sábado, dezembro 11, 2010

Zizëk, Hitchcock e corpos que caem



Quem não conhece os filmes de Hitchcock não sabe o que está perdendo. Acredito, no entanto, que não estejamos falando da maioria das pessoas que aprecia a sétima arte. Em seu livro Lacrimae Rerum (Boitempo, 2009), o filósofo pop esloveno Slavoj Zizëk nos apresenta seus ensaios sobre cinema moderno, que, inclusive é o subtítulo deste seu livro lançado há dois anos.


É neste livro que Zizëk faz suas reflexões e nos oferece seus originais insights sobre aquela que seria a arte da qual Freud menos se aproximou, mas que , nem por isso escapa de ser analisada por um viés psicanalítico. Zizëk, especificamente em seu ensaio denominado "Alfred Hitchcock ou Haverá uma maneira certa de fazer o remake de um filme?", inicia suas pontuações sustentando que não seria de seu interesse empreender nenhum tipo de idolatria a qual o levaria pela mão e guiaria seus pensamentos a respeito de Alfred Hitchcock, por muitos considerado o pai do cinema de suspense.


Nas palavras de Zizëk: " é preciso evitar aqui o discurso carregado de jargões sobre o toque único de Hitchcock, e coisas do gênero, e abordar a difícil tarefa de especificar o que confere a seus filmes um caráter singular". (ZIZEK, 2009, p.79)


Ou seja, não há necessidade de rasgação de seda, o importante é falar o motivo pelo qual Hitchcock é considerado brilhante e seu cinema, único. É por esta via que Zizëk nos guia. Sendo assim, o escritor esloveno fala que qualquer tentativa, por mais pretensiosa que for, de "explicar Hitchcock" tenderá a assemelhar-se a uma coisa do tipo "Hitchcock made easy", ou , um Hitchcock envernizado, quase "de A a Z", feito para quem não precisa entender tanto de cinema e que tem uma necessidade extrema de padronizar o que vê.


Em seu ensaio sobre a obra de Hitchcock, Zizëk fala sobre o traço perverso presente na Marion, a primeira hóspede do lendário Motel Bates, que a liga a seu assassino Norman. Há inclusive uma semelhança entre os nomes, o que não se pode deixar de observar ( mas esta é por minha conta, não por Zizëk, me atrevi).


Sobre os traços gerais presentes na obra de Hitchcock, Zizëk nos fala do que chama "motivos visuais impostos por uma estranha compulsão" (ZIZEK, 2009, p.82). Seriam eles, pessoas se agarrando à mão de outra, na iminência de cair, sendo necessário que haja alguém para levá-la ao plano da superfície/realidade ( não se esqueçam da emblemática cena de Um corpo que cai, em que James Stewart, Scottie, aparece necessitando de apoio de alguém para sobreviver a uma possível queda).


Outro motivo visual compulsivo em Hitchcock seria a imagem do carro à beira do precipício, prenunciando, mais uma vez, a possibilidade de queda iminente, o que podemos, mais uma vez sem auxílio do esloveno, associar ao temor ao abandono do corpo deixado à mercê das leis da gravidade. Assim, um carro à beira do abismo cumpre a mesma função da mão que pode tanto agarrar a mão do mocinho, como soltá-la, deixando, mais uma vez, seu corpo em abandono, um corpo em queda.


Zizëk também faz alusão à imagem da mulher inteligente, porém sem muitos atrativos físicos que faria o papel da companheira de aventuras do herói - quem não lembra da amiga de James Stewart, Midge, vivida pela atriz Barbara Bel Geddes em Um corpo que cai? Há, entre estes motivos visuais a imagem quase obssessiva do crânio mumificado, tal como vemos em Psicose, representando a morte assustadora, como na cena em que vemos a terrível imagem de Norma Bates, mãe de Norman, no porão da casa lúgubre em que a personagem do assassino vive parte de sua vida.


Zizëk, inclusive, faz uma análise freudiana dos espaços geométricos pelos quais a personagem de Norman Bates transita, relacionando-os às esferas psíquicas idealizadas por Freud e que hoje já caíram no gosto popular: o id, o ego e o superego, sendo o porão, portanto, o lugar dos impulsos, dos conteúdos obscuros que não devem sair à luz do dia. Ora, não seria também o id o lugar conhecido como porão da mente, aonde guardamos todas as quinquilharias das quais não queremos mais saber?


Para quem se interessar por esta análise de Psicose, poderá também assistir o filme O guia pervertido de Cinema, em que também Zizëk aparece como astro principal, aparecendo em cenários usados em filmes, como a baía em que se passa Pássaros, também de Hitchcock, entre outros que marcaram os filmes considerados obras-primas, não somente da autoria do cineasta americano.


Sem dúvida há tantas outras peculiaridades em Hitchcock que não caberia aqui, tampouco caberia no ensaio de Zizëk, pois percebemos que o autor, a partir de seus insights, nos fornece a possibilidade de tantos outros. Porém, a ideia principal que fica deste ensaio é que os motivos visuais usados na obra do cineasta americano podem ser considerados sinthoma, diferente do sintoma, algo que resiste à significação, são signos materiais que indicariam as vias pelas quais o cineasta constrói suas histórias, deixando amostra seu fantasma, ou seja, tudo aquilo com o que não pode lidar, e que insiste em aparecer, seja na imagem do crânio fossilizado, seja no carro à beira do abismo, na mulher inteligente, nas sombras que se transformam em silhuetas humanas, tudo conferindo o mais alto grau de suspense à película.


Depois de tudo isso, talvez possamos rasgar seda, idealizar tanto Hitchcock como o próprio Zizëk, no entanto, cabe um conselho de prudência: acalma-te!Assiste um Hitchcock, mas já com outros olhos, e tira tuas próprias conclusões.