terça-feira, julho 15, 2014

E nos começos era o amor , de antes?

" Passadista, indiferente ao novo, alguém que perdeu toda a capacidade de se admirar, eu protesto: não, nem tudo era agradável antes, nem tudo é abominável hoje. Isso não me impede de comparar, e toda comparação implica sempre o risco de contrapor o bom ao mau, o melhor ao nem tão bom"

J-B. Pontalis

Essa é uma das muitas passagens marcantes de Quando ( Primavera Editoral, 2013) da autoria de  J-B. Pontalis. Esse livro faz parte de uma série de outros escritos em que o autor se aventura em uma nova empreitada: não se trata de um livro técnico, também não se pode dizer que seja uma autobiografia.

Na verdade se trata de uma espécie de reunião de textos esparsos que o autor produziu durante sua vida e que em algum momento traz um ou outro relato sobre sua forma particular de ver o mundo, mostra um pouco de suas experiências pessoais. 

Pontalis fala de alguns amigos, de Psicanálise e de seu país, revela suas impressões acerca do mundo e, claro, seu interesse em revisitar o passado, mas não com um intuito saudosista, escrito com a pena da melancolia, longe disso, ao julgar pela frase que lhes trouxe no início desse texto, Antes não pode ser considerado uma ode ao passado motivado por um tolo sentimento nostálgico qualquer.

Para o leitor ocasional, Antes parece um passeio pelas reminiscências de uma cidade que não existe mais, por encontros com pessoas que foram parte da vida do autor, em especial. É quase, como disse, um relato autobiográfico, mas não se trata somente disso, veremos que o que une os textos escritos em uma linha cronológica tão irregular é justamente o interesse do autor em não fazer do passado um tempo findo, do mesmo modo, o futuro não daria todas as respostas que se procura. A solução seria justamente o que propõe em uma dos textos desse livro: não retalhar o tempo, vivê-lo assim, todo.

Pensando desse modo, o cronômetro, a linha cronológica, o caléndario e o relógio nada mais fazem do que nos mostrar isso: que o tempo possui esta inexorável função de ser passado, esses objetos que a humanidade criou servem apenas ao corte, ao retalhamento da experiência. A areia da  ampulheta lentamente se esvai para o compartimento inferior e isto é, desde os tempos mais antigos, sinal de que o tempo não espera por ninguém, o tempo tem em si mesmo o trabalho de correr.

Pontalis nos apresenta em "Quando", a crônica que abre Antes, um tempo em que tudo parecia mais fácil, menos politicamente correto, um tempo em que ia " a Rolland Garros assistir às partidas de tênis e os jogadores se vestiam de branco, não exibiam os punhos como se fossem atingir o adversário, e os espectadores, atentos e silenciosos, não vociferavam do alto das arquibancadas" (p.9), ou mesmo um tempo em que " meu pai estava ao meu lado, quando todos os meus amigos, todos aqueles que eu amava, estavam vivos" (p.11). Esse texto talvez seja um dos mais nostálgicos de todos presentes nesse livro, na minha opinião o mais bonito, desses que a gente leva com a vida, como um belo presente que somente a gente pode abrir, não importa quantas vezes eu o leia, para mim parecerá sempre muito bonito. No entanto, não se trata apenas de nostalgia.

Muito embora o autor conceba a memória como uma "bolsa de mulher", onde cabe de tudo, desde itens indispensáveis à itens fúteis,os relatos não marcam essa posição de que o tempo de antes era melhor, não se trata disso. Trata-se de conter todas as idades, em esquecer o que marca o tempo, portanto, quebrem ampulhetas, destruam o calendário, porque quando se trata de uma existência, a linha cronológica não é suficiente.

Não seria por acaso essa recusa de Pontalis em retalhar o tempo. Vejamos o que é típico da experiência analítica: passado, presente e futuro se confudem e não obedecem a nenhuma lógica temporal.

Freud nos ensinou que somos todos neuróticos, psicóticos e perversos, todos, sem exceção, marcados pela ferida desse tempo que insiste em cristalizar nossas esperanças. Sofremos de excesso de passado e de ânsias de futuro. Sofremos, porque o tempo não passa no inconsciente, o tempo é essa ferida sempre aberta que nos revela o quanto podemos ser ilógicos. Tomemos a experiência do sonho como um protótipo do funcionamento do inconsciente.

Desde Traumdeutung  sabemos que o funcionamento do inconsciente não se submete às leis que criamos para contar o tempo. Dito de outro modo, o inconsciente não responde ao retalhamento do tempo, ao movimento da areia dentro da ampulheta. No sonho o passado volta como esse fantasma que nos espreita e nos atinge a cada vez que dormimos. Somos guardados pelo sonho, mas, ao mesmo tempo, somos assombrados pelo tempo que não parece varrer o que é mais importante.

"E  o agora é agora. E agora é hoje, ontem e amanhã. Nós, os humanos, sentimos e acreditamos que o tempo passa, alegamos que ele corre e, quanto mais envelhecemos, mais depressa ele se vai. Mas o Tempo (assim, com maiúscula) ignora que passa, é imóvel, não tem idade"(p.18)

Esse pequeno trecho de "Quando" nos mostra a premissa básica que temos diante dos olhos e com a qual devemos ler todo o restante dos textos reunidos no livro. Em outra crônica, "Travessia", o autor nos relembra a saga de Ulisses e de sua eterna Penélope, a espera, a fiar e desfiar um tecido para enganar o tempo, para matá-lo. Isso me lembra Machado de Assis, e o seu "Matamos o tempo, e o tempo nos enterra". 

A vida como travessia, parece não existir metáfora mais bela do que esta, estamos a atravessar mares, a vencer monstros, a resistir às sereias de belas vozes para, enfim, nos reencontrarmos, de volta à Ítaca particular de cada um.

No texto "Origens", Pontalis nos guia pela mão e tenta explicar o antes onde não há antes, onde havia uma certa origem. Voltando à história da teoria psicanalítica, o autor nos lembra que Freud era um entusiasta da arqueologia e faz da própria invenção uma empreitada arqueológica, "sem regressão, nenhum avanço é possível" (p.71). Também faz uma breve alusão à Etiologia como o ramo da ciência que se debruça sobre as causas. Seria causa o mesmo que origem? Talvez esse seja um dos questionamentos mais interessantes desse texto.

Segundo o autor, causa e origem diferem entre si, uma vez que a primeira pode estar afastada do evento que ocorre, por exemplo, causas de uma guerra, de uma revolução não precisam estar alinhadas no mesmo tempo, podem configurar épocas diferentes. Já a segunda, esta seria a causa das causas, ou a origem que escapa ao retalhamento do tempo. Para Pontalis, assim, a origem seria um antes que não tem antes. Mas, e antes? A angústia?

Não sabemos o que o tempo quer de nós, mas sabemos que é próprio da vida passar. E é isso que temos, tudo o mais está na origem e está na angústia. Não foi isso que aprendemos com os fenomenólogos? Com Russerl e Heidegger, quando estes concebem que o verdadeiro propósito da vida é a morte em si e isto seria a maior das angústias?

Sabendo disso
, portanto, parece que a angústia prenuncia uma vida que fatalmente irá passar, mas podemos nos recusar a retalhá-la, podemos rechaçar as idades e vivê-las todas em uma só, essa é a proposta de Pontalis. Apesar disso, fica a dúvida, sem o retalho do tempo, das idades, dos relógios, estaríamos imunes à angústia?

"Nossas vidas, uma agonia adiada" (p.72). Parece que o prognóstico não é bom, não há como escapar à angústia ou ao tempo que se retalha, mas há, há sim como buscá-lo nos começos. O que há, então, nos começos?

Nos começos há olhares, há mãos que se entrelaçam, há pôr-do-sol, há belas canções. Para Pontalis, nos começos, há o amor. O amor é isto que adia a agonia, é isto que ao invés de paralisar o tempo, brinca com ele, diverte o tempo.  O amor dos começos é o que nos permite sonhar e viver o tempo todo ele em várias idades. 

E nos começos é o amor de todas as idades em uma só. Eis aí o que Pontalis nos ensina, portanto, vivamos todo o tempo, sonhemos que podemos contê-lo.