os detentores do logus, um pouquinho de sarcasmo ele devia utilizar...caso não o fizesse, difícil seria fazer-se notar. E parece que ele se tornou até um cara de visibilidade.