segunda-feira, outubro 18, 2010

As memórias de um gênio óbvio



“ Não há ninguém, vivo ou morto, que não tenha concebido a sua fantasia homicida. O melhor de nós já pensou em matar e já se imaginou matando, etc, etc (Aliás, envergonha-me estar aqui proclamando o óbvio)”.

Nelson Rodrigues

A um desavisado, certamente esta frase soaria como de mau gosto, típica de um escritor medíocre que não cansava de falar sobre anomalias, aberrações, coisas que acometem os anormais. No entanto, para os avisados e amantes da obra de Nelson Rodrigues, nada mais óbvio, de fato, do que a afirmação do autor: as pessoas trazem, dentro de si, todas as mazelas psicológicas que poderiam contribuir para a venda de qualquer noticiário policial, por mais sensacionalista que fosse.

Assim foi a vida de Nelson Rodrigues, e ele não poderia falar do que não conheceu. Em Memórias e A menina sem estrela (Agir, 2009), viramos testemunhas das inúmeras situações que chamaram atenção desse mestre da literatura e do teatro nacional. Somos catapultados para o contexto sócio-cultural que viu nascer o jornalista Nelson, filho de uma família de jornalistas e que adquiriu, por força do hábito e da vida, um certo gosto pelo que lia e escrevia nos noticiários policiais: pactos de morte entre amantes, suicídios, assassinatos e traições, sobretudo a traição feminina eram os grandes interesses do então jornalista policial que gostava de acrescentar, aqui e ali, um tom dramático, poético até, nas mortes diárias que noticia.

Ao ler Memórias, certamente compramos um bilhete de viagem de volta para o século XX, conhecemos o famoso carnaval de 1919 do qual Nelson fala com riqueza ímpar de detalhes, o que faz qualquer leitor subitamente descobrir uma serpentina nos próprios cabelos. Também viajamos rumo às origens do teatro nacional, conhecemos as polêmicas em torno do Teatro Municipal, do disse-me-disse que marcava a recepção da obra de Nelson em todos os setores da vida social carioca que costumava atrair-se por todo o sangue e adultérios mostrados pela obra do autor pernambucano que adotou o Rio de Janeiro como cidade natal.

Marcado desde o nascimento pela estrela de tarado ( vale a pena conhecer o fato que já anunciava a má reputação de Nelson quando adulto: aos quatro anos, Nelsinho teria sido proibido de visitar a casa de uma vizinha, mãe de uma menininha que deveria ter a mesma idade dele. De acordo com as palavras da atônita vizinha à mãe de Nelson: "Todos os seus filhos podem vir a minha casa, exceto Nelsinho").

O que se seguiu foi mesmo a confirmação da advertência da vizinha: Nelsinho cresceu e continuou sendo considerado persona non grata no teatro brasileiro, na própria literatura para a qual tanto contribuiu, pois foi, em vida, um dos maiores desafetos de muitos grandes nomes da mesma, enfim, alguém a ser banido, extirpado do convívio social, pois sua obra exalava um cheiro de lama e miséria, estas tão expulsas, desde sempre, das sociedades civilizadas - Nelsinho, em toda sua vida, só pôde colecionar advertências, tais como a da vizinha da longínqua Rua Alegre.

Certa vez, questionado por Carlos Drummond de Andrade sobre o motivo de Nelson não falar em sua obra de pessoas normais, o dramaturgo pernambucano engoliu a resposta que nunca dera ao poeta mineiro: "falo de pessoas tão normais quanto você e eu". Talvez o pernambucano fosse mesmo a pedra no caminho de Drummond, que, mesmo com tanta poesia, não conseguia entender a imensa normalidade presente na obra de Nelson Rodrigues: chegaria a ser obscena de tão óbvia a semelhança da obra mais "bizarra" com a vida mais normal, mais apática retratadas em obras como A dama da lotação, Engraçadinha, Toda nudez será castigada, etc.

Para os que não conhecem, vale a pena conhecer a obra do mestre dos acontecimentos corriqueiros, intérprete original de toda a mesmice sem graça com a qual o ser humano mediano dirige sua vida. Há de se falar de pessoas normais, ora, e não seria o adúltero uma das figuras mais famosas e conhecidas de que se têm notícia a nossa vã humanidade? Por acaso somente os anormais traem? Não creio nisso, nem Nelson.

Aos ainda desavisados, recomendo Memórias a fim de tomar ciência do contexto sócio-cultural que fez de Nelson o "grande tarado", fama repercutida pelas mesmas pessoas, de conduta moral imaculada, que, mais tarde se curvariam aos pés de Nelson na sua velhice e ainda mais depois de sua morte, em 1980.

Se tivessem de começar por algum lugar, conheçam a história, conheçam as Memórias, aí então qualquer pessoa, normal ou não, estaria preparada para entender um pouco mais da genialidade daquele que ousou detestar a unanimidade.