quarta-feira, novembro 11, 2015

Vergänglichkeit ou o relato verdadeiro de um péssimo passeio numa paisagem de verão




"Tudo o mais que, de outro modo, ele teria amado e admirado, lhe parecia
despojado de valor pela transitoriedade que era o destino de tudo"



O passeio de Freud e seus amigos serviu para fazer a humanidade entender sobre luto e sobre perda. O pretexto para a argumentação freudiana foi um episódio ocorrido num dia que se imagina ensolarado e tranquilo ao qual facilmente podemos atrelar imaginariamente as melhores paisagens e os mais ricos vestígios da obra divina, transposta para o que seria a mais maravilhosa das telas, se não fossem as tintas da própria realidade, se não fosse real o azul do céu e, portanto, se não estivéssemos a caminhar sobre a relva verde, quase pedindo-lhe licença a cada passo em busca de novas descobertas.

Não, a essa altura não estamos mais imaginando. Peço-lhes, inclusive, que não imaginem mais, imaginar é quase pecado, apenas ouçam o meu relato, com a mesma atenção que ouviram o texto de Freud que continua ecoando em vossos ouvidos, sendo celebrado e reverenciado por tantos outros ouvidos.

 Sei que a autoria célebre torna o texto imortal, mas há que se fazer justiça a quem o originou, quero dizer, há que se intuir a importância das demais personagens só brevemente mencionadas no mais famoso relato que se tem notícia sobre a transitoriedade das coisas em tempos de guerra. 

E digo mais: personagens só brevemente mencionadas e com o único propósito de  validar os argumentos e desdobramentos teóricos daquele que veio a se tornar o cientista do século, aquele que roubou o fogo de Zeus e lho deu aos homens, a este, todas as reverências; aos outros, o esquecimento mais cruel, à descoberta prometeica, todos os louros, à realidade, as sombras do inferno. 

Pois eis que chego a meu intento. Até agora não entendo, verdadeiramente, como a curiosidade humana não buscou saber mais sobre mim e sobre "o jovem poeta já famoso" (FREUD, 1916, p. 186). 

Somos como sombras dispostas exatamente onde herr professor nos colocou, tal como marionetes, a tornar seu relato mais belo, mais profundo, mais verossímil. E quanto a nós, o que nós temos a dizer sobre esse dia? Alguém já indagou sobre quem somos?

Aguço a curiosidade do leitor atento no intuito de saber se, de fato, existe qualquer traço de incômodo, qualquer fagulha de interesse em saber sobre nós, os outros, os esquecidos, as marionetes de Freud, aqueles seres quase anônimos que foram um dia acompanhar o grande homem em um passeio despretensioso em uma  "rica paisagem  num dia de verão"(FREUD, 1916, p. 186). 

Sobre nós pouco foi dito, a não ser que éramos " um jovem poeta e "um amigo taciturno". Creio não ser segredo a identidade do então jovem poeta "já famoso" , o homem sensível inspirou o texto do homem da ciência - e todos nós sabemos o quanto  a invenção freudiana deve às almas sensíveis, aos caracteres mais nobres que,de tão nobres, por vezes não suportam a crueza da vida e suas atribulações.

Sim, todo leitor atual sabe o quanto herr professor foi beber em homens como Goethe, como Dostoievsky, como Jensen, nobres e distintos cavalheiros que possuíam em comum a característica de se admirarem com as coisas terrenas e delas intuir as coisas etéreas.

É inquestionável, é mesmo impensável a descoberta freudiana sem os poetas, sem os músicos, sem, enfim, as almas mais elevadas que a existência já conheceu. E Rilke, esse poderia cobrar seus préstimos a hora que assim desejasse, era ele o jovem e já famoso poeta, isso não é segredo.

Mas, e quanto ao outro personagem, o outro a errar pelas pradarias? E o que foi feito daquela personagem obscura somente reconhecida no texto famoso como "amigo taciturno"?

Eis quem vos fala. Sou eu o amigo "taciturno", não tendo habilidade para a poesia, sempre gostei das coisas mundanas. Confesso que nunca fui pessoa das letras, nunca me comovi com os dramas santos, e nunca acreditei verdadeiramente em uma existência superior, também o fazer científico nunca me atraiu e a isso devo o fato de ter tido uma infância em que não me foi dado o direito à curiosidade comum às crianças, especialmente às crianças do sexo masculino - se me mostrei alguma vez curioso em relação a algum relógio-cuco, ou tive a mais pura intenção de destruir um brinquedo para saber sobre seu mecanismo disso logo foi demovido pela minha mãe e por suas engenhosas técnicas de me infligir os castigos mais cruéis, foi por amor à vida que desisti da curiosidade e essas experiências infantis me fizeram alheio a qualquer interesse que se tornasse científico - minha alma preferia manter o corpo livre de beliscões e pontapés.

Se nunca fui aquilo que podem chamar de caráter alegre, fanfarrão, também não foi por causa de nenhuma disposição interna que lembre qualquer sensibilidade, qualquer volubilidade romântica, tão comum ao zeitgest ao qual pertenci eu e meus amigos, hoje todos tão mortos como eu. Nunca fui alegre, mas também não acho que isso se devesse a qualquer coisa byroniana correndo em minhas veias. Também não era triste, era apenas indiferente a qualquer esforço humano para rir ou chorar.

Sou sim, "o amigo taciturno" a caminhar pelas pradarias e no dia fatídico de verão eu tinha  ao meu lado direito o homem das ciências, o distinto professor fadado ao sucesso, e junto a meu lado esquerdo vinha o jovem poeta famoso e promissor. 

O que seria eu, o que poderia ser eu ao lado de tanto brilhantismo? Apenas isso, o amigo taciturno que nem direito a maiores menções teve no texto que poder-me-ia ter tornado célebre, tanto ou mais que meus amigos. Mas isso não houve, e morri no anonimato, da mesma forma que nasci, sendo aquele passeio a única situação da vida em que estive próximo a qualquer sombra de gênio, no caso, dois.

Digo-lhes que não era de todo um indigno de reconhecimento, escrevia algumas coisas, não muitas, mas nada que soasse poético ou sensível, nada que apontasse o caminho do céu ou que indicasse os meandros dos acherontes, por isso morri como vivi, no mais completo e compreensível anonimato. me faltou interesse para ir além e para me tornar qualquer coisa de vulto.

O que escrevo agora, em tom de carta além túmulo a la Brás Cubas, é o meu direito inalienável de dar a versão dos fatos. Ei-los, sem as tintas coloridas do poeta, sem o rigor empírico do cientista. Apresento-lhes o meu relato, o meu Verganglichkeit!

Ouça quem quiser, não será depois de morto que irão me laurear com o Goethe, faço isso pelo simples direito de fazê-lo, visto que a morte não me impôs maior silêncio do que aquele que gozei por toda a minha existência. Serei breve, qualquer prolixidade me irrita.

Pois bem, disse-nos Freud que o jovem e já famoso poeta se compadecia com as flores que logo morreriam, em seus arroubos sensíveis pensava mesmo que de nada adiantaria a mais linda rosa florescer como as tantas que testemunhamos naquele dia se o seu destino seria a inevitável morte. 

Penso que Freud construiu sua argumentação lógica a partir daí, então toda a teorização acerca do luto e do que perdemos, tudo sobre a tendência da nossa psychê a se afastar da dor, tudo ali está, naquelas linhas em que o magnânimo cientista nos utilizou, a mim e ao meu amigo sofredor, como meras testemunhas complementares para aquele passeio. Não me diverti nesse papel, confesso.

A partir das lamúrias do poeta se construiu uma teoria sobre luto e sobre perda  - e quão conveniente! 

Mas, o que pensou o "amigo taciturno"? O amigo  não poderia pensar outra coisa, eu era calado, alguns poderiam dizer que carrancudo, sofria de uma espécie de tédio em relação a tudo que não fosse relacionado aos pequenos prazeres da vida: comer, beber e dormir. Eu não era taciturno por vocação.
Era  ocupado entre esses três deveres que vivia a vida, e confesso que somente depois de muito esforço da parte do eminente professor, que me dispus a calçar as botas e a ir ver borboletas e "pássaros gorjeando livremente". Assim me foi feito o convite, e foi num tom convocatório que Freud o fez: "Vamos aproveitar esse belo dia de verão!" - disse-me, com exclamação e tudo o mais que soasse convidativo.

Ao ouvir aquela frase ser proferida virei para o lado e recostei a cabeça no travesseiro, pensei em dispensar o meu amigo cientista, e entre um bocejo e outro, fui convencido de que o passeio seria curto e apenas um pretexto para conversarmos sobre questões importantes, como as que se provaram de fato urgentes - estávamos vivendo em um período estranho em que tudo soava bélico e ameaçador. 

Nem isso me animava, mas um pouco de socialização não me era de um todo  desagradável. 
Foi apenas no caminho para os bosques que Freud me disse que Rilke iria nos acompanhar - e eu, sabendo antecipadamente desse fato não iria me dignar a calçar as botas, sequer levantaria da cama, pois sabia que o que me aguardaria seria uma série de lamentações e soluços infindáveis, o que, de fato, ocorreu.

Se Freud a tudo analisava e rascunhava em seu caderno a que poucos podiam ter acesso - e eu não era um deles, Rilke se deixava comover pela mínima mariposa que cruzasse com seu olhar, o vento parecia exercer sobre aquela atormentada alma uma espécie de fascínio e tudo parecia caber em suas rimas e estrofes. Quanto a mim...eu estava cansado, mais "taciturno do que nunca", Freud diria, mas, na verdade, mais desejoso do que nunca que aquele dia terminasse. 

Da pena de Freud podemos ler:

 "O poeta admirava a beleza do cenário que nos rodeava, porém não se alegrava
com ela. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava condenada
à extinção, pois desapareceria no inverno, e assim também toda a beleza humana e tudo de belo e nobre que os homens criaram ou poderiam criar" (FREUD, 1916, p.186).

Chamo atenção ao jovem leitor para o fato de que Freud nunca foi merecedor de um prêmio científico por sua obra, embora tenha sido merecedor de uma prêmio por sua...Literatura! Daí não precisa ser um gênio para deduzir que a seara a qual pertencia herr professor era, na verdade, o domínio dos imortais, dos homens das letras, e eu não sei porque insistia em fazer ciência.

 Por algum motivo alheio a seus maiores desejos, Freud não convenceu por sua ciência, não convenceu o mundo acadêmico, mas nem por isso foi menos célebre.

Sobre o sensível poeta, todos já sabem, o que me faz pensar que eu sou a verdadeira sombra nesse passeio, dos três, o menos célebre, o menos capaz - talvez - mas uma coisa talvez não possam me tirar agora: a sinceridade e a objetividade com a qual narro os fatos - isso falta à pena dos meus amigos.

Já estando eu morto há muito tempo, não tenho interesse em reconhecimento póstumo, nem nisso acredito. Como alguém que nada tem a perder, tendo já perdido o fundamental, tenho o único compromisso com a realidade  e com a verdade dos fatos, sou um embaixador da Verdade. E  nela vou me fiar para que saibam um pouco sobre aquele dia, aquele passeio, meus amigos e, sobre mim.

A bem da verdade, o poeta não admirava a beleza no cenário de maneira inerte, ao contrário do que pensava Freud, ele se alegrava sim, apesar da transitoriedade das flores, das plantas, dos pássaros a nos visitar de quando em quando, o que Rilke mais fazia era se admirar e exaltar a natureza, numa alegria quase incontida, ouso dizer que uma alegria bizarra que logo se transformava em lamúria e em choro - sobre essas terríveis oscilações de humor do poeta não ficamos sabendo por meio do relato oficial.

Se àquela época já  houvesse tal coisa como uma Neurociência, diria que Rilke sofria de transtorno bipolar: seus arroubos de felicidade histérica me irritavam em elevado grau e eu já me sentia compelido a me tornar cada vez mais "taciturno", e , repito, não por uma disposição romântica qualquer, mas pela simples intenção de me retirar daquele lugar e não ouvir mais um ser tão volúvel como aquele a quem a mesma cotovia poderia fazer rolar na grama numa espécie de alegria pueril para, logo em seguida, provocar os maiores soluços que somente alguém que sofre em demasia poderia experimentar - era um louco, um delirante e estar em sua companhia seria a maior das torturas.

Demovê-lo da ideia de perseguir passarinhos e de cumprimentar o sol era impossível, tão impossível como conter suas lágrimas, o seu convulsionar diante do despetalar de uma margarida me provocou a mais profunda ira e isso foi a gota d'água. Vê-lo soluçar e a repetir blasfêmias diante da flor despetalada me fez saber que àquele lugar eu não pertencia, e foi assim que o passeio acabou: fui embora para não mais me atormentar diante de um patético ser infantil e de um inerte e frio cientista.

Agora sabemos que fidelidade aos fatos nunca fora o forte de Freud. O homem nasceu para a Literatura, mesmo que tenha insistido na Ciência.

Poderia lhes dar toda uma nova versão, mais objetiva e fiel aos fatos do que as do meu amigo cientista, mas por falta de interesse não o faço, quero me recolher logo ao sono sepulcral e, de fato, nada lucrarei com isso. Ou irão publicar a minha versão dos fatos ocorridos naquela paisagem de verão? Irão, por acaso, apagar dos registros o tal Vergänglichkeit freudiano para dar razão ao meu relato? Inocente não sou, e não me interesso em fazer de Freud meu rival, sem dúvida ele merece repousar em seu leito célebre, deixem-me aqui no esquecimento que sofro menos ataques - ninguém zomba de um defundo desconhecido.

Com isso, limito-me a dizer o meu lado, apenas. Estava eu taciturno pensando em tudo que deixara na cidade e que não poderia rever naquele dia, naquela ocasião?

O espetáculo patético de Rilke me irritava tanto ou mais do que o calor infernal que fazia naquele dia. Os rumores de guerra me tiravam o sono, apesar de  sono ser algo essencial em minha vida, pois nunca fugi ao encontro de Morfeu. 

Toda aquela ideia de passear, sob aquelas condições climáticas me tornavam cada vez mais impaciente e o único motivo disso era uma mistura de tédio, irritação (calor insuportável somado à histeria alheia) medo diante da ameaça da guerra que viria a destruir tudo que a civilização havia construído, enfim, aquele não seria um bom dia para passear. No entanto, esse turbilhão de sentimentos guardava para mim, pois nunca fui homem de transparecer os sentimentos através da face, isso deixo para Rilke.

Não estava taciturno por conta da flor que nascia para morrer, não estava encastelado em mim por conta de qualquer vocação para o Sturm und Drang,  tédio era meu nome, e eu não desejaria outra coisa do que fugir daquele lugar bucólico que me dava ânsia de vômito.

Da transitoriedade nada penso porque não me foi dado o direito de pensar, ao menos no texto de Freud. Se Rilke não se encantava totalmente com a flor que brotava e com o espetáculo do sol se pondo, eu de mim sei apenas que o que muitos julgavam como ensimesmamento eu julgava por preguiça, talvez a minha mais verdadeira vocação.

Cansado de não fazer nada eu estava, indisposto me tornei a cada vez que um raio de sol penetrava os poros da minha pele tão fustigada pelos pequenos prazeres aos quais me dedicava com afinco. A companhia de Freud já não me era agradável naquele dia, imaginem a de um bebê chorão a questionar sobre a beleza, sobre a efemeridade das coisas que nasceram para morrer. 

Se ainda tenho direito a algo dizer, digo que não tenho problemas com o luto e com a substituição de objetos libidinais - para usar o jargão do célebre professor. Acho bom que tudo que vive um dia morra, pois assim os mesmos pássaros não nos irritariam todos os dias, as mesmas flores nasceriam em nossos quintais, sem surpresa, sem novidade. Tudo que é vivo morre, e da morte só restará o pó. Se a guerra nos destruiu foi com o propósito de nos fazer deter, e se a ela não podemos resistir, melhor mesmo será sucumbir. Não, não tenho grandes questões com a morte, e a beleza sempre me soou enfadonha,a feiura, com seus espetáculos e bizarrices é genial por quase tocar  o impossível e é por isso que o feio sempre me atraiu mais do que a beleza que fazia meu amigo poeta suspirar e chorar, e chorar...

Não é necessário chorar porque o choro nada resolveu na História da humanidade, porque não foi chorando que o homem se viu na obrigação de inventar a roda, há a necessidade e isso basta para que se construa algo diante do que já morreu. Chorar o morto não o traz de volta; a flor que morre hoje já vai tarde.

Se Freud dizia que depois da guerra haveria de nascer uma nova nação mais forte, mais sólida, eu mesmo penso que se a destruição não fosse impulso suficiente para nos manter de pé, que nos deixasse viver entre as sombras, porque, certamente não seríamos um povo digno de viver, portanto, aos mais fortes, a vitória, ao vencedor, as batatas, meu amigo de além túmulo diria.

Sendo assim, encerro por aqui minhas considerações, sobre o episódio romanticamente narrado por Freud, dizendo-lhes uma única coisa: tudo que é vivo morre e ainda bem, pois a morte me parece muito mais interessante do que aqueles odiosos momentos que vivi entre dois amigos, um patético demais para ser capaz de narrar com clareza o que se passou, outro pretensioso demais para entender que a pérola das coisas mora na concha da objetividade e nada deve ao subjetivismo maldito.

Para mim, aquele foi apenas um dia terrivelmente quente em que tive a malograda ideia de aceitar um convite para passear.