quinta-feira, junho 09, 2011

Entre Plumas, paetês e lacanês










É certo que toda disciplina, todo campo de estudo deve promover eventos para que as ideias referentes a este circulem, ecoem por todos os lados e façam despertar em todos o desejo de prosseguir com a empresa dos pioneiros, daqueles que primeiro desbravaram o campo científico destinado à determinada área do conhecimento. Com a Psicanálise não é diferente: todos os anos pipocam eventos durante todos os meses com os mesmos objetivos: propagar a invenção freudiana, desenvolver temáticas que partam do pressuposto de que insistimos em algo que ainda faz sentido, apesar do centenário da ciência psicanalítica.

O engraçado é que existe toda uma ciência oculta que envolve um evento científico do porte de um congresso ou seminário. Como minha experiência decorre de muita freqüencia nestes ambientes em que se propaga a Psicanálise - ou algo parecido com isto - foi interessante para mim, ao longo destes quase dez anos de trânsito nestes eventos, reunir alguns conhecimentos informais que me ajudaram a sobreviver em tais situações; isto é, procurei desenvolver determinadas capacidades para poder fazer parte do seleto grupo de conferecistas e ouvintes destes congressos que, se não logram êxito em propagar a invenção freudiana, são bem sucedidos em promover risos, gargalhadas e um texto irônico como este, ou que pelo menos pretende sê-lo.

Eis os motivos para tanto:

Em toda a história dos congressos e seminários acadêmicos uma figura específica teima em aparecer, faça chuva ou faça sol, sempre existirá espaço , na plateia, para aquele ser que atrapalha o curso normal de uma palestra, de uma fala, geralmente de um palestrante-estrela, do qual falarei mais tarde. Esta figura, tal como um rato sorrateiro, chega antecipadamente ao evento, procura sentar-se nas primeiras cadeiras, frente ao conferecista (para que assim possa debater melhor com este a temática apresentada) e, não raramente, desperta ódio, desprezo e/ou raiva nos demais integrantes da plateia.

Pelo andar da carruagem, certamente o leitor deve ter adivinhado quem seria essa pessoa: o louco da palestra.

O louco da palestra abusa da boa vontade ou da educação do conferencista, usualmente não se constrange em utilizar todo o tempo destinado às perguntas e reflexões para fazer uma espécie de "mini conferência", que, se não traz nenhuma contribuição para a temática ali proposta, também não pode ser vista como uma dúvida real: ninguém se engane: o louco da palestra gostaria mesmo é de estar ali, por entre arranjos florais, copos d´água e microfones, à frente, conferindo a palestra, e não na plateia, lugar do qual, incessamente, visa escapar com seus comentários equivocados, prolixos e desprezíveis os quais, muitas vezes devem ser entendidos como críticas agressivas diante do brilho do palestrante.

O louco da palestra, apesar de sua agressividade nem sempre velada, faz irromper a criatividade do conferencista em dar-lhe uma espécie de "fora politicamente correto"; pois é notável que o louco visa tão somente o espetáculo, as luzes da ribalta; ele não visa saber, conhecer, inferir, ele visa mesmo é aquele tempinho em que fantasia rivalizar com o palestrante.

Geralmente o louco da palestra recebe respostas politicamente corretas dos palestrantes. Algo do tipo: "Agradeço sua atenção, de fato não tinha pensado neste tema desta maneira" ou "Agradeço sua contribuição, anotarei para que em outras oportunidades possa falar sobre isto".

Uma ou outra a resposta politicamente correta poderia ser traduzida, em termos menos formais com um: "não me interessa o que você tem a dizer, certamente é uma besteira, mas para não ser mal educado, vou fingir que o que você falou tem alguma importância para mim". Este é o mundo: cruel e frio, não se engane, puro leitor (ui, minha veia machadiana agora grita).

Como a idiotice não é privilégio do louco, cabe falar também do conferencista, ele mesmo idiota, tachado como a estrela do evento que muitas vezes confia tanto no seu próprio taco que não se dá ao trabalho de preparar, de fato, sua fala: recorre frequentemente a anotações esparsas, de cadernos amarelados e sai pinçando um trecho ou outro que foi capaz de produzir há cerca de 10 anos ou mais.

O conferencista-estrela muitas vezes não se julga ao alcance da simplória plateia; não raramente começa sua fala com um: "Não sei se serei claro, mas se vocês não conseguirem alcançar, digam-me que eu tento falar de outra forma". Àquele que não é habitué destes eventos, certamente concordará com o conferencista-estrela; devido também à inexperiência, realmente pode pensar que está muito aquém daquele ser que surge à mesa e toma de assalto toda a plateia, uma mente brilhante que sequer consegue ser compreendida devido ao seu brilhantismo.

Quase sempre o palestrante-estrela usa de subterfúgios conhecidos do mais baixo idiota: começa sua fala com uma frase de efeito que pouco ou nada tem a ver com a temática que propõe. É prolixo, arrogante e isto se pode notar pelo número de bocejos por segundo observados na plateia.

Quando era estudante, não conto as vezes em que me rebaixei, com toda a neurose que Deus me deu, diante daqueles semi-deuses que para mim falavam tão mais bonito à medida que usam termos do tipo "o significante barrado" " a borda de Moebius", "lalangue", e tantas outras palavras deste idioma tão estranho que é o lacanês (uso inapropriado dos termos desenvolvidos pela teoria lacaniana pelo sujeito que, perversamente, não se contenta com o seu suposto saber e nega a possibilidade de, um dia, vir a tornar-se dejeto).

É um tal de "sujeito barrado" "letra", "significante Outro" "banda de Moebius", "cross cap", "lalangue", sem falar no uso inadvertido de termos em língua francesa para dar mais veracidade à encenação do suposto saber. Se você não é da área, não entende bulhufas de Psicanálise ou algo que a valha, ao menos entenderá que , no mundo acadêmico, para que você seja respeitado, muitas vezes é necessário recorrer a um jogo sedutor o qual se vence quanto mais palavras e termos estranhos usar: simples assim, quanto mais eloquente parecer, quanto mais ambíguo e obscuro for, maior a possibilidade de não entenderem, logo, serei o palestrante o qual a plateia não conseguirá alcançar. Este é o mundo: cruel e frio, inocente leitor.

Neste mundo imagético o qual habitamos, uma imagem e um lacanês vale mais do que qualquer entendimento real sobre o assunto.


Há, entre a seara dos palestrantes, um tipo muito interessante, além do pedante que insiste no lacanês: o palestrante louco. Geralmente apresenta-se como um ser estranho, possivelmente mal amanhado (mal vestido e desgrenhado) como se isto fosse garantia de que, se aquele ser não tem tempo para pentear as madeixas, certamente isso se deve ao fato de estudar muito, mas muito mesmo, a ponto de desconhecer o objetivo de um pente.

Estes seres surgem e se proliferam nas palestras e seminários de Psicanálise; é o famoso estranho que mais parece perdido, como se um ser mítico, fosse, talvez advindo do distante mundo neozelandês dos hobbits (analogia que devo a uma querida professora) que veio ao seminário obrigado por deveres acadêmicos, pois é notória sua vontade de estar em casa, sem banho e sem pente, ensandecido diante de tantos compêndios, dicionários e livros técnicos.

O palestrante louco não fala coisa com coisa; costuma apresentar-se de maneira histriônica e visa tamponar a própria vacuidade com termos em outras línguas para mostrar erudição. O ser mítico, como será perceptível ao longo de sua fala, não sabe mais do que ninguém da plateia, não sabe mais do que qualquer rato; seus textos são marcadamente desorganizados e não chegam a lugar algum. Não concluem o que não desenvolveram e nem sequer introduziram.

Neste ponto, alguém poderia perguntar: é fácil distinguir um palestrante de verdade de um engodo? Não, a resposta é não; é somente com muita experiência nestes ambientes e, sobretudo, com o crescente conhecimento que adquirimos ao longo da formação acadêmica que começamos a descobrir quem de fato sabe e quem de fato enrola, inventa, alucina.

Aqui cabe o conhecimento popular e um trechinho de "Canto de Ossanha", de Vinícius de Moraes: "O homem que diz sou, não é, porque quem é mesmo diz , não sou". Ou seja, em poucas palavras: humildade e sabedoria caminham juntos, e estes seres advindos de florestas longínquas, além de demonstrarem profundo mal gosto em sua apresentação pessoal, também demonstram que , não necessariamente você precisa se desgrenhar para ser, de fato, estudioso. Muitas vezes estas pessoas são apenas falácias, discurso vazio recoberto de uma arrogância sem limites.

Por último, mas não menos importante, não poderia encerrar este textículo sem mencionar uma das figuras das quais mais gosto, não pela eloquência e sabedoria, mas pelo que ela me suscita em sua essência. É o famoso palestrante-psicografista. Com frequência este palestrante surge e inicia sua fala com uma revelação: tem mantido contato com seres que passaram desta para melhor, tem conversado com grandes nomes da Psicanálise, como Freud, Lacan, Winnicott, Melanie Klein, enfim, todos os grandes nomes, numa espécie de mesa branca ou coisa que o valha e trazem os resultados disto na palestra.

É comum que o palestrante-psicografista apresente textos conhecidos como "colcha de retalhos", nos quais não se sabe quem está falando, se o próprio ou a entidade invocada. Como se trata de Psicanálise lacaniana, sabe-se da importância da oralidade no discurso lacaniano, mas há gente que abusa, usam expressões como "Eu tenho pensado essa questão com Lacan" , "É o que penso com Freud", etc. Além destas citações que explicitam um contato íntimo com a entidade psicanalítica que parece estar sempre acessível ao mundo terreno.

Sempre que ouço alguém proferir algo do tipo: "Eu penso com Freud", ou "Venho desenvolvendo essa questão com Lacan", me vem à mente a situação de um bando de psicanalistas brincando da famigerada "brincadeira do copo" ou "tabuleiro ouija". Queria saber aonde acontece o tal encontro, como entrar em contato. Venho observando que Lacan vem se tornando uma entidade do porte de um Emmanuel e que os palestrantes não economizam em citações que indicam que existe, de fato, um contato íntimo com o pensador, muito disto se deve ao fato dos textos nem sempre obedecerem às mais simples regras metodológicas: se você vai citar alguém, anuncie-o antes, ou, invariavelmente, a plateia ficará confusa sem saber se tal trecho é seu, se é psicografado, se é do autor renomado, enfim, muitas questões que ultrapassam nossa vã filosofia, ultrapassam o entendimento que temos neste nosso pequeno mundo.

Só não vou me admirar quando psicografarem uma obra de Lacan e se apresentarem como uma espécie de Doutor Fritz da Psicanálise. Há louco para tudo, mas há espertos para tudo também.

Ao longo deste texto também lembrei de outras situações, tais como o momento do coffee break em que as pessoas costumam se engalfinhar por um suco de cajá, ou mesmo o palestrante humilde que tudo que tem deve à Freud ou Lacan, aquele que inicia sua fala com expressões do tipo "estou aqui, na verdade, macaqueando Lacan, porque tudo ele já disse". Estes parecem ser os mais humildes, mas de uma humildade que beira à ignorância: Se Lacan disse tudo, porque você ainda está aqui? Vá embora, vá a piscina do hotel, deixe essa sala fria e vá descansar, porque Lacan já disse o que você diria, então, esqueça a possibilidade de falar algo novo, já o fizeram, a você cabe a cadeira do deck da piscina.

São tantas as situações vividas em um congresso, certamente não abordei nem metade do que minha observação tem encontrado por aí, independente do estado, da região do país em que esteja. Apesar de tudo isto, dos loucos, dos hobbits, das estrelas, dos humildes, da plateia, eu gosto, não vou negar, gosto de observar, pois o que seria da Ciência se não fosse o compromisso de continuar o empreendimento ao qual tantos homens célebres dedicaram suas vidas?



Mentira, vou mesmo é para garantir meus pontos no currículo lattes e rir.









Ilustração: esta imagem foi buscada aleatoriamente através do Google images; achei que deveria manter no anonimato as figuras reais que inspiraram este texto.