segunda-feira, abril 28, 2014

O filósofo, esse inocente, não sabe de nada.


" Não mais que qualquer um, o filósofo não sabe muita coisa do mundo"

Essa frase foi proferida por Charles Melman e eu só a conheci hoje, quando busquei na biblioteca seu livro sobre as novas formas clínicas de patologia mental. Até aí tudo bem, nada de novo no front.

Como eu persigo a ideia de que nada que me chega aos olhos me chega por acaso, conheci esse texto horas antes de ter a oportunidade de assistir em aula um seminário preparado por colegas de sala sobre a Filosofia de Nietzsche e, mais precisamente, uma acalourada discussão sobre como juntar seu pensamento niilista às formas de se fazer e inventar a clínica na contemporaneidade. 

Um desafio em potencial, mas tanto Melman, como a aula de hoje me fizeram pensar muito sobre as possibilidades que estamos usando para re-significar nossa existência, sobre como vivemos nossa vida. Enfim, muitas questões efervescem em minha mente.

Eu vim caminhando para o albergue em que toda segunda-feira me instalo na companhia de várias interrogações as quais insistiam em apertar o passo, e eu digo, demorei para alcançá-las, até que fui surpreendida pelo advento, pela assertiva em forma de insght que assustou os meus ouvidos e que fez tudo se transformar.

Logo tudo fez sentido, e esse texto é uma tentativa de unir, o que fala Melman sobre o sujeito da ciência e a filosofia nietzscheana que foi discutida na aula de hoje ( e nisso não há pretensão, pois não me coloco aqui como profunda entendedora do autor alemão, mas apenas como alguém que o toma como interessante pensador que me auxilia a refletir sobre a clínica), isso tudo é devido ao encontro com a surpreendente lição que ouvi de um guardador de carros que cruzou meu caminho.

Vejamos então como as questões se articulam.

Já há algum tempo que discutimos em sala os principais pensadores da Filosofia do século XIX e seu papel para repensarmos a clínica. 

Já passamos por Wittgenstein e hoje foi a vez de Nietzsche, na verdade, em outras aulas pudemos compreender melhor a linha de pensamento do filósofo, mas é a atividade de seminário que torna possível e palpável a relação entre Filosofia e Clínica. 

Claro que Nietzsche é um mundo e eu não tenho a pretensão de aprofundar aqui uma crítica sobre seu pensamento, minha leitura é pouca,  isso eu deixo para os filósofos e para os entendedores especialistas, comentadores de sua obra. 

Mas há um ponto discutido hoje que me chama atenção entre tantos outros: a ideia de que Nietzsche não fora um filósofo do trágico, mas sim, um filósofo trágico, a ideia da tragédia perpassa sua obra e nos permite uma aproximação com a clínica e, claro, a meu ver, possibilita uma grata ressonância na clínica psicanalítica.

Em um texto interessante chamado "Nietzsche e o trágico: abertura para a valorização da diferença", eu li que ele tinha certa adoração por duas figuras: Wagner e Schopenhauer, apesar de romper com algumas ideias desses ídolos posteriormente, os dois nomes foram fundamentais para o pensamento nietzscheano e merecem menção. 


A tragédia, para Nietzsche, é a própria condição da existência humana, a dialética Apolínea e Dionisíaca nos torna, para sempre, seres em conflito entre o não preocupar-se e o entregar-se à vida, entre a ordem e o caos, e deste, há que nascer uma esperança. 


Somos sempre seres apolíneos e dionisíacos e a tragédia consiste, segundo o texto citado, em aceitar a vida, o destino, em dizer um "sonoro sim à vida" ( Magalhães e Di Matteo, 2010), o que implica recebê-la com o que ela tem de dor e beleza. Isso é ser trágico para Nietzsche.

Essa aceitação da existência trágica me faz retornar ao texto de Melman citado aqui no início, sobretudo quando o autor sustenta a ideia de que a terra do sujeito do inconsciente é o exílio, é disso que se trata em Psicanálise e é isto que me faz pensar na estreita relação entre tragédia, em aceitar a vida em sua dor e em sua delícia ( me lembrei de Caetano) e exílio, este como pátria do sujeito inconsciente que, se não ignora o cogito cartesiano, não lhe reconhece como salvador da pátria.

O que quero dizer é que, diante de todos os ensinamentos de Nietzsche dos quais não me julgo sabedora, essa noção de tragédia e da oposição entre apolíneos e dionisíacos, eu vejo o interesse maior da Psicanálise, qual seja, o entendimento de que há apenas um lugar para o alojamento do sujeito do inconsciente,e esse não é o cogito, não é a razão absoluta, não é Ciência, não é Deus, o sujeito do inconsciente é ateu e cético, eu suponho. 

O desamparo é a prova da tragédia existencial da qual Nietzsche fala, e contra isso, contra a condição de desamparo, pouco se pode fazer. 

O desamparo, agora podemos dizer, lança luz sobre essa intrincada tragédia que construímos em nossa existência ( ex-sistência, nos adverte Lacan). 

Sendo assim, somos trágicos, pequeninos seres desamparados que , desiludidos com a Ciência e com a Religião - e nisso há sempre a lembrança de Nietzsche - não temos outra alternativa a não ser habitar o desamparo, mas, então, como fazê-lo?

Como dizer um sim sonoro à vida, como abraçar esse exílio?

Nesse ponto chegamos ao conceito de amor fati de Nietzsche, ou o amor ao destino, a vivência plena entre os pontos que estão em constante tensão, entre Apolo e Dionísio, o amor fati é poesia pura, e acho que é disso que se trata em Psicanálise.

Aqui volto à Melman quando este diz que na Psicanálise não se trata de remédio, pois não há o que se admnistrar. Aí a Psicanálise se distancia da Psicoterapia e das técnicas denominadas auto-ajuda.

Não há o que se administrar, não há fármaco capaz de dissolver a tragédia, não há polo vencedor na querrela inconsciente. Mas isso não significa que não há o que se fazer, aí há o amor fati.

Desse jeito, penso que reinventar a clínica e ser psicanalista é se lançar nessa labuta diária que é viver a tragédia sem por isso ser aplacado pelo desamparo, pela própria guerra.

Fazer Psicanálise, arriscaria, é a arte do bem viver no exílio, é a arte de viver na corda bamba, e o que a torna arte é a noção de entregar-se à vida, ao amor fati, que implica também se responsabilizar por suas escolhas, é se implicar na própria tragédia.

O amor fati é assumir-se, é decorar o exílio com as cores mais bonitas e sabê-lo intransponível, é assumir-se e não depender de Deus, ou de Outro qualquer que retire o lugar de responsável pela própria tragédia.

Assim, entrar em análise é uma das coisas mais corajosas a que alguém pode se submeter, pois é lançar-se ao eterno e implacável Acheronte, e nossa arma sempre será o amor fati, o dizer sim, o que não é fácil e o que exige algo do que Nietzsche nos fala: dizer sim à vida exige liberdade, talvez a liberdade que o movimento niilista propõe.

Portanto, a liberdade seria o motor da tragédia, a liberdade seria o que estaria além do bem e do mal, o pleno trânsito do sujeito do inconsciente se dá por causa da liberdade, livre do cogito, longe dos grilhões morais, seria liberdade perante a religião, liberdade perante Deus.

Isso são apenas pensamentos que me acompanham desde quando comecei a compreender melhor Nietzsche. Aqui não tenho intenção de interpretá-lo com Freud, ou "usando" Freud. 

Cabe dizer que o ano em que Niezsche morre é o ano de lançamento da Traumdeutung, há algumas menções ao filósofo alemão na obra do pai da Psicanálise, o resto a gente associa por interesse e conta própria e nisso, repito, não assumo o lugar  do sujeito suposto saber, só me interesso em aproximar mentes tão pertinentes para sua época e para a contemporaneidade.

Eu fiquei um bom tempo tentando achar a linha certa para costurar esses argumentos, a linha correta para iniciar o trançado desse texto trágico, e, por sorte, o acaso me encontrou e eis que surge a personagem fundamental e a quem eu devo esse texto e os insights que o costuram: o guardador de carros que eu vi na rua. 

Eu vinha atravessando a rua da faculdade, eu e minhas interrogações, estas sempre a minha frente, driblando os carros faceiramente, eu ia com mais calma e medo, passadas leves até ouvir o inesperado do tal homem que guardava os carros na esquina. 

Ao atravessar a rua, eu ouvi fragmentos de uma conversa quase inaudível, eram trechos soltos, mas o que ficou foi isso que ressoa em meus ouvidos até agora, disse ele para alguém, e eu não sei bem o contexto, mas ele disse bem assim: 

"Solto ele já é, vamo deixar ele livre"

Era o que me faltava para entender Nietzsche, obrigada, moço que eu não conheço, isso me faz perceber tão claramente a ideia de amor fati, a ideia do próprio exílio. 

Soltos no mundo, desamparados todos somos, mas, sermos livres, eis o desafio, tanto para a filosofia trágica, como para a clínica psicanalítica.

Não seria essa a proposta essencial do niilismo? Seria o guardador de carro um niilista por vocação e devoção?

Agora me sinto em condições  para recorrer à Melman pela última vez, e ouso complementar a frase que abre esse texto:

"O filósofo não sabe nada do mundo, mas o guardador de carros da rua, este sabe".

Agora tudo se costura. Agora um alívio - temporário - para os percalços do exílio.