sábado, outubro 25, 2008

Disse-me-disse


Eu sei que vão falar, quando meus pequenos olhos longe dos teus estiverem
E ainda assim neles houver um quê de olhos grandes que são tão teus, aí eu sei que vão falar.
Quando eu me encontrar sorrindo um sorriso próprio que brota da tua boca, aí eu sei que vão falar, porque ao povo que não sabe nem pode amar, o que resta é falar.
Eu também sei que quando a minha face começar a lembrar a tua, quando meu jeito de andar for quase o teu, aí eu sei que vão falar.
Se por acaso eu gargalhar como tu, se da minha boca sair umas coisas tão tuas a ponto de nos confundirmos num só, aí só vai restar ao povo falar.
Se acaso meu violão começar a tocar as notas tuas e os meus sonetos passarem a lembrar tanto os teus, aí, coitados deles, vão mesmo é falar. Eu sei que eu vou tentar com uma frase desdizer a boca de quem fala, mas, como quem desdiz só afirma o que foi dito, eu vou mesmo é calar.
Por isso, não se espante, quando eu começar a me parecer contigo, quando eu começar a rir o teu sorriso e a chorar as tuas lágrimas, porque eu sei que o que o povo vai fazer é falar.

terça-feira, outubro 21, 2008

A vila


É um mundo à parte. Miúdo para alguns, gigantesco para outros, entretanto. O certo é que neste mundo as coisas parecem mais belas, o azul é mais azul e o verde não é um verde qualquer.

Este é um lugar para se viver e viver de arte. Poesias são recitadas a cada esquina, versos entoados em todas as quadras da cidade, como se chamassem a população para os livros, acordassem suas almas para o interior de si mesmas. A vila não está no mapa da cidade, poderiam contar uma ou duas ruas, três esquinas, talvez.
Há uma padaria – porque há que se alimentar também a alma, e uma praça – para que haja um lugar assim em que se possa admirar árvores e flores, inspiração de qualquer poeta, seja ele grande ou rasteiro.
A vila também respira música. Em todos os lugares pode-se ouvir um violino a soar umas notas tão bonitas que fazem companhia às flores da praça no difícil - porém prazeroso - ofício de parir poemas.
Tristeza é algo raramente visto nesta vila - é o que dizem os moradores mais antigos. Uma vez ou outra se ouve alguém chorar por amor, mas, como todo amor que chora é amor maior, há que de algo servir, por isso, não há dor tão grande que não possa ser colocada em letras, metidas em versos e alinhadas em uma estrofe.
Sobre a população não se pode dizer que é feita de pessoas alegres, apesar de transformarem a tristeza em poema, há um quê que ninguém sabe explicar se de dor ou de felicidade contida, algo tão particular destes habitantes que eu poderia dizer que nunca vi nada igual.
Suas poucas ruas são iluminadas. Há postes cinzas de luz fraca a cada 50 metros, bancos verdes que são para o namorado recitar seus poemas a olhar diretamente nos olhos quase sempre molhados da namorada.
Violões e bicicletas formam a paisagem deste lugar, acho que não cheguei a avistar um automóvel ou respirar a fumaça comum das grandes cidades. Serenatas e recitais fazem parte da alegria da população que todas as noites se reúne na praça a aplaudir o artista da vez.
Além de poetas há muitos escritores , escultores, pintores e desenhistas neste lugar tão simples mas ao mesmo tempo tão belo. Ao longe se pode ver casas de fachadas coloridas e de girassóis na soleira das portas, porque casa de poeta tem que respirar e inspirar poesia, e cinza ou preto não combinam com nenhum soneto. Há que se ter cores, muitas delas.
Distante das casas coloridas o mar pode ser visto. Como tudo nesta vila é tão surpreendente, não se pode imaginar que seja um mar qualquer. É um mar meio verde e meio azul, um mar que troca de cor de acordo com a visão de quem o contempla. O sol e a lua trocam de posição de forma amigável: sendo o sol um perfeito cavalheiro, empresta um pouco do seu brilho à sedutora lua, que todas as noites vai linda subir ao céu dos namorados.
As nuvens se entrelaçam umas às outras acima dos olhos do povo formando as mais variadas composições, como se brincassem com a criatividade de quem olha para cima. Às vezes vêem-se bicicletas, outras vezes alguns podem jurar que vêem notas musicais, cachorros e elefantes ao testemunhar o espetáculo do céu nublado.
O mar, juntamente com as flores da praça e os olhos das mulheres bonitas, é um dos temas preferidos dos artistas que surgem na vila com a mesma freqüência que surgem as estrelas no céu.
Não sei dizer quantos vivem neste lugar repleto de paz, porém posso dizer que aqui cheguei com duas mudas de roupas e uma alma muito afoita, querendo dar tudo de mim para que aqui possa fazer meu recanto, entoei uns poemas e toquei algumas notas no violão, isso foi o suficiente para que me deixassem entrar.
- Há que se ter talento para viver aqui. Dizia o bom homem de paletó cinza e flor amarela na lapela.
Inicialmente voltei os olhos para baixo, como se previsse que logo deveria deixar este lugar tão agradável e voltar ao mundo tolo que havia a alguns quilômetros. Foi então que o sábio homem fez renascer em mim uma certa esperança, daquelas que aparecem subitamente quando se pensa tudo ter perdido.
- Não pense que ao dizer isto estou fazendo qualquer espécie de seleção. Todos que aqui estão um dia chegaram como você: poucas roupas, uma mala velha, candeeiro para iluminar os pensamentos, uma alma errante e uma garrafa de vinho para curar a dor de um amor que virou poesia. Foi assim que cheguei aqui, com um coração remendado, dois sonetos numa trouxa velha a qual chamei de bagagem.
- Foi assim, então, que me deram pão, duas flores brancas e me apontaram o céu. Naquele momento eu pude compreender a beleza que existe em todas as coisas que cercam este lugar. Eu pude entender a poesia que brota das jardineiras, a música que nasce das esquinas e, sobretudo os olhos dos dois namorados que passeavam a entoar cantigas e versinhos de amor.
- Aqui você não precisará de dinheiro, tampouco de bens materiais. Há apenas que ter coração. Se não o tiver, digo-lhe, dê meia volta e retorne para onde saiu. Porém, se existe um coração a pulsar e uma alma a repousar escondidos no seu ser, então fique e aproveite o mar que não se decide se é azul ou verde, tome o sol como amigo e usufrua da lua como a maior inspiradora da sua arte.
- Pinte uma flor e dê-lhe água, tente esculpir rostos das namoradas, faça versos com a luz do poste a te iluminar. Use o violão porque este aqui é tão público como os telefones são nas cidades que deixamos para trás. Isto aqui, como você pode notar, é apenas uma vila repleta de umas paisagens muito simples, porém não menos belas, habitada por pessoas igualmente simples e puras de alma que decidiram abandonar a crueldade das grandes cidades em busca de um recanto.
- Aqui nunca se ouviu falar de morte matada, também nunca se soube notícia de gente a tirar a própria vida. Dizem que isto é a finalidade da arte e é por isto que estamos aqui, abandonamos o mundo real e nos reunimos nesse canto que é um abrigo para almas cansadas de tanto vagar.
Se você me perguntar se aqui todos são felizes todo o tempo, não saberia responder. Mas, se um dia a tristeza visita alguém ela não chega para ficar, há logo quem coloque uma vassoura atrás da porta para o caso de ela insistir um pouco mais e se demorar. Tão logo chega vai embora tudo isso que alguns chamam de dor e de pesar, porque aqui as pessoas aprendem a conviver como se a maravilha maior estivesse na simplicidade e na pureza dos corações.
A vila não tem portão, assim como as casas não têm muros. Há que se respeitar o próximo como o sol respeita o direito da lua de alugar o mesmo céu em que ele brilha algumas horas por dia. Se houvesse uma espécie de governo tal como existe nas cidades lá de fora eu poderia apostar num tipo de comunismo poético – permita-me a invenção do termo – porque tudo que temos é de todos e esse tudo nada mais é que arte, e esta pertence a quem dela se engraçar.
Vivemos com tudo isto que para você, visitante da cidade de lá de fora, talvez não seja nada. Não há mais o que eu possa contar sobre a nossa vila, é isto que temos e eu estaria a mentir se lhe contasse que há bancos, restaurantes luxuosos ou grandiosos hotéis. Hotéis, para falar a verdade verdadeira não há, uma vez aqui chegando não há quem queira apenas pousar. Aqui quem chega anseia ficar.
Por isso, se este é seu desejo, pegue esta bicicleta, conheça as ruas, mas não se esqueça de dispensar meia hora do seu tempo a olhar as belas flores e árvores da praça, mais meia hora observando o mar e mais umas duas horas a admirar o espetáculo das nuvens graciosas a brincar no céu de algodão. Se nada disso lhe fizer acordar a alma e o coração, então sugiro que você pegue o retorno mais próximo e volte para onde você saiu.
Depois de toda essa explicação, não soube exatamente precisar o que aconteceu dentro de mim, mas suponho que começaram a nascer uns versos, meu coração disparou em lá e dó e eu senti brotar em mim um conhecimento que não sabia dizer se morava no cérebro ou na alma , mas algo do qual jamais suspeitei.
Foi então que percebi que não mais desejava voltar à cidade lá de fora. Segui os conselhos do sábio homem que me acompanhava e dediquei meu tempo a conhecer a vila em que as pessoas se reunem em volta da simplicidade e libertam-se da solidão compartilhada que se vive no mundo real.
Fui ficando e não sei dizer se volto. Sempre mando cartas para o mundo de fora, digo aos meus que aqui estou feliz, que vejo o sol com outros olhos e que o mar nunca me pareceu grande coisa antes de conhecer este que é azul e verde ao mesmo tempo.
Ilustração: Cristiano Leão