terça-feira, dezembro 23, 2008

Como nasce uma teoria



No alto da colina se escondia o Tempo, maior de todos os vilões das estórias de amor , de poder e de vitórias. No entanto, aqui conto que é deveras frágil e solitário.


Vivia recluso, em suas chinelas velhas, como se esperasse por algo que viesse a dar vida aos seus dias e sabor a seus jantares. Ninguém sabia por quanto tempo o Tempo viveria na mais completa solidão, assim como não sabiam desde que época enfiou-se naquela taverna de madeira escura, envelhecida, tal como o próprio habitante.


Os poucos que ousam contar sobre o ilustre ermitão, consideram-no em alta conta; se pouco contribuía para a baderna, também não poderia ser responsabilizado por qualquer comemoração, seja uma boda de aniversário ou reunião de alguma espécie. Se alguém lhe visita, com freqüência, é a sua única e fiel amiga, vestida de preto, mas não tão feia como se lhe pintam.


A Morte era a única a quem o Tempo falava. Geralmente ela vinha dizer-lhe algo, visto que sabia ser o amigo muito solitário. Vejam quão irônicas são as coisas da vida: se para os olhos gerais a Morte é vizinha do mau presságio e de terríveis agouros, para o Tempo faz-se companheira, pacata, ouvinte de melhor estirpe.


A Morte, todas as quintas-feiras ia ter com o Tempo. Diziam que nestes dias se ouviam gargalhadas tímidas por trás da pesado portão que costumava separar o morador do restante dos vizinhos que viviam naquela colina. Riam muito, sorviam algum tipo de vinho e – há quem diga – bailavam ao som de alguma música alegre, não sei agora se samba ou chorinho, fato é que se divertiam muito, mais ainda quando um estava na companhia do outro, a pisar um no pé do outro, a rir um sorriso sem dentes, mas nem por isso menos verdadeiro do que o sorriso nascido de bocas harmoniosamente preenchidas.


– Temo que separados não somos nada. Disse a Morte ao Tempo, oferecendo-lhe os olhos fundos de quem muito já viveu e presenciou nesta existência.


– Ora, deixe de tolices. Sabes bem que podemos ser bastante independentes. Não somos como os girassóis, extremamente carentes a espera de um mísero raio ensolarado para se fazer vigoroso. Podemos muitíssimo bem um viver sem o outro, sem apego ou algo que o valha, não estou entendendo o sentimentalismo desta tarde.


– Não é questão de sentimentalismo, tampouco de dependência. Veja, estou aqui, como estou todas as quintas-feiras, a beber este vinho, a sentar nesta cadeira e a fazer-te companhia, uma companhia que julgo-te necessária. Outro dia li de algum filósofo uma coisa que dizia sermos parentes próximos.

Ao escutar esta última frase, arregalou os pequenos e enrugados olhos o Tempo, como se escutasse um disparate ou algo que o valha.

- Parentes próximos? Se antes não entendia o sentimentalismo agora me surpreendo com o parentesco súbito. Acaso agora reclamas a mim paternidade? Fraternidade? Veja, não tenho vintém nem ouro. O que tenho é esta humilde taverna que nos serve de abrigo no momento. Tire-me isto e nada mais restará ao velho Tempo.

– Há dias em que pareces menino, sequer lembras a sabedoria a qual sempre achei ser parte de tua personalidade. O que quero dizer é que não somos tão diferentes assim. Claro, tens tua casa, eu tenho a minha, nem grande, nem pequena, apenas um lugar para eu pousar e descansar após tantas milhas que sempre percorro. Não reivindico herança alguma, tampouco paternidade, pois prefiro continuar a fazer parte do reino dos bastardos, estes, não tendo pai nem mãe, parecem viver a vida de uma maneira mais tranqüila, menos tediosa.
Digo-te que concordo com o que li, não sabendo a escola filosófica de que tirei, faço minha a teoria de que nós somos frutos da mesma espécie, tal como frutas parecidas, algo como pitanga e acerola. É isto! Somos feitos da mesma matéria e a mesma matéria nos reduziremos. “ Tempo e Morte não hão de andar separados jamais” , seria uma belo princípio de uma nova teoria. O que achas?


– Considero o raciocínio brilhante, o princípio factível e o filósofo um charlatão. Deve ter sido tua mesmo a idéia, e se não é, apressa-te e faz dela tua doutrina, tua causa maior, tua ideologia. Todos nós necessitamos de uma, a minha são os meus chinelos, sem eles nada sou. A tua? A tua poderia ser essa tal premissa de que andamos um junto ao outro. Eu continuo achando que se trata de sentimentalismo ou questão de dependência. Estás muito sozinha?


– Sozinha? Nunca! Sempre alguém vem me fazer companhia, por cansaço, apatia, irresponsabilidade ou mesmo por mando teu. Definitivamente não estou só, muitos me visitam e não vá pensando que só tenho a ti. O que digo e que de bom grado fundo como teoria é a solidariedade, vamos dizer assim, presente em nossa amizade , isto é algo indiscutível. Nós andamos juntos: se eu tenho o penoso ofício de intimar velhos, jovens e crianças para comparecer ao tribunal do juízo final, tu és o ser que está por trás do último mandado.


– Agora me culpas? Não entendo mais nada e acho bom suspender o vinho. Agora me culpas de contribuir para o exercício de sua terrível profissão? Ora, eu aqui nada faço, acompanho as estações se sucederem, os anos passarem. No máximo coordeno a dança dos ponteiros dos relógios. Se tu matas, eu nada tenho a ver com isso, apenas cumpro minha função de refletir, de contemplar todas as coisas belas da natureza, sejam elas estrelas, plantas ou lua, o que faço é apenas dar prosseguimento a ordem natural da minha superior, a Vida.


– Mas veja se o meu companheiro não está tirando o pesado corpo fora! És meu cúmplice, como o serás ainda daqui a muitas primaveras. Se eu completo a obra, tu me emprestas os pincéis; se eu posso assinar como artista da obra acabada, tu é quem me dás tinta e papel para que tudo seja feito.


Ao ouvir estas palavras serem proferidas em tom de acusação , o Tempo não se deixou desequilibrar, ajeitou-se na poltrona marrom e continuou a argumentar com a mesma voz plácida que lhe caracteriza.


– As coisas, por mais belas que sejam, findam e findam por que tudo nesta existência insiste em passar, a mudar, esteja eu falando de estações, de luas ou marés. Não sou eu o culpado. É assim e porque é assim não sei dizer. Da mesma forma que não sei explicar a mudança das marés, o cantar dos pássaros e as fases da lua, também não sei dizer sobre a existência, o que sei é que ela tende a findar, porque não há flor que viva para sempre, porque não há ainda elixir da juventude.


A conversa parecia interminável, estando a Morte certa da infalibilidade de sua teoria, não aceitava os argumentos do Tempo especialmente por entender que este teimava por mania e gosto.


– Tu agora achas conveniente afastar-te de mim e deixar-me toda a cruz para eu carregar sozinha. Interessante se faz culpar-me das mazelas do mundo, culpar-me da miséria, da tristeza e da dor humana, mas assumir tua cota de comprometimento com a finitude da vida, disto tu te retiras. Não é nada sábio da tua parte não conseguir enxergar a parceria que fazemos, a tua parcela de empenho em me legitimar o ofício que, mesmo penoso, me dá o sustento e do qual muito me sinto honrada.


O Tempo, em sua tranqüilidade quase católica, fez que não ouviu as últimas palavras proferidas pela companheira, levantou-se, foi até a cozinha a fim de procurar um paninho de prato; o móvel de madeira de lei estava sujo de uma substância violácea, a mesma que era sorvida pela Morte em goles pequenos mas constantes.


– Teu mal se chama alcoolismo e minha virtude altruísmo. Deixo-te ficar esta noite porque nem bem caminhar tu podes mais, agora encerra essa conversa de cumplicidade e parceria já que eu não consigo ver outra causa para o surgimento desta teoria do que a causa etílica. Bebeste muito, estás a dizer asneiras e eu não sou obrigado a ouvir nada disso em minha casa. No entanto, sou conhecido – como bem sabes – pela nobreza do coração e pela tranqüilidade – já que o fígado não mais me permite esses excessos, cuido de ti por não outra coisa do que amizade. Qual lençol tu preferes?

A isto a Morte respondeu com indignação, uma indignação somente vista em gênios incompreendidos que vivem a espera do reconhecimento por parte do restante da população que julgam sempre como ignorante ou acéfala.

– Se és conhecido pela tranqüilidade e nobreza, digo agora que passas a ser conhecido pela ignorância. És tolo, ingênuo, no mínimo. Aqui surge uma nova teoria, um raio, um lampejo de sabedoria, algo certamente grande que será estudado através dos tempos, metrificado, quantificado. Prevejo teses, monografias, dissertações...toda uma sorte de documentos escritos com a pena do cientificismo e com a garantia do Positivismo. Serei grande, maior do que já sou, e os louros da vitória...ah! Estes serão colhidos apenas por mim!


– Retiro o que disse. Teu mal não é apenas o alcoolismo, é a impáfia, a soberba, embebidas no álcool, claro. Agora queres dominar o mundo, e, não estando satisfeita, queres a Ciência, os mestrados e os doutorados? Ego é o que não te falta, mas louvo-te a auto-estima, quisera eu ser tão seguro de mim...sinto-me gasto, velho, amarelado e mofado como uma carta de amor que viaja entre os séculos a procura de um coração disponível.


– Se deitares teus olhos nos compêndios científicos, se ao menos simpatizasse com a Filosofia, saberias do que se trata: Tempo e Morte sempre haverão de trabalhar em parceria. Se tu te esforças no esboço eu determino o acabamento do conjunto, jogo-lhe umas tintas, faço a assinatura final, porém, não esqueço que a obra é elaborada por quatro mãos.


– Morte, estás ébria e aos ébrios não se deve dar ouvidos, no máximo, uma xícara de café e um banho frio. Recobra-te os valores e também a consciência. Eu posso viver sem ti, não sou nenhuma espécie de coadjuvante nas tuas desventuras; vivo minha vida sem precisar de ti, em dias que tu não estás comigo ocupo-me das hortaliças e dos remendos na cerca que sempre parecem se multiplicar.
Tenho mãos fortes e talento para jardineiro. Também sei cozinhar e bordar. Para que te necessito? Somente para lembrar a boca e a língua o antigo ofício de falar, pois, não tendo companhia que se apresente, vai tu mesmo, que me és fiel mesmo sendo esnobe.


– Não precisas de mim? É isto que estás a dizer? Ah!Mas quão novo é este discurso!Não eras tu mesmo que, há alguns anos, dizia-te grato pela “constante companhia e fidelidade absoluta”? Agora preferes abobrinhas e tomates a mim? Sinceramente, se meu mal é a impáfia, padeces de moléstia grave chamada ingratidão.


Considerando a última palavra muito forte, o Tempo sentou-se como se a espera de recobrar a consciência e a tranqüilidade quase sempre inabalável. Ingrato é o que não era, era justo e bom , ao menos se considerava. Fez-se magoado com a companheira que tomava seu vinho, deitava em seu sofá e lhe tomava preciosos minutos.


– Decididamente coisa que não tens é coração. Eu te dou abrigo, vinho e boa comida. Dou-te conversa que, mesmo que não tão animada – porque é de meu caráter essa mania de ser metido em mim mesmo – ainda assim é uma conversa...Não tens coração. Ingrato é o que não sou, podes perguntar a essa gente toda se me viram não pagar com um sorriso qualquer benefício que já me tenham feito.


– Ingrato. Ingrato. Mil vezes ingrato. E covarde. Assuma a participação no destino humano. Assuma a co-autoria dos crimes que cometo dia após dia com perfeição invejável. Jamais me vistes falhar, posso tardar, mas chego, fecho os olhos cansados de quem irá apenas abri-lo em ambiente eterno. Nós chegamos sem pedir licença porém, com elegância habitual, roubamos a vida de um ao passo que também abreviamos a dor alheia.


– Co-autor? Nada tenho a ver com teu ofício horrendo! Tira-me esta culpa dos ombros que estes já vão cansados.


– Ora, veja, não há somente ossos em meu ofício, ou devo dizer nosso ofício? Há sempre os dias de alegria e estes são aqueles em que venho em socorro de corpos tão cansados de padecer. Venho dar a extrema-unção àqueles que nem mais forças teriam para dar um suspiro derradeiro. Meu querido, como em todo santo ofício, há os dias de regozijo, de glória.


– Se não me responsabilizo pela abreviatura que fazes a vidas serenas, tampouco me orgulho do prazer último que dás às existências cansadas de padecer. Não quero participação, também não desejo colher os louros do teu ofício. Deixa eu com minhas ervas e meus temperos que isto é coisa muito bonita da qual pouco entendes.


– Deixo-te. De uma vez por todas. Acredito que minha teoria é complexa demais para mentes ignóbeis como a tua. Fica tu com teus tomates e alfaces que de ciência nada entendes. Um dia serei grande, dominarei as gentes de todos os planetas – posto que uma galáxia é pouco para minha capacidade – e aí ouvirás falar de mim. Só não me peças participação nos lucros dos livros que irei lançar. Não sairás na capa, tampouco te chamarei para assinar um prólogo. Não és digno, és ingênuo, de uma ingenuidade burra e de burrice eu nada entendo.


Dizendo estas palavras em voz alta, mais alta do que a de costume, a Morte aceitou o caminho da rua que lhe era oferecido a dedo rijo pelo outro, ajeitou o traje negro e pôs-se a caminhar alegre com a possibilidade de fama e fortuna iminentes. Seria grande, teria o destino de um Napoleão sem ter que passar por Waterloo. Idéias grandes são idéias incompreendidas por pessoas de natureza rasa, pensou consigo mesma.


Quanto ao Tempo, deixou-se deitar no antigo sofá que decorava a sua velha morada, ficou a pensar na vida e na sua antagonista, chamou-lhe em silêncio de vários nomes além de ingrata, jurou não querê-la ver mais e acabar com os bailes das quintas-feiras. Pensou que não precisava de muito a não ser de memória, esta que trazia intacta, poderia se lembrar de qualquer evento que tenha acontecido antes ou depois de Cristo.
Dali em diante ficou só a meditar, a refletir sobre as ciências astrológicas, sobre o fenômeno das marés mas nada queria saber de doutrinas filosóficas. Quando a solidão o deprimia tratava de ouvir suas músicas alegres, não sentia falta da fortuna e da fama, porém, toda manhã tomava café lendo jornais, que era para ter notícias da antiga amiga.

sábado, dezembro 20, 2008

O Signo da cidade ou A poesia concreta das esquinas



" Você não é amado por que você é bom, você é bom porque é amado"

E essa frase, aparentemente clichê, lugar-comum e até mesmo romântica pode definir um pouco o sentimento que se experimenta ao assistir O signo da cidade( 2006). O filme é nacional, tem roteiro de Bruna Lombardi e direção do seu marido, o também ator Carlos Alberto Ricceli.


Questões como solidariedade, direitos humanos, egoísmo, perdão, amor, ódio, preconceitos, solidão pode ser elencadas aqui como peças-chave do enredo de O signo da cidade. Trata-se da estória da personagem de Bruna Lombardi, astróloga e espécie de "conselheira" espiritual de várias personagens menores da trama que estão envolvidas em questões existenciais complexas e que , em atos de desespero, recorrem aos conselhos de Tereza, mulher sensata sobre cujos ombros parecem recair as misérias e as dores de todos que a ela recorrem, de alguma maneira.


Como de costume, não pretendo tratar aqui do roteiro, tampouco julgar ou criticar a atuação dos atores, comentar sobre direção ou fotografia, isso eu deixo para os mais capacitados. Eu quero falar aqui é dessa sensação de solidão , do espírito de fraternidade e de tudo que me tocou ao assistir o filme que fala de uma cidade comum habitada por pessoas visíveis aos olhos do IBGE e invisíveis em sua imensidão interna. Densidade demográfica versus individualidade.


Tal como Caetano denuncia na letra de "Sampa", a dura poesia concreta das esquinas de uma cidade esconde as diversas estórias anônimas as quais seus céus abrigam e testemunham: Quantos de nós já paramos para entender que o próximo não é tão próximo a não ser no Natal, ano-novo? Quantos de nós realmente paramos e tentamos doar, no sentido integral da palavra, não apenas cestas básicas mas doar nossas pessoas para outras pessoas. Não se perde nada com isso, pelo contrário, você pode ganhar muito mais do que imagina.


A cidade esconde por trás de sua grandiosidade pequenos seres; é como se fôssemos pequenos grãos que se unem e se juntam de modo a formar uma paisagem. Uma cidade vazia é uma cidade sem vida, perdida em seu concreto, mas sem vida por que não tem a presença de uma alma.


O signo da cidade toca em pontos os quais poucos se atrevem a enxergar: a importância de nossos atos para a vida de outras pessoas , as quais talvez nem conheçamos. A importância de um sorriso, algo tão simples pode ser o ponto de partida de uma nova vida que, desprovida de dentes e boca, não consegue mais rir e se diz acabada. Uma palavra amiga pode salvar, um carinho no momento preciso pode significar mais do que um simples gesto mecânico.


A estória da astróloga que , quando perguntada sobre o que faz, diz " eu leio estrelas, às vezes", vai muito mais além do que a leitura de mapas astrais ou cartas de tarô. Teca conta com a sensibilidade e com o altruísmo para, de alguma forma, estar inserida e enredada na estória de vida de outras personagens que surgem tal como transeuntes comuns, pedestres anônimos, perdidos em viadutos, debaixo de pontes ou em ruas movimentadas de uma cidade como São Paulo.

Faça você mesmo uma experiência simples, porém, interessante: distribua sorrisos, mesmo quando estes parecerem escassamente em sua boca, pode ser útil a alguém e esse alguém pode lhe devolver o desejo genuíno de sorrir. Assim, você irá rir verdadeiramente, será bom, por que amado. Não o contrário.
Olhar mais para o próximo, enxergá-lo em sua bondade não quer dizer aceitar passivamente ser objeto ou depositário das frustrações alheias. Não, isso não é altruísmo, dar a outra face para que o outro bata, isso me parece masoquismo e , neste caso, mais vale uma hora com um analista do que três horas consultando astros.


Ser bom é o que Teca consegue transmitir: gritar quando é necessário, chocar quando se precisa chocar, mas , sobretudo , fazer o bem sem nada necessitar em troca. Por quê? Porque o caminho da existência plena - e isso aqui, garanto, não é um texto de auto-ajuda, por mais que se pareça - é exatamente o exercício dificílimo de não se vitimizar e de não esperar nada em troca do que se dá.


Uma cidade está aí, por trás de nós que muitas vezes só vemos os nossos problemas, as nossas queixas, as nossas dores, mas há outros que padecem, outros que choram e não necessariamente são invisíveis, inexistem. Todos precisamos uns dos outros, de alguma forma o homem que assalta pode ser o que venha a salvar sua vida, numa situação inusitada, porém possível. O médico que lhe atende, pode ser o que salva sua vida ou mesmo o que lhe furta esta.


É, O signo da cidade parece rasgar um véu de indiferença que teimamos em colocar frente a nossos olhos, para não enxergar, para não ver o que dói no outro para que assim nos esqueçamos que algo em nós é vivo, é frágil e vulnerável. Ajudar o outro também pode implicar isto: saber-se frágil , efêmero, falível.
A vida é, então nada mais do que alguns anos , para alguns muitos e para outros nem tantos que, não sabemos como, nem porquê e nem por quem nos foram dados, mas que, de alguma forma, é de nossa responsabilidade.
Por isso, façamos o melhor com essa dádiva que nos foi dada, porque, não sabendo quando esta nos vai ser tirada ( quando não se está falando de casos em que nós mesmos resolvemos abreviá-la) o que ficará é a árvore que se plantou, o livro que se escreveu, o filho que se teve, e o amor que se deu.

quarta-feira, dezembro 17, 2008

Tirem o amor do dicionário



Tirem o amor do dicionário
Eu sei , muitos hão de reclamar
Os imortais, certamente irão falar
Mas tirem o amor do dicionário
Por que ele é popular demais
Para numa folha ser enclausurado
Porque quem ama,
seja moça ou rapaz
Há de reivindicar o tal vocábulo
Por gramáticos sempre condenado
A estar num frio espaço de um livro
Tirem o amor do dicionário
Por que ele gosta é de rimar
Por que ele quer é se entregar
Por isso tirem o amor do dicionário
Que ele não devia nem ser palavra
Desordenem as quatro letras
Por que amor não é lá coisa de definir
Está mais é pra se sentir
Do lado esquerdo e com alma
Que até gramático traz em si
Por isso tirem logo
O amor do dicionário
Que ele também tem direito de ir e vir







quarta-feira, dezembro 10, 2008

Numa folha de papel*


"Um pouco de pão,
Um pouco de água fresca,
A sombra de uma árvore. E os teus olhos!
Nenhum sultão é mais feliz que eu...
Nenhum mendigo é mais triste..."


Esses pequenos versos estavam escritos em papel amarelado, com jeito de mofado, em tinta tão azul que sequer aparentava ter sido vertida havia quarenta e tantos anos. Não se sabia autor, tampouco obra, apenas isso era o que sabia, eram versos muito lindos e muito simples, compreensíveis apenas para corações apaixonados e poéticos.

A menina leu-os em um antigo alfarrábio da cidade. O sol estava forte, nada melhor do que a sombra de uma árvore, mesmo que feita de versos, para acalmar o coração que trazia uns remendos, umas sequelas ali, outras acolá.

Ela não sabia dizer antigamente qual seria o impacto que seus olhos teriam ao cruzarem tal folha do livro empoeirado que achou sem querer nem intenção no alfarrábio. Talvez em outros tempos não se tivesse deixado ficar tão fascinada como agora, pois tinha dançado outras valsas, porém não raramente anestesiava as emoções e curava suas dores por entre metodologias e academicismos.

De fato, vivera umas primaveras, dera alguns sorrisos, e, se eu pudesse arriscar, diria que protagonizara antes alguns dois ou três momentos de felicidade. Não diria que tinham sido sublimes, posto que agora tem comparação a fazer.

Eu diria que a menina teria dado uns tantos sorrisos e recebido alguns poucos em troca. Beijos dera muitos, mas a alma parecia adormecida, na melhor das hipóteses, na pior a trazia não dormindo, mas morta, embebida em formol porque até então não tinha havido despertador em seu caminho capaz de anunciar-lhe vida nova.

Vida aquela alma não tinha longe dos seus diplomas e de suas ciências, porém, como algum quê de poesia parecia viver trancado nos porões de seu cérebro, lá em algum lugar entre o hipotálamo e o cerebelo, avizinhando-se do coração, deixou-se lentamente penetrar por algo grandioso que lhe apareceu por obra do acaso ou do trabalho árduo de algumas estrelas, se romântica fosse assim pensaria, pois coração de cientista não sente por medo de deixar de pensar.

Não sabia como, nem porquê, mas foi de repente que a noite e a madrugada da sua alma foi indo embora com o anúncio ensolarado de um novo dia: Sim, chegou-lhe um despertador para dar vida a alma amortalhada.

O despertador era um menino de olhos grandes, com ares e boina de poeta. Fez morada no coração antes apenas habitado por artigos e livros técnicos. Trouxe com ele uma chave antiga e um coração igualmente dispostos a se dar e a destrancar a pobre alma da menina que não sabia tê-la morta de vez ou apenas sonolenta, como já se disse aqui.

Era um negócio de poesia e de canções de amor que poucos entenderiam. Pareciam viver numa redoma de vidro que os separava do mundo frio ao mesmo tempo em que os unia cada vez mais. Quase todos os dias estavam a se ver e quando não o faziam fisicamente, viam-se em sonhos ou em pensamento.

E as flores tinham cheiro agora e a vida um sabor doce. As notas musicais tinham nome próprio e apelidos e, quando tocadas formavam melodias simples: por mais diferentes que fossem umas das outras, dó ré mi fá sol lá si sempre se entrelaçavam e se abrigavam no violão de modo a dizer "Eu amo você".

E a noite longa acabou e o sol deu o ar de sua graça por entre as nuvens fechadas que teimavam em escurecer aquele céu que tanto queria ser azul. Pronto, era azul, ele chegou e com seu despertador acordou-lhe a alma, o coração e lhe fez subitamente entender os versos de um pobre, mas feliz trovador.

A menina compreendeu os versos mesmo sem saber de que pena saiu; pôs um sorriso de meia-boca no rosto, como se cúmplice fosse do autor desconhecido.
Agora sim, ela era também aquele sultão e mendigo.

Agora que tinha despertador não cairia mais no sono dos que não amam, fechou o livro e agradeceu ao autor desconhecido já que, em uma fração de segundos, finalmente reconhecia o que emociona o poeta e o que cativa um leitor.

E seu coração não mais vivia de ciência, pois sua alma agora festejava o trim-trim-trim que lhe despertou.
* ilustração: Cristiano Leão

terça-feira, dezembro 09, 2008

Do complemento






E dizem que não há espaço mais para amor nesse mundo de meu Deus. Se alguém me falasse eu não acreditaria mas acontece é que eu vi.


Encontraram-se os dois numa livraria. Nem grande, nem pequena. Apenas conveniente, já se sabe. Maria de branco e com um sorriso de vergonha estampado na face que trazia pintada.


Ele estava a sua espera, com olhos grandes e doces, tão doces como o doce que trouxe para Maria.


Zé era assim, um homem com jeito de moço velho, mas também tinha lá um jeito de menino novo. Seus olhos grandes estavam à procura dos dela já havia alguns anos, umas vidas, se alguém aqui acredita em Espiritismo.


Zé completava Maria tal como Maria era o complemento para Zé: Muitas luas, muitas décadas e vidas já passaram antes de se reencontrarem, pareciam saber de que sonho um tirara o outro, pareciam conhecer já, mesmo sem se ver, os gostos um do outro, os olhos e os cheiros um do outro.


De tudo um pouco faziam, sem preguiça ou tempo ruim; sorriam o mesmo sorriso juntos e sabiam que iriam chorar o mesmo choro também.


Maria sabia Zé e Zé sabia Maria, assim , sem ter nem porquê nem cabimento, se conheciam e não sabiam de que sonho , de qual vida, apenas se adivinhavam, se completavam e, mais que isso, se queriam tanto que passavam a vida a recitar sonetos, a contar umas estrelas e a cantar umas canções tão belas.


Não havia cor que Maria imaginasse que Zé não a adivinhasse; gostavam de cores, de canções de amor , de poemas e de números pares. Há quem diga que não existe nesse mundo de meu Deus um casal tão feliz como aquele Zé e sua Maria.


Eu digo, com esses olhos curiosos que já viram de terremotos à enchentes, que ainda está para nascer um casal como aquela Maria e seu Zé. Depois daquilo passei a acreditar nos gregos que tanto falavam de gêmeas almas, passei a acreditar em Espiritismo , em Deus e até mesmo nas estrelas que numa dança louca fizeram surgir aquele Zé tão certinho pra Maria.

sábado, dezembro 06, 2008

Versinhos para a amada levar para a terra da garoa


É...


Por tantas a gente já passou

De conversa em conversa

tanto a gente já analisou

Já chorei já sorri

já vi chorar já vi sorrir

agora vou ver partir

é...

Por muitas a gente passou

de desventura em desventura

sempre uma mão estendida à outra

em meio a tanta solidão

o encontro da amizade verdadeira pelo computador

é....

por muitas mesmo a gente já passou

amiga o caminho eu sei não foi fácil não

foi muito sofrimento muita angústia

e enfim o pranto passou

vai lá viver o seu amor

que o que é seu jamais o tempo e a distância levou

vai lá viver a paz

que daqui eu fico na torcida e na espera de um alô

é...

tantas a gente passou

e quem desacreditou no amor

graças a Deus não vingou

para ver o dia em que a amada partiu

em busca de seus sonhos
com a benção de sua fé

Foram muitas que a gente passou

e aqui desse lado fica alguém

que ri com você

que chora com você

e desse lado fica alguém a sorrir

porque aprendeu que amizade não precisa ser constante

nem de ver a todo instante

para ficar feliz ao ver a amada ir

segunda-feira, dezembro 01, 2008

O caminho para a distância: Vinícius de Moraes, velho e moço ou moço e velho?


"Este livro é o meu primeiro livro. Desnecessário dizer aqui o que ele significa para mim como coisa minha - creio mesmo que um prefácio não o comportaria normalmente."


Vinícius de Moraes



E assim nos é apresentado o poetinha, nada que lembre o fanfarrão, bonachão inspirador de "Samba para Vinícius". Em O caminho para a distância (2008, Companhia das Letras), conhecemos o poeta jovem, aprendiz, com apenas dezenove anos parecendo suportar todas as dores do mundo.


Falando de exoterismo e misticismo, muito dos poemas reunidos neste livro sequer lembram os poemas da chamada "fase madura" deste boêmio encantador. Publicado originalmente pela editora Schmidt, em 1933, o livro composto de quarenta poemas reaparece agora com a iniciativa da editora Companhia das Letras em reunir a antologoia poética de Vinícius.

Qual foi meu espanto ao me deparar com os poemas claros, simples, beirando o sagrado, os poemas de um jovem que em nada me parecia Vinícius de Moraes não sei dizer. Confesso que da sua obra mais me interessavam os sonetos que somente ele pôde idealizar, porque somente ele tinha na alma um quê de romantismo que pode rimar com soneto.


Sim, para muitos e inclusive para mim, soneto só rima com amor e este, por sua vez, só rima com Vinícius. Porém, em O caminho para a distância, nos deparamos com o ambiente que circundava o poeta desde muito cedo; as paisagens cariocas, as mulheres, o sagrado, o místico e principalmente o amor, ainda idealizado, ainda não transbordando luxúria, tal como conhecidos versinhos que viraram inspiração para o movimento Bossa Nova dos anos 50 e 60 do século passado.


Parece então que neste livro encontramos um poeta aprendendo a viver, mas que nem por isso de versos menores; Se em algumas temáticas conhecemos um novo Vinícius, mais jovem, não podemos deixar de reconher traços muito marcantes do poeta.

Por exemplo, no prólogo de "O caminho para a distância" , o poetinha faz uma advertência: Comenta que talvez alguns versos não estejam muito apurados, porém, não pensava em lapidá-los, em transformá-los em algo melhor, passado pelo crivo da borracha e da consciência. Não, Vinícius o quis assim e assim os publicou.

Com a pena da juventude pôde falar dela como se já não a vivesse, assim em " Vinte anos":


" A minha juventude

E a noite passada em claro chorando Jean Valjean que Victor Hugo matara…

Como vai longe tudo!Pesa-me como uma sufocação meus próximos vinte anos

E esta experiência das coisas que aumenta a cada dia.

Medo de ser jovem agora e ser ridículo

Medo da morte futura que a minha juventude desprezava

Medo de tudo, medo de mim próprio

Do tédio das vigílias e do tédio dos dias…

Virá para mim uma velhice como vem para os outros

Que me dissecará na experiência?"


Um jovem-velho que, se conhecesse seu destino, talvez não temesse tanto assim a velhice e a si mesmo. Era assim o poetinha aos dezenove anos. Tal como todos nós aos dezenove, temia o futuro com a mesma intensidade que o desejava vê-lo realizado, cumprido, feito e terminado. Aos dezenove o poetinha camarada parecia ser mais velho e, quando velho, parecia nunca ter abandonado a mocidade.

Sempre cercado de amigos e mulheres jovens, sua vida sempre foi uma festa, uma roda de samba. E nada disso lembra o poeta um tanto preocupado, mas sempre brilhante, de O caminho para a distância.


Em "Velhice", mais uma vez o tema da finitudade da vida, o poeta fala de como se imagina quando a idade chegar:


" Virá o dia em que eu hei de ser um velho experiente

Olhando as coisas através de uma filosofia sensata

E lendo os clássicos com a afeição que a minha mocidade não permite."


E quem o conhece sabe que essa época nunca chegou: morreu como viveu a vida toda: vivendo intensamente, compondo, escrevendo, e, mais do que tudo, amando: amando suas mulheres que tantas vezes colocou em sonetos, amando seus amigos os quais dizia não fazê-los, mas sim, reconhecê-los, amando sua fé e sua crença em algo eterno e divino.


Assim era Vinícius, e viveu a velhice como viveu a mocidade. Não um velho que se tornou sensato porque os fios grisalhos pousaram em seus cabelos e porque as rugas anunciando a idade avançada fizeram morada em sua face. Vinícius foi ele mesmo imensidão, devoramento, Bossa Nova, samba e muito amor, e nada que pareça sensato pode ser chamado de Vinícius. Porque o seu tempo era quando e a vida, não gosta de esperar!



"Samba para Vinícius"

(Chico Buarque/ Toquinho)


Poeta

Meu poeta camarada

Poeta da pesada

Do pagode e do perdão

Perdoa essa canção improvisada

Em tua inspiração

De todo o coração

Da moça e do violão

Do fundo

Poeta Poetinha vagabundo

Quem dera todo mundo

Fosse assim feito você

Que a vida não gosta de esperar

A vida é pra valer

A vida é pra levar

Vinícius, velho, saravá



quinta-feira, novembro 27, 2008

Sete dicas para levar à livraria



Um dia eu ouvi dizer que a cidade de Buenos Aires possui mais livrarias que todo o Brasil. Também já escutei alguém comentar que os europeus, mais precisamente os franceses lêem cerca de 11 livros por ano. A média brasileira fica em 1 ou 2, se não me engano.

Pensando em todo esse disse-me-disse, resolvi trazer aqui algumas dicas para a escolha de um bom livro. Boa parte delas foi tirada da minha própria observação, das longas caminhadas por entre alfarrábios e livrarias. Há muito que se aprender nestes lugares, portanto, deixo aqui algumas lições as quais me são valiosas quando me proponho a escolher um livro:


1) Nunca escolher um livro cujo nome do autor venha estampado na capa com letras garrafais: Quase sempre isso é sinônimo de jogada de marketing, o que, por si só, já revela que o livro, na grande maioria das vezes, é mediocre. Um bom livro, na minha opinião, fala por si só e na opinião de Foucault assim que um livro é escrito ele passa para domínio público, o escritor é como se apagado e o leitor é seu legítimo proprietário.

Portanto, como podemos presumir, um bom livro não necessariamente é bom porque o nome do seu autor aparece na capa tal como uma alegoria circense de mau gosto. Além de esteticamente feio, autor que é bom autor não precisa usar desses recursos para se fazer vender. Pra falar a verdade, eu acho que autor que é bom autor não necessariamente preocupa-se com a tiragem de seus livros ou com os milhões que faturará. Isso mata todo o prazer da escrita, já diria o Schopenhauer.

Isso tudo é tão verdade que você não vê um "Machado de Assis", um "Graciliano Ramos" tão gigantescos como pode avistar um DAN BROWN da vida. Isso é fato, quem duvida vá à livraria mais próxima e procure por "Anjos e Demônios" ou "O Código da Vinci".


2) Um livro não necessariamente terá que ter seu conteúdo comparado a um filme nele baseado: Isso é muito verdade, pensem comigo: Literatura é uma linguagem diversa da linguagem cinematográfica. Por detrás de ambas existem conceitos diferentes, existem meios de expressar e esses meios não se equivalem. Eu não estudei cinema, também não sou expert em Literatura, mas o que posso dizer é que a linguagem fílmica é diferente da linguagem literária e disso nem o diretor do filme - seja ele Almodóvar, Medem ou Woody Allen - nem o autor do livro - seja ele Saramago ou Garcia Márquez ou mesmo Dráuzio Varella - têm culpa. São apenas linguagens diferentes, compará-los seria como escolher a cor mais bonita do arco-íris e , para ressaltar isto, vale a máxima popular " o que seria do vermelho se todos gostassem do azul ?" ( alusões ao comunismo à parte!).

Dispenso esses comentários os quais começam por " Mas o livro é bem melhor" , " No filme não aparece aquela parte" ...São linguagens diferentes, uma câmera , duas câmeras, closes, atores, diretores vivências diferentes, formas de enxergar diferentes. Se você é fã de um livro, leia-o, veja o filme nele inspirado se sua obsessão assim o obriga, mas não saia por aí comentando que o filme ou o livro é melhor. São coisas completamente diferentes e o diretor do filme não é obrigado a dar o mesmo colorido à paisagem idealizada pelo autor.

Apesar disso, posso entender o sentimento de raiva que muitas vezes invade certos autores quando vêem suas obras diminúidas, por assim dizer, nas telas de cinema. Também acho interessante o fenômeno capitalista que consegue fazer milhões lerem livros somente porque sua versão saiu nas telas.

Quem duvida disso , pergunte quantas pessoas passaram a se interessar pelo aclamado "Ensaio sobre a cegueira", datado de 1995, mas que somente hoje é "hit do momento". Saramago, se precisasse , agradeceria à Meirelles. Ainda bem que não precisa, o homem tem o Nobel, o outro ainda está em busca do Oscar.


3) Desconfie de títulos muito sugestivos: De acordo com a experiência , nem sempre o livro é tão interessante quanto seu título. Acho mesmo que deve existir autores especialistas em títulos. Sua obra deveria ser respeitada apenas pelo talento em escolhê-los; "fulano é especialista em títulos, seus títulos são perfeitos". No entanto, se você não quer ser pego nessa "armadilha editorial", folheie, passe os olhos nas orelhas, no prólogo (se lá estiver) e também dê uma rápida olhada nos capítulos: se estes não forem interessantes o bastante para você entender que poderá gastar seu precioso tempo desfrutando-o, sequer chegue ao fim da página, feche imediatamente o exemplar e procure o próximo.


4) Nunca menospreze os chamados pocket books: Se você é daqueles que passa correndo por aquela espécie de "estante" na qual os livros de bolso são dispostos, sugiro que dispense um pouco de seu tempo girando aquela geringonça a qual não sei denominar de nada.

À primeira vista pode-se pensar que os livros ali dispostos são fracos, pobres, prostituídos, digamos assim. Encontrados em todos os lugares, de farmácias a postos de gasolina, os famigerados pocket books geralmente são clássicos que a grande maioria das pessoas não leu ou não teve paciência para terminar de ler. Muito frequentemente entre os pockets encontram-se "Hamlet", "Édipo", "Fábulas de Sófocles", até mesmo livros de 500 fáceis receitas para micro-ondas. Tudo é uma questão de olho. Se você tiver um bom, assim como muitos músicos têm "bom ouvido", é capaz de adquirir um livro legal pela bagatela de cinco, dez reais.


5) Desconfie de alfarrábios: Não vá pensando que alfarrábio é sinônimo de livro barato. Não, não é. Você pode encontrar livros de fotografia, de cinema por preços tão exorbitantes quanto os de um livraria comum. Não é por que é usado que o livro é mais barato, mas também não quer dizer que não valha a pena fazer uma espécie de tour por entre os alfarrábios da cidade em busca de coisas interessantes, de edições muito antigas, até mesmo de cartas perdidas num romance esquecido numa prateleira empoeirada ( nunca se sabe!).


6) Cuidado com autores "da moda": Esse é um grande truque editorial promovido pelo capitalismo desenfreado. O autor vai, escreve um livro, e boom! vira sucesso instantâneo, best-seller. Todos desejam conhecer a mente brilhante por trás das sábias linhas; há que se conhecer mais e mais, há que haver outras linhas por trás destas , pois, quem um fez , faz tantos mais, isso em escala industrial.

Há contratos - vamos agora falar o lado real por trás da livraria - : Há quem viva de literatura, no Brasil é um tanto quanto difícil, mas há quem ganhe o pão de cada dia graças à literatura. Esses "sortudos", na maioria das vezes possuem contrato com uma editora que deseja vender e, portanto, há que se escrever, mais e mais.

Essa coisa de best-seller nunca me agradou muito. Parece que depois de um best seller o autor nunca é o mesmo: sempre haverá uma faca imaginária em seu pescoço e uma voz ameaçando: "Será que você pode fazer melhor?"

Sim, acredito piamente que exista isso, e tenho pena do pobre escritor. Poucos são os que conseguem manter o auge, geralmente o mercado o consome demasiadamente, extraindo de uma mente criativa tudo que de melhor pode haver nela. De edição em edição vai se perdendo um pouco do brilhantismo.

Claro que muitos autores renomados vivem de seus nomes e também há muita gente que consegue manter o alto padrão a despeito das exigências editoriais. Acontece. Vide Veríssimo.


7) Capas de livro esteticamente feias: Ao contrário de um título sugestivo que pode enganar, uma capa feia NUNCA engana. Veja bem, atente para o caps lock: NUNCA engana. Eu parto do pressuposto de que uma edição bem cuidada , elaborada passa também por uma capa bem feita, uma boa diagramação, esteticamente agradável aos olhos.

Nunca compre um livro em que existam duas pessoas se beijando na capa - a menos que a imagem seja um pouco distorcida, em tom sépia ou preto e branco e não seja tão óbvia . Também desconfie de pessoas de mãos dadas e animais, a menos que estas tenham um cunho irônico, tenham a ver com o conteúdo do livro.

Desconfiem muito, mas muito mesmo, se houver um profissional de sucesso na capa do livro, alguém cujo sorrisinho seja de vencedor ou que esteja a indicar o caminho para Pasárgada, o caminho de Canaã ou mesmo como vencer na vida em 76 passos. Não gaste seu tempo nem abrindo tal exemplar. Sequer chegue ao primeiro passo.

Também desconfie de flores bonitas, arco-íris e pôr-do-sol, geralmente isso é sinônimo de livro de auto-ajuda.


Tenho impressão que poderia listar outras tantas dicas interessantes para quando se está numa livraria, por ora minha experiência e minhas observações só me levaram a essas mesmo. Acho até que alguém deveria escrever um livro sobre como escolher livros, seria até interessante, um tema pouco explorado. Seria um best-seller! Ah...mas o vencedor está só!Cuidado!

quarta-feira, novembro 26, 2008

Liv Ullmann e suas Mutações


" Eu desejava acomodar-me dentro do bolso de alguém e poder pular para dentro e para fora, quando me conviesse. Agora ando por aí ouvindo as queixas de mulheres que, segundo imagino, estão presas nos bolsos de outros"

Liv Ullmann


Esse é um dos vários trechos do sincero e
não menos comovente livro de Liv Ullmann , Mutações (2008, Cosacnaify). Em 218 páginas, Liv relata com sensibilidade e poesia fatos marcantes do seu cotidiano, segurando a mão do leitor rumo aos bastidores do mundo glamourizado do cinema do qual fez e ainda faz parte durante boa parte das últimas décadas do século passado.

Liv Ullmann é famosa por ter sido esposa e musa do renomado diretor Ingmar Bergman. No entanto, cabe ressaltar, seu talento ultrapassa a mera alcunha de "musa norueguesa", também nada tem a ver com "diva", "sex symbol".

Não, Liv nada tem de musa; não lembra o encanto natural e quase infantil de Audrey Hepburn, tampouco possui o sex appeal de Greta Garbo. Liv é uma mulher a qual podemos classificar como "normal": insegura, solitária, sensível, carente. Poderíamos aqui estar falando, de acordo com essa descrição, de qualquer mulher contemporânea, poderíamos inclusive estar falando de quem aqui estar a ler essas linhas e também de quem está do outro lado, escrevendo-as.

Em Mutações, a autora nos mostra e nos prova o quanto é difícil posicionar-se no lugar de sujeito desejante, sobretudo assumir uma identidade feminina. E veja! Isso não é diferente porque ela é famosa, atriz, diretora, bem sucedida. De acordo com Freud, o feminino seria um lugar muito obscuro sobre o qual o homem (falo aqui de humanidade!) deve lançar luz; desafiante e negro: este é o continente feminino do qual fala Freud e no qual Liv está tão imersa e nos mostra em seu recente livro.

Ao contrário do que possa parecer para muitos, não é intenção da autora fazer de Mutações uma mera auto-biografia, também não me parece que o livro penda para o que poderíamos chamar de "expiação de culpa" ou mesmo que possa ser classificado como um best-seller. Sem dúvidas haverá os interessados, fãs do cinema sueco de Bergman, fãs da atriz e diretora, mas , não creio que estes leitores sejam tantos a ponto de fazer o livro tornar-se o que o Brasil convencionou chamar de best seller, nos moldes de um Paulo Coelho.

O livro é simples e belo em sua simplicidade. Não existe nele nada do que não possamos saber com o passar dos anos dessa vida que vamos vivendo, assim, um dia após o outro. Também não se fala de viagens interplanetárias, nem lições de vida de pessoas bem sucedidas profissionalmente. Não, nada disso, o livro também não conta a história romanceada de ninguém, conta apenas a estória de vida de Liv, a mulher, por trás da máscara da atriz, à qual a mesma tanto se refere.

Dividido em quatro partes, Mutações, o qual foi dedicado a filha de Liv, Linn, parece ter sido escrito com a pena da sensibilidade, da poesia, apesar de estarmos falando de uma prosa. Não existem capítulos, mas as partes as quais dividem o texto parecem ser elas mesmas partes significativas da vida da atriz, seus melhores momentos, digamos assim.

Por isso, o leitor é convidado a invadir os bastidores de Hollywood e entender que o luxo e o glamour escondem coisas das quais duvidam nossa vã filosofia, vai também conhecer o universo dos romances de Liv, especialmente o romance com Bergman, do qual Linn é fruto, compreender o jogo de egos e a relação conturbada que viviam ela, a atriz submetida ao diretor, mas, primeiro de tudo, ela, mulher, ele, homem. E isso já dá muito pano pra manga ou página de livro, digo a vocês, nem precisava estarmos aqui falando de Liv Ullmann e Ingmar Bergman.

Liv também nos deixa conhecer suas maiores fragilidades, sua sensibilidade extrema a qual tantas vezes emprestou a personagens as quais representou com maestria. Ao ler Mutações, o leitor se depara com o universo da construção das personagens, com o mundo que se apresenta a
Liv e que se faz presente no seu modo de interpretar, dizer verdades mentindo.

Tudo que eu pudesse falar aqui sobre o livro não faria jus à experiência única que é fazer parte, nem que seja ali, da cadeira de leitor, do universo de pura sensibilidade e simplicidade que Liv constroí em torno de si e que empresta às suas personagens.

Não, definitivamente não há nada de novo em Mutações, não poderia chegar aqui e dizer que comprem o livro para que se deleitem com uma leitura agradável, feliz. O livro não me parece feliz, pois como sustenta a própria autora, não existe um constante estado de felicidade. No máximo, quem desejar aventurar-se por esses meandros "obscuros" da feminilidade (leitura cara aos freudianos) encontrará em Mutações os relatos de uma mulher esmagada entre tantas culpas, entre a culpa de ser bem sucedida e assustar muitos homens, causar inveja, a culpa de não ter tempo suficiente para ser mãe em tempo integral, a culpa por não se adequar ao que a sociedade entende por "mulher" ou "deveres e obrigações femininas" .

Em Mutações o leitor encontrará tudo isso, talvez possa se identificar em diversos momentos, talvez venha até a chorar e a sentir uma espécie de empatia por Liv que conseguiu escrever um livro com a alma. Ah, e por acaso ela também era atriz. E que atriz.

quinta-feira, novembro 13, 2008

Reflexões atléticas*


Flor no portão :

Florzinha amarela , será que se soubesses que toda vez que passo por ti
Tenho vontade de te arrancar pra mim, ainda serias tão bela?

Gato-malandro:

A cada passada o gato malandro me observa,
Chego perto e nada dele , pois age com reserva,
Será que o que o faz arisco é medo de amor
Por que outras já lhe amaram e só lhe deixaram no peito dor?

Construções:

Ao longe casas em construção
Umas mais acabadas, outras não
Será que o engenheiro já pensou
O quanto que seus montes de concreto
Já serviram de esconderijo pra dois corpos
Se amarem debaixo de seus tetos?

Sapo – cururu:

Sapo cururu que tanto olha
Parece que quanto mais te pulo e te fujo
Mais perto de mim tu chegas junto
Queres somente me assustar ou
O numero do meu telefone pegar?
* Ilustração: Cristiano Leão

sexta-feira, novembro 07, 2008

Mergulho


Vai, um pouco mais
Não está longe,

Em breve sei que vais achar
O que o mar esconde dentro da cascata de suas ondas
Vai, me segura que eu vou mergulhar
Sabes bem que sou valente,
Ora, pois se tenho um medo é de serpente

Vamos , mais fundo e bravamente
A explorar o mar que se fez de presente
Quem sabe nos encontremos nas profundezas?
Quem sabe nos abracemos contra a corrente?

Vai, meu amor, pro fundo vai, e de lá o que me trarás?
Um anel perdido há muito?
Uma estrela do mar ou mais?

Vai,
Pro fundo e profundo vai
E se não for pedir de mais
Me tragas por favor um baú antigo
Resto de navio perdido ,
Um belo tesouro no mar escondido

Que é pra eu guardar todo esse amor
Que inunda meu peito e que não cabe nem
No maior mar do mundo inteiro

sábado, novembro 01, 2008

Eu passarinho.


E então , com uma frase, tudo se reduziu a um título, defendido por trinta minutos e ameaçado por umas duas horas, não mais que isso: " A dissertação reúne os requisitos necessários para ser auferido à aluna o grau de mestre".

Isso sem dúvida deve ter sido a frase mais importante da minha vida até então. Provalvemente virão outras, talvez "eu aceito" " é menino, é menina". Não sei especificar quando estas virão, portanto, sigo a refletir sobre o que esta que citei causou e causa em mim.

Durante dois anos e alguns poucos meses me dediquei a algo com toda a força que em mim não sabia existir. Enfrentei frio, enfrentei chuva, enfrentei solidão e principalmente enfrentei a mim mesma. Eu, 23 anos, munida de sonhos grandes e muita determinação , joguei-me ao mundo em busca de um título, "mestre". Achava que isso faria de mim uma pessoa diferente do que tinha sido até então. Alguém mais séria, com ares de mulher, talvez, porque quando alguém se referisse a mim teriam que me chamar de Ms., antes de pronunciar meu nome.

Com esse sonho de ser grande eu fui, sem querer, abdicando de algumas coisas em minha vida. Conforto, comodidade e um projeto de casamento. Tudo isso parecia nao valer muita coisa diante da determinação com a qual abracei as minhas mulheres mascaradas.

No começo chorei bastante sentindo falta de coisas das quais nunca imaginei precisar. Sentia falta inclusive do mar, este que tão pouco conheço. Sentia falta de comidas típicas somente pelo fato de não poder saboreá-las. Tenho certeza que se pudesse, na ocasião, comer uma boa tapioca eu não comeria, mas, como estava longe, as coisas típicas pareciam ter um gosto a mais, talvez apimentado pela saudade de tantas outras coisas que eu desejava.

Talvez, quando eu dizia que sentia falta de comer tapioca, eu quisesse dizer a mim mesma que sentia falta do sentimento de cumplicidade e de conhecimento que existia entre mim e a cidade em que nasci: Não sentia um afeto muito grande por ela, também não sinto hoje e talvez o que me ligue a ela sejam apenas as raízes, algumas poucas pessoas queridas, não mais que isso, mas que, ainda assim, é a minha cidade, meu lugar em que posso com tranquilidade tirar os sapatos e explorar sem me sentir estrangeira.

A sensação de estranhamento é interessante: não se sabe muito bem o que vai se encontrar numa terra distante em que as pessoas parecem frias, ocupadas e extremamente racionais, quantitativas, eu diria, se quisesse continuar nos domínios metodológicos a mim tão caros. Eu, que sou tão subjetiva e tão qualitativa.

Andei muito, permiti-me muito pouco por medo meu e dos que me querem tão bem, mas, no fim eu posso dizer que conheço algumas ruas das cidades pelas quais transitei, posso dizer também que testemunhei alguns fatos interessantes, vivi alguns feriados e comi umas comidas tipicamente alemãs.

Não fiz amigos. Na época acho que essa idéia de me apegar a alguém me fazia um tanto quanto nervosa e ansiosa, e , como sempre fiz o que quis, não desejei ali ter amigos, apesar de que , de onde menos esperei, pude contar com algum apoio.

Porto Alegre me lembra coisas verdes e roxas. Hortências e árvores centenárias, parques, muitas cores em meio à cidade cinza em seus prédios velhos e repletos de história. Grafitte nos viadutos parecem dar alguma vida à cidade que me parece tão fria. Porto Alegre também me lembra muita cultura, muitos insights, e muita solidão.

Solidão acompanhada por pessoas que lentamente tiravam meu sorriso da cara, o qual eu achava que sempre iria me acompanhar. Porto Alegre me lembra o trem, não o das cores, mas o das palavras, o dos poemas.

Porto Alegre me lembra Mário Quintana. O poeta do passarinho, o poeta das frases tão ternas e doces que me lembram um menino tão doce quanto o poeta e que parece que veio para ficar. Porto Alegre, definitivamente, seria um bom lugar para se retornar sempre e sempre que eu desejar reacender em mim alguma coisa de poética, alguma coisa de verde e roxo na alma.

De São Leopoldo pouco posso falar que não seja sobre meus estudos. Pouco passeei naquela cidade que me parece tão pequena e tão sem mistérios. São Leopoldo me lembra trajetos intermináveis de ônibus. Favelas e casinhas de madeira. Lembra a faculdade, a dissertação e tantas outras coisas belas que iam aparecendo diante dos meus olhos. Rio dos Sinos, Vale dos Sinos, trem e muito frio.

Novo Hamburgo, a cidade em que vivi, em que chorei e em que me fiz mais gente do que costumava ser. Não tive a oportunidade de revê-la, não pude fazer de volta sorrindo o trajeto que tanto fiz com lágrimas nos olhos. Acredito que vá me arrepender de lá não ter voltado, de ter visto a velhinha a qual tanto me apeguei e de quem sinto tanta falta, em seus robes e suas pantufas quentinhas.

Sinto saudades da casa, do cheiro de amaciante nas minhas roupas e das plantas de Novo Hamburgo.

o dia 29 chegou e com ele vieram os trinta minutos em que, mais uma vez, tive que esconder as lágrimas que não paravam de brotar em minha alma, forjar um sorriso e fingir que a dissertação nem deu trabalho, que o processo foi fácil e que vivi tu do isso com grande alegria.

Não sei se consegui interpretar esse papel, fato é que consegui defender com as entranhas aquilo que fui fazer tão longe de casa. Consegui.

Hoje posso dizer que sinto-me feliz por ter alcançado aquilo que nos meus sonhos de infância representava o diploma de inteligência só superado pelo diploma de doutora. Não sei se darei prosseguimento a este sonho, agora. Sinto em mim uma necessidade de viver para outras coisas, para uma família, para meu violão e minhas poesias há tanto guardadas.

No fim reconheço que o título não fez de mim alguém diferente do que sou. Continuo menina, meus olhos continuam não aparentando já ter visto tantas coisas, e minha face até pode ser confundida com uma face de menina.

O título chegou e não me sinto mais ou menos mulher, mais ou menos inteligente. Na verdade, sou a mesma, porém com a certeza de que tudo posso quando me determino a algo fazer.

Continuo a mesma pessoa, sedenta de sorrisos verdadeiros, de amizades reais, de pessoas reais, cumplicidade, companheirismo e alegria. No fim, eu não sou mais feliz por ter conseguido este diploma tão sofrido, mas posso dizer que me sinto , neste momento, feliz por ter até agora conduzido minha vida dentro de uma ética que considero justa.

É bom saber que é possível superar obstáculos e ver que Quintana, o menino, estava certo, no final de tudo aqueles que atravancavam meu caminho passaram, como o frio e o medo da solidão. Eu continuo passarinho.

sábado, outubro 25, 2008

Disse-me-disse


Eu sei que vão falar, quando meus pequenos olhos longe dos teus estiverem
E ainda assim neles houver um quê de olhos grandes que são tão teus, aí eu sei que vão falar.
Quando eu me encontrar sorrindo um sorriso próprio que brota da tua boca, aí eu sei que vão falar, porque ao povo que não sabe nem pode amar, o que resta é falar.
Eu também sei que quando a minha face começar a lembrar a tua, quando meu jeito de andar for quase o teu, aí eu sei que vão falar.
Se por acaso eu gargalhar como tu, se da minha boca sair umas coisas tão tuas a ponto de nos confundirmos num só, aí só vai restar ao povo falar.
Se acaso meu violão começar a tocar as notas tuas e os meus sonetos passarem a lembrar tanto os teus, aí, coitados deles, vão mesmo é falar. Eu sei que eu vou tentar com uma frase desdizer a boca de quem fala, mas, como quem desdiz só afirma o que foi dito, eu vou mesmo é calar.
Por isso, não se espante, quando eu começar a me parecer contigo, quando eu começar a rir o teu sorriso e a chorar as tuas lágrimas, porque eu sei que o que o povo vai fazer é falar.

terça-feira, outubro 21, 2008

A vila


É um mundo à parte. Miúdo para alguns, gigantesco para outros, entretanto. O certo é que neste mundo as coisas parecem mais belas, o azul é mais azul e o verde não é um verde qualquer.

Este é um lugar para se viver e viver de arte. Poesias são recitadas a cada esquina, versos entoados em todas as quadras da cidade, como se chamassem a população para os livros, acordassem suas almas para o interior de si mesmas. A vila não está no mapa da cidade, poderiam contar uma ou duas ruas, três esquinas, talvez.
Há uma padaria – porque há que se alimentar também a alma, e uma praça – para que haja um lugar assim em que se possa admirar árvores e flores, inspiração de qualquer poeta, seja ele grande ou rasteiro.
A vila também respira música. Em todos os lugares pode-se ouvir um violino a soar umas notas tão bonitas que fazem companhia às flores da praça no difícil - porém prazeroso - ofício de parir poemas.
Tristeza é algo raramente visto nesta vila - é o que dizem os moradores mais antigos. Uma vez ou outra se ouve alguém chorar por amor, mas, como todo amor que chora é amor maior, há que de algo servir, por isso, não há dor tão grande que não possa ser colocada em letras, metidas em versos e alinhadas em uma estrofe.
Sobre a população não se pode dizer que é feita de pessoas alegres, apesar de transformarem a tristeza em poema, há um quê que ninguém sabe explicar se de dor ou de felicidade contida, algo tão particular destes habitantes que eu poderia dizer que nunca vi nada igual.
Suas poucas ruas são iluminadas. Há postes cinzas de luz fraca a cada 50 metros, bancos verdes que são para o namorado recitar seus poemas a olhar diretamente nos olhos quase sempre molhados da namorada.
Violões e bicicletas formam a paisagem deste lugar, acho que não cheguei a avistar um automóvel ou respirar a fumaça comum das grandes cidades. Serenatas e recitais fazem parte da alegria da população que todas as noites se reúne na praça a aplaudir o artista da vez.
Além de poetas há muitos escritores , escultores, pintores e desenhistas neste lugar tão simples mas ao mesmo tempo tão belo. Ao longe se pode ver casas de fachadas coloridas e de girassóis na soleira das portas, porque casa de poeta tem que respirar e inspirar poesia, e cinza ou preto não combinam com nenhum soneto. Há que se ter cores, muitas delas.
Distante das casas coloridas o mar pode ser visto. Como tudo nesta vila é tão surpreendente, não se pode imaginar que seja um mar qualquer. É um mar meio verde e meio azul, um mar que troca de cor de acordo com a visão de quem o contempla. O sol e a lua trocam de posição de forma amigável: sendo o sol um perfeito cavalheiro, empresta um pouco do seu brilho à sedutora lua, que todas as noites vai linda subir ao céu dos namorados.
As nuvens se entrelaçam umas às outras acima dos olhos do povo formando as mais variadas composições, como se brincassem com a criatividade de quem olha para cima. Às vezes vêem-se bicicletas, outras vezes alguns podem jurar que vêem notas musicais, cachorros e elefantes ao testemunhar o espetáculo do céu nublado.
O mar, juntamente com as flores da praça e os olhos das mulheres bonitas, é um dos temas preferidos dos artistas que surgem na vila com a mesma freqüência que surgem as estrelas no céu.
Não sei dizer quantos vivem neste lugar repleto de paz, porém posso dizer que aqui cheguei com duas mudas de roupas e uma alma muito afoita, querendo dar tudo de mim para que aqui possa fazer meu recanto, entoei uns poemas e toquei algumas notas no violão, isso foi o suficiente para que me deixassem entrar.
- Há que se ter talento para viver aqui. Dizia o bom homem de paletó cinza e flor amarela na lapela.
Inicialmente voltei os olhos para baixo, como se previsse que logo deveria deixar este lugar tão agradável e voltar ao mundo tolo que havia a alguns quilômetros. Foi então que o sábio homem fez renascer em mim uma certa esperança, daquelas que aparecem subitamente quando se pensa tudo ter perdido.
- Não pense que ao dizer isto estou fazendo qualquer espécie de seleção. Todos que aqui estão um dia chegaram como você: poucas roupas, uma mala velha, candeeiro para iluminar os pensamentos, uma alma errante e uma garrafa de vinho para curar a dor de um amor que virou poesia. Foi assim que cheguei aqui, com um coração remendado, dois sonetos numa trouxa velha a qual chamei de bagagem.
- Foi assim, então, que me deram pão, duas flores brancas e me apontaram o céu. Naquele momento eu pude compreender a beleza que existe em todas as coisas que cercam este lugar. Eu pude entender a poesia que brota das jardineiras, a música que nasce das esquinas e, sobretudo os olhos dos dois namorados que passeavam a entoar cantigas e versinhos de amor.
- Aqui você não precisará de dinheiro, tampouco de bens materiais. Há apenas que ter coração. Se não o tiver, digo-lhe, dê meia volta e retorne para onde saiu. Porém, se existe um coração a pulsar e uma alma a repousar escondidos no seu ser, então fique e aproveite o mar que não se decide se é azul ou verde, tome o sol como amigo e usufrua da lua como a maior inspiradora da sua arte.
- Pinte uma flor e dê-lhe água, tente esculpir rostos das namoradas, faça versos com a luz do poste a te iluminar. Use o violão porque este aqui é tão público como os telefones são nas cidades que deixamos para trás. Isto aqui, como você pode notar, é apenas uma vila repleta de umas paisagens muito simples, porém não menos belas, habitada por pessoas igualmente simples e puras de alma que decidiram abandonar a crueldade das grandes cidades em busca de um recanto.
- Aqui nunca se ouviu falar de morte matada, também nunca se soube notícia de gente a tirar a própria vida. Dizem que isto é a finalidade da arte e é por isto que estamos aqui, abandonamos o mundo real e nos reunimos nesse canto que é um abrigo para almas cansadas de tanto vagar.
Se você me perguntar se aqui todos são felizes todo o tempo, não saberia responder. Mas, se um dia a tristeza visita alguém ela não chega para ficar, há logo quem coloque uma vassoura atrás da porta para o caso de ela insistir um pouco mais e se demorar. Tão logo chega vai embora tudo isso que alguns chamam de dor e de pesar, porque aqui as pessoas aprendem a conviver como se a maravilha maior estivesse na simplicidade e na pureza dos corações.
A vila não tem portão, assim como as casas não têm muros. Há que se respeitar o próximo como o sol respeita o direito da lua de alugar o mesmo céu em que ele brilha algumas horas por dia. Se houvesse uma espécie de governo tal como existe nas cidades lá de fora eu poderia apostar num tipo de comunismo poético – permita-me a invenção do termo – porque tudo que temos é de todos e esse tudo nada mais é que arte, e esta pertence a quem dela se engraçar.
Vivemos com tudo isto que para você, visitante da cidade de lá de fora, talvez não seja nada. Não há mais o que eu possa contar sobre a nossa vila, é isto que temos e eu estaria a mentir se lhe contasse que há bancos, restaurantes luxuosos ou grandiosos hotéis. Hotéis, para falar a verdade verdadeira não há, uma vez aqui chegando não há quem queira apenas pousar. Aqui quem chega anseia ficar.
Por isso, se este é seu desejo, pegue esta bicicleta, conheça as ruas, mas não se esqueça de dispensar meia hora do seu tempo a olhar as belas flores e árvores da praça, mais meia hora observando o mar e mais umas duas horas a admirar o espetáculo das nuvens graciosas a brincar no céu de algodão. Se nada disso lhe fizer acordar a alma e o coração, então sugiro que você pegue o retorno mais próximo e volte para onde você saiu.
Depois de toda essa explicação, não soube exatamente precisar o que aconteceu dentro de mim, mas suponho que começaram a nascer uns versos, meu coração disparou em lá e dó e eu senti brotar em mim um conhecimento que não sabia dizer se morava no cérebro ou na alma , mas algo do qual jamais suspeitei.
Foi então que percebi que não mais desejava voltar à cidade lá de fora. Segui os conselhos do sábio homem que me acompanhava e dediquei meu tempo a conhecer a vila em que as pessoas se reunem em volta da simplicidade e libertam-se da solidão compartilhada que se vive no mundo real.
Fui ficando e não sei dizer se volto. Sempre mando cartas para o mundo de fora, digo aos meus que aqui estou feliz, que vejo o sol com outros olhos e que o mar nunca me pareceu grande coisa antes de conhecer este que é azul e verde ao mesmo tempo.
Ilustração: Cristiano Leão

terça-feira, outubro 14, 2008

Soneto com serpentina






E era o primeiro dia daquele carnaval
Confetes eram vistos nas vielas da cidade
Tinha gente alegre de todo tipo e idade
Já que pular e sorrir faz tudo, menos mal

Era carnaval e já era o segundo dia
O Pierrot pulava e sorria e nada dela olhar
Colombina fingia não se importar
Sem confete, não dava e nem queria alegria

Serpentinas no chão e já era o terceiro dia
Rumores de tristeza, tinta saindo dos rostos
A tarde ia vazia para o Pierrot na multidão

No quarto dia ele andava por entre os loucos
E das cinzas fez surgir um amarelo radioso que não foi em vão
E assim o Pierrot teve no girassol a sua melhor companhia


Ilustração de Cristiano Leão

sábado, outubro 04, 2008

Do encontro*



Tudo se deu na livraria da esquina. Não é que a livraria era grande, nem famosa. Também não era um simples mercadinho de livros. Era a livraria da esquina, sem muitos retoques ou letreiro suntuoso. Nem grande, nem vistosa, nem pequena. Era apenas conveniente.

Encontraram-se lá, aquelas duas almas a vagar entre as sessões de Literatura e a de Jardinagem.

Ela, que costumava se encantar com qualquer coisa que acordasse sua alma da letargia cotidiana, buscava algo diferente. Pensou em Clarice, logo desistiu. Muito auto-destrutivo. Pensou em Florbela e largou no mesmo instante, percebeu que a leitura não era tão diferente de Clarice.
Foi por mandar seus olhos passearem por outras sessões que ela viu o moço das orquídeas.

Queria saber por que diabos aqueles olhos não podiam deixar o orquidário e dar uma passeada lá pelos contos da Lygia Fagundes Telles. Bem que poderiam.
Ela olhava e quanto mais olhava menos entendia porque ele só se interessava por plantas, regadores ou coisas do tipo. Será que não era suficientemente encantadora, tanto ou mais que uma orquídea? A indiferença daqueles olhos jardineiros era demais para ela suportar.
Foi ter com as plantas também. “Há que se plantar, para se colher”, pensou, aproveitando o ensejo.

“ Seu nome científico é Helianthus anuus - o que explica sua imponência e porte majestoso: a palavra Helianthus significa ‘Flor do sol’”.

Era o que dizia a primeira frase da orelha do livro que ela buscou. Ali, naquele território, parecia estar mais próxima das orquídeas do moço desconhecido. De fato, pensou que se pudesse ela mesma vestir-se de dourado e segurar umas poucas folhas esverdeadas, certo que o faria, o moço era muito merecedor, ao menos seus olhos eram, aos olhos dela.
Ele parece finalmente notar que o interesse dela foi subitamente desviado dos contos para a jardinagem, visto a distância entre a sala de leitura e o jardim, poderia dizer que ela foi bem rápida ao se locomover. Não entendia, entretanto, porque ela, uma moça que parecia culta e interessante, estava ali a ter com girassóis e papoulas.
Não, não achou que era por sua culpa. Ela era culta, poderia ser, mas era também um tanto curiosa, e seus olhos pareciam sempre à espreita. Não gostava daquilo, mas, parecia gostar da curiosidade que trouxe a moça aos assuntos de jardim.
Se pudesse - pensou romanticamente como nunca ousara pensar - Se pudesse removeria com as mãos o teto já mofado da antiga livraria para que os raios de sol pudessem, eles mesmos, encontrar aquele girassol de olhos ávidos que se deixou plantar ali, quase sem querer ou intenção.
E ficaram ali, sem saber muito o que dizer. Ele a mover-se cada vez mais rapidamente por entre orquídeas, papoulas, lírios , rumo aos tais girassóis. Ela, sem saber por onde mais caminhar, não sabia se deveria ir ter com as orquídeas ou se se deixava ali , plantada com a tal "flor do sol" nas mãos.

Ela torcia para ele se aproximar.

Ele desejava que ela não mais saísse do jardim.

Há quem diga que nem Clarice nem Florbela entenderiam o que se passou na livraria.
*Ilustração de Cristiano Leão