quarta-feira, abril 04, 2012

É o fim? De novo?


Lançado em 2005, pela editora Arènes, na França, o Livro negro da Psicanálise tomou impulso e em 2011 foi lançado em terras tupiniquins pela editora Civilização Brasileira. O que trago aqui é fruto de uma lembrança, trazida a mim por meio de um link em uma rede social: em algum lugar do passado, houve uma pessoa que escreveu uma resenha sobre o tal livro, isto chegou a mim e me fez pensar muito sobre o assunto no qual me enfiei desde 1999: a Psicanálise - a metapsicologia freudiana, a invenção do inconsciente, ou seja lá o nome que queiram dar ao que Freud inaugurou.
Conheci o Livro de "ouvir falar", portanto não esperem de mim uma outra resenha sobre o livro, pois para se fazer uma resenha de um livro é preciso preencher um pré-requisito básico: lê-lo. Eu não o li. No máximo alguém pode considerar isso aqui uma "resenha da resenha".
Soube de sua existência através de uma publicação de Elisabeth Roudinesco (psicanalista e historiadora da Psicanálise), em 2010, quando comprei "Em defesa da Psicanálise". Percebi em Roudinesco um ímpeto jamais visto na defesa do seu objeto de estudo, não era pra menos - pensei - a mulher é historiadora da Psicanálise, reúne em seu nome os textos mais influentes da área dos últimos anos, então é capaz que ela esteja falando também do lugar da indignação - sejamos francos, é duro ver algo em que acreditamos ser enxovalhado em praça pública: dei um desconto à Roudinesco, pelo seu envolvimento passional num debate não menos acalourado que surgiu na França, no ano de lançamento d'O livro negro.
Hoje o tema volta à tona: Através do link que me foi enviado, li uma resenha sobre a publicação que acaba com a reputação de Freud e de quem mais defender a ideia de inconsciente escrita por alguém , talvez, menos apaixonado, ao menos no referido texto: Ricardo Cabral consegue - mais ou menos - encontrar um meio de falar d'O livro sem se deixar cegar pela Psicanálise e seus fundamentos que são duramente criticados na publicação de origem francesa e tampouco se deixar convencer do que a TCC é a bola da vez. Interessante texto que acreditava num debate igualmente acalourado que surgiria no Brasil, com o evento da publicação do livro pela Civilização Brasileira. Outra resenha, publicada em março do ano passado na Folha de São Paulo, pelo jornalista Fabio Andrighetto, nos mostra o mesmo: a esperança de um debate frutífero entre profissionais de várias áreas. O único problema de Andrighetto é a ignorância: em sua resenha percebemos para além do interesse no debate, percebemos uma crença no fato de que a Psicanálise está morrendo, está em "franca decadência", segundo suas palavras. Veremos.
O livro que causou estas resenhas foi lançado no Brasil, como disse anteriormente, em 2011. A resenha de Cabral é de 2011, a de Birman e a de Andrighetto também. A pergunta que não quer calar é : Alguém viu debate?Alguém viu psicanalistas brasileiros se revoltando contra a publicação organizada por Catherine Meyer?Alguém viu entusiastas das neurociências subindo em palanques, gritando, enxovalhando com a cara de Freud, pisando em Lacan, Klein, Winnicott e companhia, citando passagens do referido livro?
Ora, se alguém viu, por favor me diga, me mandem links , pois não vi nada que seja considerável a não ser algumas meia-dúzias de resenhas - mais ou menos - imparciais, defendendo uma das nações em conflito: TCC é a esperança dos dias atuais? A Psicanálise continua a salvação por sua abordagem do sujeito psíquico? Não vi opositores, não vi batalha, não vi guerra, não vi sangue.
Não vi nada, e como não sou francesa e nem sequer pisei na terra de DeGaule, insisto que o debate foi xôxo, borocoxô , quase nada perto da guerra de farpas que aconteceu em Paris. Me perdoem os mais informados do que eu, mas não considero essas resenhas dignas do termo "debate acalourado". Não credito esta falta de investimento libidinal no tema como alguma característica especificamente brasileira - coisa da qual francês sentiria falta- ou nada que o valha. Credito ao fato de que, talvez - e digo talvez porque não tenho certeza - talvez sejamos menos passionais que os franceses . E eu nunca pensei em dizer isso.
Talvez tivéssemos percebido o óbvio, talvez tivéssemos percebido o que Roudinesco, J.A Miller e tantos outros não viram: não há como destituir a Psicanálise do lugar que ela ocupa utilizando os argumentos de "O livro negro da Psicanálise". O fato é facilmente compreendido a partir do momento que consideramos que o tal livro não mostra muita coisa além do que Freud mesmo já tinha revelado: de que não acertou todas as vezes, que sua teoria estava em franco processo -eterno- de construção e que sua teoria era uma mitologia. Nada novo no front.
Em "Estudos sobre Histeria", Freud mesmo diz que deixou de entender algumas das patologias que cercavam de mistério os fenômenos histéricos. Freud, sim, ele mesmo, entendeu sua impossibilidade de compreensão e creditou isso a ninguém mais do que ele mesmo. Ele foi incapaz, ele por certas vezes também acreditou que poderia ter feito melhor, se soubesse de outras coisas que não sabia no momento. Daí referir-se a Freud como o rei dos embustes, francamente não é postura científica que se adote. Toda e qualquer ciência deve se valer de argumentos plausíveis, passíveis de observação e verificação.
Sobre isso, encontrei uma outra resenha não menos interessante sobre a tal publicação , da autoria de Joel Birman, esta que talvez tenha sido mais aguerrida, algo próximo ao tão desejado debate acalourado, segundo Birman, há em, "O livro Negro", toda uma agenda política que se descobre facilmente numa simples tarefa de metodologia: a ordem dos capítulos, nos adverte o autor, é totalmente manipulada para que o grand finalle coincida com a ascensão da mais nova esperança em termos de tratamento psicoterápico: a TCC.
Talvez essa resenha de Birman tenha feito parte do que muitos queriam ver no Brasil: o famoso debate. Eu insisto, não vi nada, nada de novo. Ao que parece é tradição, de tempos em tempos, aparecer um ou outro livro, um ou outro teórico disposto a acabar com as bases de uma teoria, de um conhecimento já consolidado. Mas, e qual o mal nisso? Nenhum. A ciência nasceu assim e - ainda bem - continua evoluindo graças à opiniões que contrastam, isso também aprendemos em Metodologia da Ciência - isto é quebra de paradigma, isto é importante, é vital.
Desta forma, é tradição, de tempos em tempos, vermos estampados em revistas semanais a pergunta recorrente: "Há espaço para Psicanálise?" "Freud é necessário, ainda?". Outras publicações, dependendo do grau de sensacionalismo com o qual esteja comprometida, substituirá a interrogação e estampará em suas capas simples assertivas. "Freud está morto.", "Fim da Psicanálise". Estratégias de marketing à parte. Pensemos sobre essas questões.
Nunca vi um psicanalista organizar coletânea ou livro que seja para falar mal de outras psicoterapias. Talvez isso soe infantil. Talvez seja, mesmo, infantil. Mas o ponto que quero
ressaltar é o seguinte: ataques à invenção freudiana acontecem desde que Freud ainda estava vivo para se defender. A teoria evoluiu, faz uso de interfaces, promove debates sobre questões de interesse social, dialoga com outras áreas do saber, mas não abandona o que mantém em sua essência, desde Freud: o sujeito.
Segundo as poucas resenhas de psicanalistas que vi por aqui sobre o livro, há uma necessária objetificação do sujeito, alguns acreditam mesmo no mundo sem o sujeito e um ou outro ataque às neurociências. Freud acreditava nas neurociências, mas sempre deixou espaço para que pudéssemos pensar no primordial: nosso objeto de trabalho é a escuta, é a disponibilidade do próprio inconsciente em contato com outro inconsciente (Antonino Ferro, psicanalista italiano nos lembra muito bem disso) e, portanto, o novo da Psicanálise - é, portanto, o velho: o sujeito e seu inconsciente - esta frase não é minha, é de outro psicanalista cujo nome não me recordo agora.
Para defender Freud poderia continuar este texto lançando mão do fato de que o mundo contemporâneo esquece do sujeito, que hoje somos seres medicados e alienados, que vivemos a cultura do DSM-IV, da banalização de substâncias químicas, do reinado dos hormônios e afins, mas não, não farei isso, porque acredito que seria muita superficialidade dizer que todas as teorias que são contrárias à Psicanálise estão erradas e que todas estão aí esquecendo em toda esquina o pobre do sujeito, mais sujeito do que nunca.
Não é por aí, ao menos não quero "ir por aí". O que quero dizer é simples. Se O livro negro da Psicanálise equipara à Psicanálise à regimes políticos sangrentos ao devotar um capítulo sobre "as vítimas da Psicanálise", seus defensores deveriam também perceber que esse argumento de destituir Freud do lugar em que ele se encontra atualmente é, no mínimo, falta de assunto. Todo mundo já disse tudo sobre isso: as pessoas se posicionam, contra ou a favor, escrever uns textos, umas resenhas, o que gera um ou outra polêmica, que gera mais repercussão e pronto, acabou o assunto porque surge outro mais interessante.
Quero dizer que O livro negro que defende a ideia de que a Psicanálise mais mal do que bem fez à sociedade moderna, acusando-a de pseudociência, esquece-se do fato de que, qualquer um que falasse de mente e não fizesse parte das ciências naturais era visto com desconfiança. Precisamos lembrar que Kant, o próprio, acreditava que a Psicologia - como um todo - nunca seria ciência, posto que não lida com argumentos matemáticos. Ou seja, era a Filosofia nos empurrando de um lado, e a Psiquiatria e as ciências naturais nos enxotando de outro: isso nos iguala, psicólogos das mais variadas tendências e correntes teóricas.
Criticar Freud não é novidade, falar que Psicanálise não é ciência e alçar a TCC como única forma possível de tratamento não é nem um pouco lúcido, haja visto que Kant nos coloca todos no mesmo saco, eu, o gestaltista, o psicodramatista, o cognitivista: lidamos com o invisível, e, para Kant, isto não merece ser considerado científico.
Essas reflexões não vão me fazer comprar o tal livro, já sei que se trata de um ataque desconjuntado à Psicanálise, sobre o fato de não ser ciência, muitos outros autores, como Fèdida e Figueiredo falaram melhor que eu: não se necessita de qualquer que seja o "tribunal epistemológico" para comprovar a validade da Psicanálise.
Figueiredo diz isso, e eu nunca esqueci a imagem mental que formei do tal "Tribunal": aqueles juízes envelhecidos, de perucas, pregando a velha e boa metodologia, do alto de suas tribunas, perguntando a um Freud, réu, diminuto, o que seria a base metodológica da Psicanálise, como confiar em seus achados que, em muito, não passavam de meras observações clínicas?
Nunca esqueci o tribunal. Mas d'O livro negro da Psicanálise eu esqueci, não porque recalquei, mas porque me foi indiferente. Li o livro da Roudinesco e entendi - até mesmo valorizei - sua enésima tentativa de defender o indefensável, li estas resenhas as quais me referi e pronto.
Não me afeta, não me diz nada, porque nada novo tiro de tudo isto. Para não dizer que não foi útil voltar ao tal livro, agora um sentimento novo me toma: de súbito um calafrio de medo, medo não do livro, mas do que podem fazer com o livro os menos perspicazes que passarão a postar frases do livro, trechos sensacionalistas e começarem um levante "Fora Freud!Fora Lacan e suas lacanagens", medo da repercussão disso nos círculos mais inocentes, porque os escaldados já entenderam que não se pode defender a Psicanálise pelo simples motivo de que ela não precisa de advogado.