sábado, julho 25, 2009

Por que Freud não gostava de cinema?



Freud não gostava de cinema. “Perseguições loucas desenroladas na tela” não era o tipo de divertimento mais apreciado por um jovem e austero senhor de 53 anos, acostumado a visitar museus e estudar antiguidades gregas, jantar em bons restaurantes e assistir a óperas de qualidade incontestável. Freud, decididamente, não gostava da sétima arte, mas deu-se uma chance.


Foi assim que seguiu para um cinema em Nova York, em 1909, acompanhado de seu fiel escudeiro, o psicanalista húngaro Sándor Ferenczi. Não gostou do que viu. Consta que Ferenczi sentiu muito mais entusiasmo pelas perseguições insensatas em tela grande do que o pai da Psicanálise.


De acordo com o que se sabe sobre a primeira experiência freudiana com a sétima arte, a noite fatídica fora atribulada e influenciada por diversos problemas tanto relacionados ao humor dos dois viajantes , como a problemas fisiológicos de Freud – dizem que, à época, certos desarranjos molestavam a flora intestinal freudiana de maneira tal que toda sorte de mal estar alterava seu humor. Nesta mesma viagem, segundo nos conta seu biógrafo, Ernest Jones, o pai da psicanálise blasfemara: “ A América é um erro”. Sim, vejam bem, Freud não foi a N.Y à toa, somente para fazer compras, visitar umas antiguidades, comprar uns souvenirs ou uma camisa da big Apple.

Já que é pra investigar, que investiguemos direito: Freud fora convidado para palestrar na Clark University e este convite, vale lembrar ou informar aos que não sabiam, tinha grande importância para o velho médico europeu. Portanto, Freud, pelo que podemos entender, poderia bem ter poupado a nação do tio Obama desse tipo de declaração...Um erro? Seria tudo isso, um exemplo de seu humor alterado pelos constantes problemas intestinais combinados com seu conhecido temor de meios de transporte? Seria toda essa revolta causada pela fatídica e primeira experiência no cinema?

Não sabemos. O que buscamos, entretanto, é uma investigação detalhada para que possamos entender, não a aversão pela América, mas a aversão à sétima arte, isto é o que nos importa agora. Com este intuito, portanto, buscaremos apoio nas próprias palavras freudianas , uma maneira de tentar vislumbrar quais seriam os motivos pelos quais Freud simplesmente não desejou voltar ao cinema e veremos, além do mais, que esta aversão tornou-se maior do que simplesmente um pequeno preterimento no tocante a temática “ diversões preferidas”.
Se retrocedermos no tempo, chegaremos ao ano de 1885, quando Freud, ainda entusiasta da neurologia, resolve concorrer a uma bolsa de estudos para passar alguns meses estudando como intérne no Hospital Salpetrière, em Paris, uma espécie de estagiário. Inicialmente, como nos conta a história dos primórdios da Psicanálise, Freud buscava investigar o nervo óptico. No entanto, o que ocorreu? Apaixonou-se pelas histéricas de Charcot; tudo para ele era instigante, menos o nervo óptico, muito mais os gritos, as paralisias, os achaques comandados por Charcot e representado por mulheres tão comuns, mas tão brilhantes.
As primeiras impressões de Freud sobre Paris foram as melhores: tudo parecia uma miscelânea de sensações, interesses, curiosidades (tão diferente das impressões americanas...). Em carta à noiva, Martha Bernays, confessa:
Acho que estou mudando muito. Vou dizer-lhe detalhadamente o que me está afetando [...]. Por vezes, saio das aulas como se estivesse saindo da Notre Dame, com uma nova idéia de perfeição. Mas ela me exaure; quando me afasto, não sinto mais nenhuma vontade de trabalhar em minhas próprias bobagens; há três dias inteiros não faço qualquer trabalho, e não tenho nenhum sentimento de culpa. Meu cérebro está saciado, como se eu estivesse passado uma noite no teatro.” ( Freud, 24 de novembro de 1885)

Vejamos, então , o brilhante e jovem médico , interessado que era na patologia do nervo óptico e que recebia, mensalmente por seis meses uma quantia hoje estimada em 250 dólares, confessava à noiva que há uns dias não produzia nada, não colocava a mão na massa, não escrevia, não sentava a traseira numa cadeira para começar a escrever o famoso relatório que teria que apresentar à sua universidade em Viena. Não, ele não queria saber de nada, somente das aulas de Charcot e, qual não era a comparação que fazia das mulheres histéricas às atrizes?
Por acaso estamos nos deparando aqui com uma das primeiras alusões freudianas às artes? Seria então, correto – não digo afirmar, mas elocubrar, que a psicanálise (que nasce justamente da mudança de interesse de Freud da patologia do nervo óptico para a psicopatologia) já nasce relacionada à arte, neste caso à arte teatral? Quem sabe? Acredito que não seria tão equivocado fazer esta reflexão, através desta também chegaremos ao cinema, mais tarde.
Ultrapassando um pouco este tempo de entusiasmo com Paris e com as aulas que mais lembravam teatro ministradas por Charcot, encontramos um Freud maduro, consciente de sua criação e em constante trabalho para ampliar seu arcabouço teórico, suas próprias descobertas.
Eis que estamos agora vinte anos além desta primeira viagem científica à Paris.
Em um texto não tão citado pelos que se devotam à Psicanálise, “Personagens psicopáticos no palco” (artigo não datado, mas , segundo consta na Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, deve datar de 1905, ou início de 1906), Freud volta ao teatro ( sabemos que em outros momentos faz novas alusões à esta arte, mas agora, atentem a esta), nesta obra, ele declara que o papel do espectador se assemelha ao de uma criança ao brincar; ela brinca de ser herói , goza por aventurar-se e ainda assim não comprometer sua integridade física como o moço lá do palco.
Então, de acordo com Freud, o que é o espectador? O espectador é aquele sujeito que se reconhece e se identifica com o que se desenrola diante dos seus olhos; sofre com cada inflexão, com cada impostura, com cada ato de bravura e com os conseqüentes conflitos e lutas travadas pelo herói e os deuses a quem deseja destronar, com os humanos representantes de instituições castradoras. Sim, segundo a opinião freudiana, nós somos aqueles que sofrem sem sofrer, que gozam por identificação e que , por isso mesmo, também resistem ao que se vê.
Neste estudo, Freud não fala apenas do papel do espectador. Não, ele não se limita a dizer que o espectador é aquele que desejar sentir, agir e tomar o palco. Ele vai além e fala da habilidade do dramaturgo ou do autor da peça em nos conduzir pelos entremeamentos das nossas próprias confusões, assim, como se não percebêssemos que ali quem encena somos nós mesmos. Ali, somos captados, mesmo que nossa atenção esteja, tal como diz o autor, “distraída”, vemos alguns conflitos surgirem e aterrorizarem o herói, o ator com o qual nos identificamos. Nesse sentido,
Freud vai mais além, e fala dos conflitos também internos, entre consciente e inconsciente que parecem mover todo drama de cunho psicopatológico.
O herói está perdido e confuso, suas moções inconscientes a um passo do transbordamento e nós , ainda assim, assistimos a tudo passivamente. Quão confortável é nossa cadeira no teatro? Camarote? Não importa aonde estejamos, fato é que estaremos sempre nos identificando com o herói confuso, com o Hamlet aterrorizado pelo recalcado que retorna, bate à porta e parece nos dizer: “Abre, abre ou vou invadir!”.
Com isto tudo, parece que este texto de Freud revela que o trabalho do bom autor deve ser justamente esse, fazer-nos deslizar pelos labirintos do nosso próprio psiquismo sem saber que o fazemos, ali, da cadeira de espectador, talvez até comendo pipoca. Freud nos faz perceber que, ao tempo que nos identificamos quando vemos o personagem, o herói adoecer, gozamos e resistimos: “ora, não sou assim!”. Diz ainda, que somente os não-neuróticos não passam por estes “ciclos” de pré-prazer e resistência, sucumbindo a uma espécie de total repugnância ao assistir a um tal espetáculo.
Agora depois dessa breve investigação, parece que temos os argumentos para começar a tatear a questão principal aqui levantada: Por que a aversão de Freud ao cinema? Se quisermos concluir rapidamente, poderemos dizer que, para uma pessoa que utilizou o teatro, e na verdade, as artes em geral, que se dizia amante da pintura, das artes plásticas, da literatura (quem duvida leia Moisés de Michelângelo) poderia apresentar uma resistência tamanha à então inovadora sétima arte.
Parece que aqui tocamos no ponto essencial: Resistência. Lembram? Freud dizia que não apenas regozijamo-nos com as desventuras do herói, também sofremos, nos identificamos e resistimos ao ver nosso próprio drama ali encenado, nossas próprias dúvidas: Isso não sou eu.
Aqui me pego ousando: Queria muito descobrir que filme foi esse que causou tamanha resistência no espectador Freud, não no médico, vá, esqueçamos que era ele quem foi, o pai da Psicanálise, o autor de uma teoria que nos impressiona até os dias de hoje, o homem do século, o ganhador do prêmio Goethe de Literatura...esqueçamos. Pensemos em Freud no cinema, Freud na cadeira alcochoada de um cinema em N.Y. ao lado de Ferenczi, Freud colocando seus óculos, Freud na fila da Pipoca.
Não gostou. E eu imagino aqui, com meus botões, quais seriam as cenas, quem era o herói da tela. Pela época, sabemos que era um filme mudo, mas não sabemos nada mais sobre o filme a não ser que havia “perseguições loucas”. Seria um faroeste tipicamente americano? Um drama à La Shakespeare? Não sabemos, e é uma pena.
Vamos mais longe, para quem não gosta de conjecturar tanto, apenas podemos dizer que a aversão foi tamanha que Freud chegou ao ponto de se negar a ajudar na realização do que ficou chamado de “primeiro filme de psicanálise”, em 1926 “Segredos de uma alma”.
Sim, aconteceu. Aconteceu quando Karl Abraham, fiel e submisso seguidor, informa a Freud a intenção de um estúdio de cinema de gravar um filme sobre a psicanálise. Uma boa forma de publicidade? Sem dúvida. Werner Krauss, ator alemão que simbolizava o aclamado cinema expressionista à época protagonizaria uma personagem em conflito psicopatológico, dividido entre a consciência e impulsos aterradores vindos do inconsciente. Lembram algo? Seria o retorno do herói aterrorizado entre o que aparece à superfície e os “monstros subaquáticos” que insistem em entrar?
Sim. Sem dúvida o filme traria a Psicanálise e o tratamento psicanalítico como solucionador dos conflitos do ator principal; existiria um psicanalista capaz de reabilitá-lo e fazer com que o sofrimento desaparecesse.
Resumo da ópera: O filme foi feito, mesmo com a resistência declarada de Freud, mesmo que ele tenha dito que não queria, de maneira alguma, que seu nome estivesse vinculado à tal realização.
Motivo consciente para tamanha revolta? A impossibilidade de representar, pelo discurso cinematográfico, os conceitos abstratos da nova ciência.
Parece que Freud queria dizer: Mas o que pensam esses cineastas? Pensam que vão poder colocar na tela a minha invenção? Repúdio, somente isto que Freud sentiu. Aqui cabe: será que não seria já aí uma resistência, uma resistência à novidade? Poderíamos dizer isto? Será que é correto? Poderíamos dizer que Freud, ao dizer que a Psicanálise era impossível de ser encenada, representada por imagens, contradiz a si mesmo, posto que uma vez dissera que o hábil seria o autor capaz de envolver o espectador, de fazê-lo agir, pensar, e colocar-se no lugar do herói, do ator, talvez entendendo a si mesmo através do outro que encena?
Será que cabe dizer tudo isso? Vejamos, se Freud repudiava a iniciativa, poderíamos pensar que ele não acreditava na capacidade de G.W Pabst ( diretor do filme sobre psicanálise) em realizar isso de levar o espectador pela mão rumo as loucuras do seu próprio psiquismo. Por outro lado, poderíamos pensar também que Freud apenas visava proteger a sua nova ciência, já tão duramente atacada, do popularismo cego e deturpador.
A conclusão a que chegamos? Nenhuma. Eu na verdade começo a achar que tudo foi culpa do filme que Freud viu em 1909, afinal, a primeira impressão é a que fica e podemos dizer mesmo que o autor /diretor deste filme, um faroeste - eu quase posso apostar que era um faroeste - conseguiu com maestria mergulhar Freud nos seus próprios conflitos, ali, da cadeira de espectador.
Resultado disto? “Nunca mais quero ir ao cinema! Não gosto de cinema. Não quero que meu nome jamais seja vinculado a qualquer tentativa de trazer à tela a minha invenção!”.
São apenas possibilidades... pode ter sido também uma grande dor de barriga...
* foto: Cena do filme Segredos de uma alma