terça-feira, agosto 19, 2014

Je suis lacanianne-fajute, mon amour!

Em seu texto "Lacan elucidado" Jacques-Alain Miller nos relembra do fato de que o desejo neurótico equivale à felicidade, uma felicidade nunca atingida, e por isso mesmo, tão almejada. 

A questão central do neurótico, nos relembra Miller, será sempre o "Che vouir?" Ou "O que quer?". Portanto, ao neurótico cabem as perguntas, cabe a interrogação do desejo. E para o perverso? Ora, a questão não é uma questão. Em última análise, a interrogação não consta na máquina de escrever do perverso, pois, nada do seu desejo corresponde a uma dúvida, o perverso é aquele que, de repente, sabe.

Segundo Miller, seria esta a base da arrogância perversa. Meu complemento: o gozo do perverso é ser aquele que goza enquanto o outro pergunta. O perverso não questiona, ele sabe, ele sabe que é. E, no caso que ilustro aqui ele sabe que é francês. Desdobremos melhor esse argumento, pois será útil no que pretendo desenvolver.



Se o perverso detém a chave do mistério, se ele possui o código capaz de abrir qualquer cofre, ele não é dado à elocubrações ou reflexões, pois a Verdade está posta e ela não pode duvidar daquilo que simplesmente é. O perverso  tudo sabe e nada desconhece. E se nada questiona, cabe dizer que ele  se coloca como aquele que é o caminho, a Verdade e a vida, assim sendo, não haveria de duvidar de sua própria identidade, pois a Verdade é uma: ele é, e completo: Ele não apenas é, mas também é francês.

Além de ser aquele que é, le subject psicanalitique frequentemente é francês, não se sabe ao certo se oriundo da parte leste, um verdadeiro francês da região da Alsácia, ou da região da Normandia. A origem aqui não é tão importante como a nacionalidade, que é certa: ele é inevitavelmente francês, como o são as baguetes, os croissants e o molho bechamel.


Estamos agora falando de um perverso típico, estereotipado e clichê: estamos falando do psicanalista français-version, candidato ou membro da afamada " Eccole Fajute-version de Psychanalyse". Vejamos o motivo que o torna tão especial, tão-todo.

(1) Je parlais français, et vous?

Sabemos que estamos diante de um psicanalista da "Eccole Fajute-version de Psychanalyse" quando a primeira pergunta que ele nos dirige está relacionada à idiomas, mesmo que seu vocabulário se restrinja a algumas expressões idiomáticas decoradas à força e pronunciadas com um acento ou sotaque que quase sempre não é compreensível para o próprio francês, o verdadeiro. 

O membro da Eccole se regozija ao dizer a quantidade de verbos que aprende semestralmente em seu curso do SENAC e costuma fazer jus ao que aprende tentando aplicar em frases aleatórias algumas das expressões que a duras penas conseguiu memorizar. Há ainda os que logram mais êxito ao conseguir pronunciar frases-clichês que muito servem ao ofício de qualquer psicanalista da Eccole. São elas:

a) La vérité a structure de fiction.

Essa é fundamental para todo aquele que deseja tornar-se referência no campo psicanalítico, especialmente aqueles que se nomeiam seguidores de Lacan. Para o iniciante, convém memorizar - et aplicar - sempre que possível.

b) "La femme n'existe pas"

Essa talvez seja uma opção viável apenas àqueles psicanalistas que se considerem iniciados, pois seu uso requer um domínio maior acerca das concepções lacanianas  das relações entre as posições masculina e feminina.

 Para seu uso é recomendável a leitura dos Seminários 19 e 20, além, lógico, do dicionário de Psicanálise de autoria de Madame Roudinesco ( não preciso dizer que para os membros da Eccole fajute-version, essa leitura pode ser feita en passant, comece e termine pelas "oreilles " dos livros).

Seu uso é recomendado em uma roda de amigos igualmente integrantes e praticantes da Eccole.

c) "Le désir de l'homme est le désir de l' Autre"

 Essa expressão é indiscutivelmente a chave para a sua entrada na Eccole e requer ser bem pronunciada, para tanto, convém aulas semanais e mesmo reforço escolar para que nenhum traço ou vestígio de um idioma incoveniente sobrevenha e atrapalhe seu ingresso na Eccole. Já diriam os mais antigos fundadores dessa instituição, quem não conhece "l'Autre" n'existe ( vejam que algumas das expressões podem ser usadas em combinação, e isto é o que torna tão mágico o idioma francês". Insisto: convém mais aulas no SENAC para uma pronúncia impecável, não arrisque seu passaporte para uma instituição tão renomada).

É mister ressaltar  que para se candidatar a uma vaga na Eccole Fajute-version de Psychanalyse é necessário preencher uma série de outros requisitos aqui apontados à guisa de esclarecimento. Por isso, prosseguiremos.

(2) Les cigarettes dans l'obscuritè:

Para todo aquele imberbe psicanalista que acreditou que seu ingresso na Eccole dependeria única e exclusivamente de seu traquejo no idioma de Napoleão, trago más notícias: não pense que algumas expressões idiomáticas fazem de você um membro de uma instituição como esta. 

Reza a lenda que outras características próprias da personalidade do candidato serão avaliadas, isto é, sua capacidade de encarnar o sujeito do gozo e de manejar de maneira irrepreensível o discurso do mestre. 

Para tanto, convém entender de Topologia ( en passant) e, mas, acima de tudo: convém assegurar-se de que, de fato, não se é um estranho no ninho: a banda de Moebius deve ser um conceito não apenas a ser aprendido, mas divulgado e massivamente repassado aos outros membros da Eccole, sempre se observando o obscurantismo da linguagem - não esqueçam de que estamos falando da "Eccole de Fajute-version de Psychanalyse" e quanto mais as pessoas franzirem o cenho para cada frase sua, tanto melhor, é isso que lhe oferecerá a certeza de que você está perante acéfalos, será o seu conhecimento avec seu mis-en-scene o responsável por retirar o ignóbil das garras de sua vacuidade.  

Serás o Napoleão, serás o general, e marcharás rumo às terras da ignorância alheia, serás o mestre profanador e o senhor de todas as coisas. Além disso, preze pela imagem intocável que é conveniente à imagem que você deseja transmitir para toda a plateia, cigarettes são bem vindos, pois contribuem para a cena noir , o que muito eleva o poder de suas palavras. Caso domine a arte elegante do tabagismo, considera-se oportuno variar os produtos para charutos e cachimbos, mas lembre-se:
 Narguilé não é bem visto pelos membros da Eccole.

Para melhor fixação, reitero: abuse dos obscurantismos na linguagem ( aí entra a necessidade de dominar o que foi exposto no tópico 1). O resto faz parte da mis en scene que você construirá. Seu nome está em jogo.

3) Croissant et Chandon:

 Diante do que foi exposto até então, você já deve ter percebido o grau de exigências que são impostas aos candidatos a uma vaga na Eccole. Portanto, se você conseguiu dominar os dois tópicos anteriores, já é capaz de preencher facilmente os requisitos relacionados a este ponto, pois já deve ter adqurido um paladar refinado condizente ao de uma pessoa francesa e adepta à Psicanálise lacaniana-lacanóide. No entanto, caso este não seja seu caso, algumas advertências são cabíveis:

 Todo bom membro da Eccole consegue adequar seu paladar ao que estuda e o que parece bobo e sem sentido, torna-se um dos requisitos mais importantes para sua aceitação. Portanto, papel e caneta na mão, attención!

a) Não é apropriado o gosto por cerveja, objetivamente falando, troque a cevada por um bom vinho Merlot (no caso dos vinhos, quanto mais envelhecido melhor). E, como estamos falando dos interesses enológicos, cabe mesclar, entre um gole e outro, comentários relacionados à safra do vinho que deve ser sorvido delicadamente. Anote algumas expressões que podem interessar:

1. "Sinto o gosto de carvalho envelhecido tocar minhas papilas gustativas num frenesi de sabor! É quase o gozo Outro!" ( risadas baixas são permitidas).

2. "Nada como uma boa taça de ________". (complete com o nome do vinho, e não esqueça da safra)
 para esquentar uma boa discussão.

Observação: Há ainda uma melhor opção: quando você consegue unir seus conhecimentos enológicos ao linguajar lacanês típico da Eccole, como na frase abaixo:

Exemple: "Nada como um bom Merlot da Alsácia, com esse gosto acarvalhado indefectível e uma discussão sobre Le desirè!"

Exemple 2: l'infer est la mère. Le Merlot est le femme du desire!" (Risadas)

Para um ou outro intervalo no vinho, para quem é mais jocoso, utilize os coringas:

"Le vin n'existe pas!"
"Le vin suis lacanianne!"
"Bacco est italien mais le merlot est le Français!" (Sempre cai bem para os fanfarrões)

Outras opções de bebida: Não existem, seu paladar deve ser pedagogicamente levado a ignorar as demais bebidas, pois estas não são clichês o suficiente, salvo os espumantes, prefira os Chandon e Veuve Clicquot. Ah, também não é preciso dizer que todos os vinhos devem ser rigorosamente secos, pois tudo que seja suave serve apenas para cozinhar carnes e aves.

Opções gastronômicas: queijo brie, queijo gouda, queijo holandês (única exceção  à comida de outro país), coq au vin, crepe suzete (clássico), aves: codorna, pato e ganso. Frutos do mar: ostras, lagostas e camarões ( tentar harmonizar com um bom Merlot acarvalhado, se possível com notas de baunilha ou frutas vermelhas, também conhecidas como "Fruits de la forêt").

Sessão Pâtisserie: Macarrons, Madalaines, Croque Monsieur, Croissant, Brioches, Petit Gateau (em baixa ultimamente devido à crescente vulgarização) , Profteroles (mesmo caso do Petit gateau, mas ainda assim uma ótima opção nos dias de inverno, evite Foundue - igualmente vulgarizado e abrasileirado!). 

4) Godard est mieux que Pelé!

É desnecessário dizer que conversações sobre esportes ou qualquer outra manifestação corporal é terminantemente mal vista pelos membros da escola (as únicas exceções são Lacrosse, Badminton, Golfe e Tênis). 

Todo o resto, inútil dizer, não deve existir para você. Trabalha-se com a linguagem, o inconsciente é estruturado como "language, non come le corps!"
Futebol? Nem pensar! Somente são permitidos comentários sobre as finais de Roland Garros ou algo do gênero, lembre-se que se trata aqui de responder positivamente a tudo que for clichê no tocante à cultura e hábitos franceses.

 Às vezes flagramos um membro da Eccole gritando aos quatro cantos algo como "Alle, le bleu!". Isso constitui grave crime, e como todo crime, está passível de punição. Futebol não é um esporte lacaniano, muito menos francês. 

Sempre prefira discussões sobre filmes, daí seu gosto de cinéfilo dever contemplar os idealizadores de tudo que representar a Nouvelle Vague, caso não conheça o movimento, estude no Wikipedia para não decepcionar os seus ouvintes. 

Aqui vão dicas de cinema:

1- Audrey Hepburn pode ser a bonequinha de luxo, mas B.B (Brigitte Bardot) será sempre a "femme fatale" do cinema. Filmes interessantes a se citar: " E Deus criou a mulher ", "Acossado", "Uma mulher é uma mulher", "A bela da tarde".

2- Não acho necessário, mas irei ressaltar: pesquise os títulos originais dos filmes e dos diretores. Não precisa conhecer todos os representantes da "nova onda" ( Nouvelle Vague!) basta uma pitada de Godard, que é o principal mesmo.


3- Não esqueça de citar os mais recentes: "Azul é a cor mais quente" (hit-hot do momento!) "A trilogia das cores", "Os sonhadores", para os modernosos: "O fabuloso destino de Amelie Poulain" (fortemente vulgarizado, mas ainda surte efeito nas rodinhas de amigos da Eccole. Não esqueça que a frase "Les temps sont durs pour les rêveurs" sempre abre portas!)

5) Les femmes, echarpe, les hommes, brettelles!

Aqui umas dicas de vestimenta para você que já se sente tão francês. Se a candidata for mulher: echarpes, chales e meias-calça. Boinas são opções deveras arriscadas e só combinam com candidatas jovens, se você aceitar o risco, arque com as consequencias. 
Para os homens: Suspensórios ( item de primeira necessidade) e gravata borboleta (para os mais ousados, combina muito com charuto, e orna se seu look for Lacan-inspired, vide item 2) Pret-a-porter é a bola da vez. Um ou outro acessório Channel é essencial (lembre-se da pontinha de mascarada!).

Não pretendo me alongar nesse ponto, mas é interessante notar que a vestimenta, a maquiagem , o empunhar de um cigarro, a mexida suave nos cabelos bem tratados é essencial para le spetacle majestic e sem o pacote completo dificilmente você deixará a sua marca na Eccole, em uma frase: o homem é o estilo, invista no seu!, seja original!, seu grand finale deve ser explêndido, inesquecível.

6) Elegance avec Arrogance


Esse tópico quase foi excluído da lista, achei que estaria dizendo o óbvio. Todo e qualquer membro da Eccole deve se assegurar de que está cultivando apropriadamente sua arrogância , e para que não se tenha dúvidas de que se está sendo arrogante o suficiente , todo o check list abaixo deve ser feito. 

Portanto, para efeitos de checagem, resumamos tudo que foi dito até então em algumas perguntas objetivas:

1) Estou dominando o suficiente as expressões idiomáticas francesas?
2) Meu sotaque é de que região da França? Há traços de regionalismo?se sim, quais?
3) Minha postura é adequada a de um membro da Eccole Fajute-version de Psychanalyse?Utilizo as roupas adequadas?
4) Rebato críticas com veemência e prepotência suficientes para esconder minha vacuidade?
5) Utilizo o lacanês nível avançado para esconder minha ignorância?
6) Decorei suficientemente os matemas lacanianos e os traduzi de forma correta para o lacanês mais obscuro?
7) Ignorei o suficiente as atividades de supervisão diante das necessidades da "fajute clinique"?
8) Mantenho vivo em mim o necessário narcisismo primário que me ajudará a nunca esquecer os preceitos norteadores da Eccole?
9) Continuo desconsiderando qualquer possibilidade de deitar num divã?
10) Confio plenamente em tudo que produzo em termos de teoriazação?


Ao responder esse check list positivamente você estará a um passo de se tornar um membro efetivo da Eccole Fajute-Version de Psychanalyse" , comemore, suas chances de ser aceito crescem assustadoramente! Lembre-se que as questões são meramente  ilustrativas e aqui elencadas com fins exclusivamente  didáticos, pois o membro da Eccole nunca se questiona.

Adendo:

Questions fréquemment posées ( Questões frequentemente feitas)

-- Ser acadêmico faz de mim um membro da Eccole?

Pergunta repetitiva, mas, volto a dizer que o fato do candidato exercer a atividade docente não o torna automaticamente membro da Eccole, é preciso manter a chama dos princípios-base acesa. Apesar disso, alguns membros da academia constituem presença marcante na Eccole, isso não é segredo para ninguém.

-- Ser histérica é condição básica para fazer parte da Eccole?

Pergunta capciosa e frequente. Costumo respondê-la de maneira didática:  Não era porque Anna O. era a histérica preferida de Freud e de Breuer que ela seria, automaticamente, membro da Eccole Fajute-version de Psychanalyse. Na verdade, a moça virou assistente social. 

Vejamos: é lógico que uma certa encenação, maneirismos e trejeitos da histérica são facilmente compreendidos como condições para sua entrada na Eccole. Mas, é preciso cautela nestes casos: não basta ser histérica, é preciso ter um pezinho na perversão, pois máscara sozinha não faz semblante, se você é histérica se espelhe em outras histéricas que conseguiram, ao fim de muito esforço, transparecer conhecimento e eloquencia em sua fala. Ajuda muito dominar os tópicos 1 e 5 (lembre-se, aqui se trata de aparência, e a aparência é tudo!)

-- Quando um psicótico se torna apto a se candidatar à Eccole?

Fácil. Quando ele consegue manter um nível básico de integração egóica que o torne quase perverso ( na Eccole achamos isso possível, sim!), então o que é na verdade delírio pode se transformar em eloquência. A verborragia do psicótico pode nos ser muito úteis em seminários e palestras. Já vi belíssimos casos em colóquios sobre Topologia lacaniana.

Bem, eu espero ter chegado ao fim dessa explicação. Sei que me estendi, mas tornou-se fundamental esclarecer aqui os requisitos básicos. para ingresso na Eccole Fajute-version de Psychanalyse. Acredito que falei tudo e que não há mais nada a dizer. Nem por mim, nem por ninguém.

Agradecimentos especiais: wikipedia, dicionário babylon 10 português-francês








terça-feira, julho 15, 2014

E nos começos era o amor , de antes?

" Passadista, indiferente ao novo, alguém que perdeu toda a capacidade de se admirar, eu protesto: não, nem tudo era agradável antes, nem tudo é abominável hoje. Isso não me impede de comparar, e toda comparação implica sempre o risco de contrapor o bom ao mau, o melhor ao nem tão bom"

J-B. Pontalis

Essa é uma das muitas passagens marcantes de Quando ( Primavera Editoral, 2013) da autoria de  J-B. Pontalis. Esse livro faz parte de uma série de outros escritos em que o autor se aventura em uma nova empreitada: não se trata de um livro técnico, também não se pode dizer que seja uma autobiografia.

Na verdade se trata de uma espécie de reunião de textos esparsos que o autor produziu durante sua vida e que em algum momento traz um ou outro relato sobre sua forma particular de ver o mundo, mostra um pouco de suas experiências pessoais. 

Pontalis fala de alguns amigos, de Psicanálise e de seu país, revela suas impressões acerca do mundo e, claro, seu interesse em revisitar o passado, mas não com um intuito saudosista, escrito com a pena da melancolia, longe disso, ao julgar pela frase que lhes trouxe no início desse texto, Antes não pode ser considerado uma ode ao passado motivado por um tolo sentimento nostálgico qualquer.

Para o leitor ocasional, Antes parece um passeio pelas reminiscências de uma cidade que não existe mais, por encontros com pessoas que foram parte da vida do autor, em especial. É quase, como disse, um relato autobiográfico, mas não se trata somente disso, veremos que o que une os textos escritos em uma linha cronológica tão irregular é justamente o interesse do autor em não fazer do passado um tempo findo, do mesmo modo, o futuro não daria todas as respostas que se procura. A solução seria justamente o que propõe em uma dos textos desse livro: não retalhar o tempo, vivê-lo assim, todo.

Pensando desse modo, o cronômetro, a linha cronológica, o caléndario e o relógio nada mais fazem do que nos mostrar isso: que o tempo possui esta inexorável função de ser passado, esses objetos que a humanidade criou servem apenas ao corte, ao retalhamento da experiência. A areia da  ampulheta lentamente se esvai para o compartimento inferior e isto é, desde os tempos mais antigos, sinal de que o tempo não espera por ninguém, o tempo tem em si mesmo o trabalho de correr.

Pontalis nos apresenta em "Quando", a crônica que abre Antes, um tempo em que tudo parecia mais fácil, menos politicamente correto, um tempo em que ia " a Rolland Garros assistir às partidas de tênis e os jogadores se vestiam de branco, não exibiam os punhos como se fossem atingir o adversário, e os espectadores, atentos e silenciosos, não vociferavam do alto das arquibancadas" (p.9), ou mesmo um tempo em que " meu pai estava ao meu lado, quando todos os meus amigos, todos aqueles que eu amava, estavam vivos" (p.11). Esse texto talvez seja um dos mais nostálgicos de todos presentes nesse livro, na minha opinião o mais bonito, desses que a gente leva com a vida, como um belo presente que somente a gente pode abrir, não importa quantas vezes eu o leia, para mim parecerá sempre muito bonito. No entanto, não se trata apenas de nostalgia.

Muito embora o autor conceba a memória como uma "bolsa de mulher", onde cabe de tudo, desde itens indispensáveis à itens fúteis,os relatos não marcam essa posição de que o tempo de antes era melhor, não se trata disso. Trata-se de conter todas as idades, em esquecer o que marca o tempo, portanto, quebrem ampulhetas, destruam o calendário, porque quando se trata de uma existência, a linha cronológica não é suficiente.

Não seria por acaso essa recusa de Pontalis em retalhar o tempo. Vejamos o que é típico da experiência analítica: passado, presente e futuro se confudem e não obedecem a nenhuma lógica temporal.

Freud nos ensinou que somos todos neuróticos, psicóticos e perversos, todos, sem exceção, marcados pela ferida desse tempo que insiste em cristalizar nossas esperanças. Sofremos de excesso de passado e de ânsias de futuro. Sofremos, porque o tempo não passa no inconsciente, o tempo é essa ferida sempre aberta que nos revela o quanto podemos ser ilógicos. Tomemos a experiência do sonho como um protótipo do funcionamento do inconsciente.

Desde Traumdeutung  sabemos que o funcionamento do inconsciente não se submete às leis que criamos para contar o tempo. Dito de outro modo, o inconsciente não responde ao retalhamento do tempo, ao movimento da areia dentro da ampulheta. No sonho o passado volta como esse fantasma que nos espreita e nos atinge a cada vez que dormimos. Somos guardados pelo sonho, mas, ao mesmo tempo, somos assombrados pelo tempo que não parece varrer o que é mais importante.

"E  o agora é agora. E agora é hoje, ontem e amanhã. Nós, os humanos, sentimos e acreditamos que o tempo passa, alegamos que ele corre e, quanto mais envelhecemos, mais depressa ele se vai. Mas o Tempo (assim, com maiúscula) ignora que passa, é imóvel, não tem idade"(p.18)

Esse pequeno trecho de "Quando" nos mostra a premissa básica que temos diante dos olhos e com a qual devemos ler todo o restante dos textos reunidos no livro. Em outra crônica, "Travessia", o autor nos relembra a saga de Ulisses e de sua eterna Penélope, a espera, a fiar e desfiar um tecido para enganar o tempo, para matá-lo. Isso me lembra Machado de Assis, e o seu "Matamos o tempo, e o tempo nos enterra". 

A vida como travessia, parece não existir metáfora mais bela do que esta, estamos a atravessar mares, a vencer monstros, a resistir às sereias de belas vozes para, enfim, nos reencontrarmos, de volta à Ítaca particular de cada um.

No texto "Origens", Pontalis nos guia pela mão e tenta explicar o antes onde não há antes, onde havia uma certa origem. Voltando à história da teoria psicanalítica, o autor nos lembra que Freud era um entusiasta da arqueologia e faz da própria invenção uma empreitada arqueológica, "sem regressão, nenhum avanço é possível" (p.71). Também faz uma breve alusão à Etiologia como o ramo da ciência que se debruça sobre as causas. Seria causa o mesmo que origem? Talvez esse seja um dos questionamentos mais interessantes desse texto.

Segundo o autor, causa e origem diferem entre si, uma vez que a primeira pode estar afastada do evento que ocorre, por exemplo, causas de uma guerra, de uma revolução não precisam estar alinhadas no mesmo tempo, podem configurar épocas diferentes. Já a segunda, esta seria a causa das causas, ou a origem que escapa ao retalhamento do tempo. Para Pontalis, assim, a origem seria um antes que não tem antes. Mas, e antes? A angústia?

Não sabemos o que o tempo quer de nós, mas sabemos que é próprio da vida passar. E é isso que temos, tudo o mais está na origem e está na angústia. Não foi isso que aprendemos com os fenomenólogos? Com Russerl e Heidegger, quando estes concebem que o verdadeiro propósito da vida é a morte em si e isto seria a maior das angústias?

Sabendo disso
, portanto, parece que a angústia prenuncia uma vida que fatalmente irá passar, mas podemos nos recusar a retalhá-la, podemos rechaçar as idades e vivê-las todas em uma só, essa é a proposta de Pontalis. Apesar disso, fica a dúvida, sem o retalho do tempo, das idades, dos relógios, estaríamos imunes à angústia?

"Nossas vidas, uma agonia adiada" (p.72). Parece que o prognóstico não é bom, não há como escapar à angústia ou ao tempo que se retalha, mas há, há sim como buscá-lo nos começos. O que há, então, nos começos?

Nos começos há olhares, há mãos que se entrelaçam, há pôr-do-sol, há belas canções. Para Pontalis, nos começos, há o amor. O amor é isto que adia a agonia, é isto que ao invés de paralisar o tempo, brinca com ele, diverte o tempo.  O amor dos começos é o que nos permite sonhar e viver o tempo todo ele em várias idades. 

E nos começos é o amor de todas as idades em uma só. Eis aí o que Pontalis nos ensina, portanto, vivamos todo o tempo, sonhemos que podemos contê-lo.



segunda-feira, junho 02, 2014

Luc Ferry e o amor aonde não se pensa

Ultimamente não são raras as abordagens sobre como a contemporaneidade tem destruído e solapado os ideais e tradições pelos quais o homem tanto lutou e dos quais a História vem a ser o discurso testemunhal mais verossímil.

Podemos dizer que os tempos de hoje são tempos sombrios, tempos em que a humanidade deu as costas, ou minimamente deu de ombros para o sofrimento do outro homem. 

Sim, sem dúvidas, não existe menos egoísmo e maldade hoje do que existiu em outros tempo. Devemos ser justos, e também cuidadosos para não cair na armadilha frequente em que muitos  caem: a de entender a contemporaneidade como tempos terríveis, tempos apocalípticos nos quais não é possível vislumbrar nenhuma fagulha de empatia, de interesse pelo próximo, de esperança. 


O amor aonde não se supõe

É a isto que se presta Luc Ferry em seu "Do amor: uma filosofia para o século XXI", o autor, que já foi  ministro da Educação na França, é filósofo e extremamente cuidadoso em apontar o que considera um segundo humanismo, uma época em que há, mais do que em qualquer momento histórico, um interesse genuíno, um amor verdadeiro pelo outro  que chega a transcender ao alcançar as esferas políticas em que os homens estão engajados e nas quais se entrosam publicamente.

Seria a tese de Ferry absurda? Incoerente? ingênua? Precaução e cuidado é o que o leitor mais atento e curioso encontrará nesse livro, pois o humanismo de que fala Ferry não é ingênuo, inclusive bate de frente com a hipocrisia que caracterizou a Idade Média, por exemplo.

A questão a que se detém Ferry é que o amor é a verdadeira revolução - Inclusive, "A revolução do amor", é o título de outro livro do mesmo autor - que permite as pessoas se colocarem no lugar do outro, a lutarem pelos ideais do outro, esse outro assume o lugar de amado, em todos os níveis, amado como amante, amigo, como aquele com quem eu evidentemente simpatizo.

Ou seja, o outro, esse meu íntimo me inspira a um amor que é tudo isso junto: amor-carnal, amizade, caridade - philia, ágape e eros - e este modelo irá nortear as relações que teremos e que vivenciaremos em sociedade.

Para alguns essa tese parece absurda, dirão os mais catastróficos que essa visão de Ferry é completamente incompatível com o que vemos, com o que acompanhamos nas notícias de jornal. Afinal, somos diariamente levados a crer justamente no oposto do que Ferry defende: os novos tempos são tempos difįceis, sombrios em que a violência e a maldade estão institucionalizadas. 

Outro dia ouvi  justamente isso de uma pessoa na rua:) "hoje em dia é assim, a violência comendo solta, antigamente ninguém via filho matar pai e mãe!"

Luc Ferry antecipa as críticas que certamente foram e serão endereçadas a ele ao inclusive não negar que vivemos tempos violentos. No entanto, se o autor corrobora a ideia de que estamos vendo cair diante de nossos olhos os ideais tradicionais, também nos relembra a maldade e a violência que marcaram os tempos antigos, imemoriáveis? Alguém esqueceu dos massacres ocorridos na Idade Média?

Por isso, cabe a lembrança:

" É fácil denunciar as mazelas do tempo atual, as desigualdades, a crise econômica, mas é infinitamentr mais difícil arriscar-se a evocar alguma época de ouro. [...] digam o que quiserem, nossas democracias oferecem espaços de liberdade até então inauditos, além de um permanente cuidado com o outro [...]" 

O trecho é claro e as ideias que evoca são mais ainda. O que devemos fazer é desconfiar de todo um discurso pré-fabricado que muitos assumem meio com pressa, tomando-o como verdade e como justificativa para repetir o que se expressa com o mais ingênuo senso-comum: "É, hoje em dia tá demais!".

O que esse "tá demais" imediatamente provoca é justamente isso: será que as outras eras experimentaram menos violência, menos crueldade? Ao contrário, e na verdade, na contramão do que muitos dizem, Ferry sugere que o humanismo concretamente situado em ações humanitárias nunca foi tão grande.

Mas, o que leva a essas ações humanitárias, senão o amor, arduamente construido entre duas pessoas? É esse o próximo tema que interessa ao autor.

Como nos ensina Ferry, foi na família que o amor passou a ser central, acabando com o casamento escolhido para manter as linhagens da nobreza. 

O casamento na modernidade vai ser profanado, vai esquecer do sagrado no sentido cristão ao assumir sua face erótica e vai, surpreendentemente, marcar as relações políticas ao escapar da esfera privada. O amor reinventado não é cristão e subverte a noção de sagrado como puro, medroso do corpo. O amor erótico assume esse corpo e se legitima a partir dele.


O amor erotizado

O amor, assim repaginado, não prescinde do eros e legitima o corpo como lugar em que será sacralizado. O sagrado recupera a significação de ser " aquilo pelo qual se pode morrer". Ora, se não se morre mais pelos ideais antigos - Pátria, Revolução e Deus - morre-se por amor, por amor aos que nos são caros, por amor aos que nos são íntimos.

Morre-se e se sacrifica pelos filhos, inclusive, esse amor filial é um amor que é recente, pois não é novidade que na Idade Média, não havia muita diferença entre a morte de uma criança e a morte de um cavalo. Falaremos mais disso adiante.

Sendo assim, esse amor, sai dos limites do privado e adquire uma substância pública a qual podemos ver representada nas ações comunitárias ou no sentimento mesmo que faz nosso coração apertar diante do sofrimento alheio, diante da dor do outro.

Essa é mais ou menos o cerne das ideias que nos são apresentadas em "Do Amor" , explícita alusão à Stendhal. Esse amor que nos faz perceber aquela característica específica do objeto amado, aquilo que nos faz percebê-lo como único: " Isso é tão seu!"  se torna o elogio mais sincero que alguém pode receber.

É isso que faz o ser amado ser amado: ser ele. Ferry lembra Montaigne " porque era ela, porque era eu". Obviamente, eu lembro de Chico Buarque: 

Eu não sabia explicar nós dois
Ela mais eu
Porque eu e ela
Não conhecia poemas
Nem muitas palavras belas
Mas ela foi me levando pela mão
Íamos todos os dois
Assim ao léu
Ríamos, choravamos sem razão
Hoje lembrando-me dela
Me vendo nos olhos dela
Sei que o que tinha de ser se deu
Porque era ela
Porque era eu


O amor pelo qual se mata e morre

O que me parece interessante na visão de Ferry é justamente como as pessoas fazem essa transposição ou mesmo tradução, não sei se os termos são válidos, como as pessoas trazem esse amor antes destinado ao privado ( e somente depois de muito tempo isso ocorreu como amor erótico)  para as ruas e se tornar argumento pelo qual se sacraliza o humano. Dito de outra forma, o amor é o único motivo pelo qual se vale a pena morrer.  Talvez nisso é que precisamos nos concentrar.

Penso agora nas grandes tragédias, nos linchamentos em via pública tão irremediavelmente relacionados aos tempos das fogueiras da Inquisição. Eu mesma pensei e associei prontamente um episódio  recente de linchamento em via pública no Brasil com a condenação das bruxas medievais.

 Hoje não penso mais assim, há vários indícios de que essas eras mais se afastam do que se relacionam entre si, medievalismo e contemporaneidade estão afastadas por quilômetros de distância. É outra coisa que está em jogo.

Quando se espancou uma mulher, mãe de dois filhos, em praça pública, viu-se claramente o argumento de muitos envolvidos na cena triste, abominável , que se desenrolou se repetir: " eu espanquei porque estavam dizendo que ela sacrificava crianças em rituais de magia negra". 

Não seria a identificação com o pai que teve o filho morto, um dos motores para que houvesse o engajamento nessa cena  bárbara que foi exaustivamente reproduzida pelos noticiários há um mês atrás?

Com isso não quero me esquecer do lado dionisíaco que vive no sujeito desde que o mundo é mundo, não é essa proposta, não estou esquecendo aqui da catarse perversa que ocorre quando alguém se lança a espancar uma pessoa no chão, a chutar cachorro morto.

A questão é: o amor, levado ao extremo, pode, sim, servir de argumento para ações que paradoxalmente nada tem que ver com o amor? Estranho? Não acho, pois não é de hoje que se mata por Deus, mas, será que Deus aprovaria a matança feita em seu nome?

Será que Deus separaria os seres entre os que amam pessoas de sexo oposto ao seu  e faria uma  fila diferenciada destinada àqueles que amam pessoas do seu mesmo sexo? Não. Mas esse é um argumento bastante propagado por aí.

Morre-se e mata-se por amor, lincha-se por amor, por simplesmente pensar que alguém possa ter feito algo tão cruel com uma criança. Eu , linchador, sou , portanto, idêntico àquele que lincho, só que, neste caso, a mulher espancada até a morte era inocente e também tinha filhos, que hoje choram por não terem sua mãe.

A leitura do amor a que nos apresenta Ferry é chamada por ele de segundo humanismo, um humanismo que estaria , por assim dizer, livre das ilusões metafísicas, pois a única transcedência pela qual se interessa é a transcendência sem Deus, uma transcendência levada à baila por conta da imanência humana. É pelo que grita de mais humano em nós que podemos amar o outro - e também odiá-lo.

O amor, afinal

O amor é isso, mais do que o tal do fogo que arde sem se ver. O amor é alçado a argumento e legitimado nas regras do bem viver, no ethos contemporâneo e isto pode nos levar ao mesmo tempo a uma existência mais amorosa, como também a uma guerra sem precedentes. 

Ferry prefere a esperança ao pensamento catastrófico. Eu também, e se nunca chegaremos a uma sociedade que viva plenamente o amor ao próximo, ao menos podemos viver numa sociedade menos hipócrita que convive , tanto com o aumento dos números de casamento, como com o igual aumento de número de divórcios.

Um exemplo de como a contemporaneidade nos promete várias possibilidades simples e notório: Hoje nos permitimos nos divorciar quando o amor acaba, nos outros tempos, dos casamentos arranjados, as pessoas se aturavam eternamente.

 Vamos pensar mais nisso, vamos ao menos considerar as vantagens da contemporaneidade ao invés de tacar-lhe pedras nostálgicas vindas de um "tempo bom" que nunca existiu.

segunda-feira, maio 26, 2014

Merleau-Ponty e ressonâncias na clínica psicanalítica: um barco, a arte e um mundo velho sem porteira

O mundo é mais velho do que a nossa consciência que dele temos. Assim deve ser apresentado a nós um dos mais importantes filósofos do século XX.

O que começou pra mim como uma disciplina do programa de pós-graduação que faço, acaba como uma surpresa que em muito me auxilia a pensar o meu fazer como curiosa sobre as questões que atravessam o humano.

Merleau-Ponty (1908-1961), como se percebe, morreu cedo, morreu ainda com muita coisa a dizer, e por isso mesmo, pelo que não disse, é que vem sendo redescoberto hoje em dia. Seu discurso reverbera na Psicologia, na Psicanálise, na Antropologia, ultrapassando os limites do filosófico por sua capacidade de se relacionar ao que é próprio da contemporaneidade e ao que é inerente ao humano.

Faço um recorte aqui de coisas que muito me interessam na filosofia merleau-pontyniana, a saber, a repercussão de sua concepção de linguagem e a incapacidade da palavra de conter o significado, o fazer da análise e o papel do artista como quem promove o novo.

Sobre a Palavra, para o filósofo, ela é um compartimento limitado que aponta para sua vulnerabilidade. A fala, nesse sentido, seria um tecido imenso dobrado pela linguagem, e o que seriam essa linguagem senão o próprio jogo relaciona pelo qual apreendemos o significado das coisas?

 Para entender melhor o que diz Merleau-Ponty: contrário às ideias típicas do idealismo, ele vai além,  e entende que o mundo não necessita da representação, que dele fazemos, as ideias e os conceitos não seriam a maneira correta de viver o mundo. É aí que pensamos a linguagem, como possibilidades infinitas de dizer e , ainda assim, não dizer tudo, porque nunca existirá uma linguagem completa, uma r
representação nunca valerá mais que a própria coisa, por isso esse jogo é eterno, o jogo dos significantes.

O sentido de uma palavra seria sempre ultrapassado pelo próximo sentido  para aquele que dela faz uso. Sendo assim, não nos cabe saber o mundo e cobri-lo de palavras, o que nos interessa - aí notamos a influência de Husserl - é como vivê-lo e experienciá-lo. Mas ainda assim, estamos presos à linguagem, dela é preciso fazer brotar algo.

A linguagem é ambígua, notívaga, a linguagem é misteriosa e provocadora, ela nos incita a vivermos o mundo e vivermos na originalidade, dispensando o constituído, nos entregando a experiência única do constituinte.

Toda essa noção acerca da linguagem descortina o que é a visão de mundo de Merleau-Ponty, uma visão fenomenológica, husserliana, disposta ao encontro, à busca 
da originalidade, parceira do advento como encontro com a alteridade. 

Merleau-Ponty, em suma, é o desvelamento da verdade como surpresa. E isso é o que a linguagem nos providencia: uma surpresa, por ser polissemia. A clínica parece deixar tudo mais claro.

Sinceramente essas ideias me parecem claras quando nos voltamos novamente para a clínica, não como uma tentativa de fazer uma coisa como "clínica filosófica", visto que o filósofo não pensou um modelo de clínica. O que podemos pensar é a visão de mundo,  uma proposta de filosofia que ressoe no que fazemos na clínica, na escuta mesmo do que diz um analisante, estamos inundados de palavras e linguagem.
Educação para adultos (Jonathas de Andrade)

Para pensar a clínica e sua relação com essa linguagem parcial, não-toda, eu penso em uma metáfora.

A figura do analista e do analisante como os dois ocupantes de um barco, a remo, cercado de um mar de linguagem em busca de uma espécie de ilha paradisíaca (Verdade?). É essa a imagem mental que tenho quando conecto Merleau-Ponty à Clínica Psicanalítica, ou a noção lacaniana de clínica.

Estamos os dois perdidos nesse imenso mar de linguagem, molhando-nos constantemente e sem qualquer garantia que alcançaremos um pedaço de chão, um território seco. O que temos pela frente é só imensidão e ondas, e dobras, e palavras, e corpos que remam.

Se essa imagem é por vezes aterradora, ela não deixa de ser, de alguma forma, potencialidade, possibilidade. Nos lembramos facilmente de Lacan quando se pensa seu clichê mais famoso: o inconsciente é estruturado como linguagem. Há aí Merleau-Ponty, evidentemente.

Ainda fazendo uso da metáfora que propus: o tesouro de significantes, do qual Lacan nos fala, é o trabalho, é o mar que navegamos, é o que temos para chegar - ou não - em algum lugar, e como nosso barco é frágil!

A linguagem, esse mar de palavras que necessita ser navegado -Navegar é preciso! Nos coloca frente a frente ao mistério do qual nos lembra Merleau-Ponty: o significante é metonímico, ele desliza, derrapa, muda e nos muda. A palavra deixa evidente que ela é menos do que parece, a palavra é o que habita essa mar que incessantemente navegamos privados de bússola, nós, analista e analisantes.

Portanto, dizemos muito e ainda deixamos claro que dizemos muito pouco, mas ainda assim, é o que o analista tem como meio de se chegar a algum lugar. Pois, como se chegaria a uma ilha desconhecida sem nos aventurar ao mar do "tudo é possível"?

Como o mar, a linguagem é imprevisível. Muita coisa ocorre em seu universo subaquático: peixes, perigos, movimentos tectônicos. E lá estamos nós, na superfície, imbuídos num trabalho hercúleo de navegar, sempre, mas nunca precisamente!

Deixando um pouco o mar de lado, e voltando à terra...

Descolar palavra de sentido e oferecer ao signo a possibilidade de tudo ser parece ser a riqueza de relacionar a filosofia merleau-pontyniana à clínica psicanalítica, que tanto ouve, que tanto se interessa pela plasticidade do significante.

Ora, não seria esse o papel da análise? Possibilitar outras saídas, um mundo sem porteiras, para que a cristalização e a patologia não encontre espaço? Promover uma abertura ao mundo para que nele possamos criar? Para que dele possamos nos apropriar, povoando-o com linguagem, sempre abertos à experiência?

Uma última consideração gostaria de fazer aqui. O interesse de Merleau-Ponty pela arte também é algo que o une à Psicanálise, parece que a arte sempre tem um estatuto de a priori no tocante à concepção de mundo. E isso é 
revigorante, seja na Filosofia, seja na Psicanálise.

Para Merleau-Ponty, o artista é aquele que promove o novo, que sai do instituído e promove uma torção, uma promiscuidade da linguagem, da palavra, da coisa em si mesma. O artista, esse privilegiado, seja na visão do filósofo, seja na concepção freudiana, promove essa prostituição das "coisas como elas são" ao romper com o que está aí. Ele é a promiscuidade.

Aqui um ponto que quero acrescentar, na esteira do que venho desenvolvendo. Ao ler Merleau-Ponty e sua concepção de linguagem como o ambíguo, me foi possível lembrar de uma obra de arte intitulada "Educação para adultos", em que percebemos claramente o papel do artista como o aquele que age sobre as "máquinas infernais de significação" (termo de Merleau-Ponty para descrever o que seria um livro). 

Nessa obra, o artista propõe trinta cartazes utilizados na alfabetização de adultos ( impressos entre as décadas de 70 e 80 do século passado) e sugere que haja a confeção de novos cartazes em busca da produção de sentidos, de novos sentidos que não os que foram instituídos pela relação, pronta e acabada, impressa nos cartazes, entre imagem e signo, que alguém disse que seria importante para alguém que quer aprender a ler.

Não pretendo aqui discorrer sobre alienação e opressão social, apesar da obra fazer essa discussão e de se utilizar Paulo Freire como referencial. Aqui, por questão de tempo e afinidade, prefiro centrar minha reflexão na questão do artista como o que promove o novo e seu compromisso com a torção da linguagem.

A obra consiste na apresentação de um painel de sessenta imagens, uma tentativa de tabela de correspondência "Imagem-Signo", dispostas não aleatoriamente, o que nos revela a polissemia de sentidos ( por vezes irônico) produzidos pelos novos analfabetos que produziram os trinta cartazes restantes na construção do painel. 

Constituído e Constituinte se entrelaçam e nos mostram duas coisas: a promiscuidade da palavra, como ela pode servir a diversos usos, e a possibilidade de descontruir o mundo, o mundo como representação pela visada de um novo mundo, em eterno processo de redescoberta.

Ao fim de tudo isso, paro pra pensar que somos tudo isso, navegantes e artistas, psicanalistas, dispostos a navegar, a promover o que reverbere no Outro. 

Se chegaremos a algum lugar, isso é o que menos importa. O que importa é abrir esse mundo e deixá-lo escancarado. Obrigada, Merleau-Ponty, por abrir as porteiras desse mundo velho!



segunda-feira, abril 28, 2014

O filósofo, esse inocente, não sabe de nada.


" Não mais que qualquer um, o filósofo não sabe muita coisa do mundo"

Essa frase foi proferida por Charles Melman e eu só a conheci hoje, quando busquei na biblioteca seu livro sobre as novas formas clínicas de patologia mental. Até aí tudo bem, nada de novo no front.

Como eu persigo a ideia de que nada que me chega aos olhos me chega por acaso, conheci esse texto horas antes de ter a oportunidade de assistir em aula um seminário preparado por colegas de sala sobre a Filosofia de Nietzsche e, mais precisamente, uma acalourada discussão sobre como juntar seu pensamento niilista às formas de se fazer e inventar a clínica na contemporaneidade. 

Um desafio em potencial, mas tanto Melman, como a aula de hoje me fizeram pensar muito sobre as possibilidades que estamos usando para re-significar nossa existência, sobre como vivemos nossa vida. Enfim, muitas questões efervescem em minha mente.

Eu vim caminhando para o albergue em que toda segunda-feira me instalo na companhia de várias interrogações as quais insistiam em apertar o passo, e eu digo, demorei para alcançá-las, até que fui surpreendida pelo advento, pela assertiva em forma de insght que assustou os meus ouvidos e que fez tudo se transformar.

Logo tudo fez sentido, e esse texto é uma tentativa de unir, o que fala Melman sobre o sujeito da ciência e a filosofia nietzscheana que foi discutida na aula de hoje ( e nisso não há pretensão, pois não me coloco aqui como profunda entendedora do autor alemão, mas apenas como alguém que o toma como interessante pensador que me auxilia a refletir sobre a clínica), isso tudo é devido ao encontro com a surpreendente lição que ouvi de um guardador de carros que cruzou meu caminho.

Vejamos então como as questões se articulam.

Já há algum tempo que discutimos em sala os principais pensadores da Filosofia do século XIX e seu papel para repensarmos a clínica. 

Já passamos por Wittgenstein e hoje foi a vez de Nietzsche, na verdade, em outras aulas pudemos compreender melhor a linha de pensamento do filósofo, mas é a atividade de seminário que torna possível e palpável a relação entre Filosofia e Clínica. 

Claro que Nietzsche é um mundo e eu não tenho a pretensão de aprofundar aqui uma crítica sobre seu pensamento, minha leitura é pouca,  isso eu deixo para os filósofos e para os entendedores especialistas, comentadores de sua obra. 

Mas há um ponto discutido hoje que me chama atenção entre tantos outros: a ideia de que Nietzsche não fora um filósofo do trágico, mas sim, um filósofo trágico, a ideia da tragédia perpassa sua obra e nos permite uma aproximação com a clínica e, claro, a meu ver, possibilita uma grata ressonância na clínica psicanalítica.

Em um texto interessante chamado "Nietzsche e o trágico: abertura para a valorização da diferença", eu li que ele tinha certa adoração por duas figuras: Wagner e Schopenhauer, apesar de romper com algumas ideias desses ídolos posteriormente, os dois nomes foram fundamentais para o pensamento nietzscheano e merecem menção. 


A tragédia, para Nietzsche, é a própria condição da existência humana, a dialética Apolínea e Dionisíaca nos torna, para sempre, seres em conflito entre o não preocupar-se e o entregar-se à vida, entre a ordem e o caos, e deste, há que nascer uma esperança. 


Somos sempre seres apolíneos e dionisíacos e a tragédia consiste, segundo o texto citado, em aceitar a vida, o destino, em dizer um "sonoro sim à vida" ( Magalhães e Di Matteo, 2010), o que implica recebê-la com o que ela tem de dor e beleza. Isso é ser trágico para Nietzsche.

Essa aceitação da existência trágica me faz retornar ao texto de Melman citado aqui no início, sobretudo quando o autor sustenta a ideia de que a terra do sujeito do inconsciente é o exílio, é disso que se trata em Psicanálise e é isto que me faz pensar na estreita relação entre tragédia, em aceitar a vida em sua dor e em sua delícia ( me lembrei de Caetano) e exílio, este como pátria do sujeito inconsciente que, se não ignora o cogito cartesiano, não lhe reconhece como salvador da pátria.

O que quero dizer é que, diante de todos os ensinamentos de Nietzsche dos quais não me julgo sabedora, essa noção de tragédia e da oposição entre apolíneos e dionisíacos, eu vejo o interesse maior da Psicanálise, qual seja, o entendimento de que há apenas um lugar para o alojamento do sujeito do inconsciente,e esse não é o cogito, não é a razão absoluta, não é Ciência, não é Deus, o sujeito do inconsciente é ateu e cético, eu suponho. 

O desamparo é a prova da tragédia existencial da qual Nietzsche fala, e contra isso, contra a condição de desamparo, pouco se pode fazer. 

O desamparo, agora podemos dizer, lança luz sobre essa intrincada tragédia que construímos em nossa existência ( ex-sistência, nos adverte Lacan). 

Sendo assim, somos trágicos, pequeninos seres desamparados que , desiludidos com a Ciência e com a Religião - e nisso há sempre a lembrança de Nietzsche - não temos outra alternativa a não ser habitar o desamparo, mas, então, como fazê-lo?

Como dizer um sim sonoro à vida, como abraçar esse exílio?

Nesse ponto chegamos ao conceito de amor fati de Nietzsche, ou o amor ao destino, a vivência plena entre os pontos que estão em constante tensão, entre Apolo e Dionísio, o amor fati é poesia pura, e acho que é disso que se trata em Psicanálise.

Aqui volto à Melman quando este diz que na Psicanálise não se trata de remédio, pois não há o que se admnistrar. Aí a Psicanálise se distancia da Psicoterapia e das técnicas denominadas auto-ajuda.

Não há o que se administrar, não há fármaco capaz de dissolver a tragédia, não há polo vencedor na querrela inconsciente. Mas isso não significa que não há o que se fazer, aí há o amor fati.

Desse jeito, penso que reinventar a clínica e ser psicanalista é se lançar nessa labuta diária que é viver a tragédia sem por isso ser aplacado pelo desamparo, pela própria guerra.

Fazer Psicanálise, arriscaria, é a arte do bem viver no exílio, é a arte de viver na corda bamba, e o que a torna arte é a noção de entregar-se à vida, ao amor fati, que implica também se responsabilizar por suas escolhas, é se implicar na própria tragédia.

O amor fati é assumir-se, é decorar o exílio com as cores mais bonitas e sabê-lo intransponível, é assumir-se e não depender de Deus, ou de Outro qualquer que retire o lugar de responsável pela própria tragédia.

Assim, entrar em análise é uma das coisas mais corajosas a que alguém pode se submeter, pois é lançar-se ao eterno e implacável Acheronte, e nossa arma sempre será o amor fati, o dizer sim, o que não é fácil e o que exige algo do que Nietzsche nos fala: dizer sim à vida exige liberdade, talvez a liberdade que o movimento niilista propõe.

Portanto, a liberdade seria o motor da tragédia, a liberdade seria o que estaria além do bem e do mal, o pleno trânsito do sujeito do inconsciente se dá por causa da liberdade, livre do cogito, longe dos grilhões morais, seria liberdade perante a religião, liberdade perante Deus.

Isso são apenas pensamentos que me acompanham desde quando comecei a compreender melhor Nietzsche. Aqui não tenho intenção de interpretá-lo com Freud, ou "usando" Freud. 

Cabe dizer que o ano em que Niezsche morre é o ano de lançamento da Traumdeutung, há algumas menções ao filósofo alemão na obra do pai da Psicanálise, o resto a gente associa por interesse e conta própria e nisso, repito, não assumo o lugar  do sujeito suposto saber, só me interesso em aproximar mentes tão pertinentes para sua época e para a contemporaneidade.

Eu fiquei um bom tempo tentando achar a linha certa para costurar esses argumentos, a linha correta para iniciar o trançado desse texto trágico, e, por sorte, o acaso me encontrou e eis que surge a personagem fundamental e a quem eu devo esse texto e os insights que o costuram: o guardador de carros que eu vi na rua. 

Eu vinha atravessando a rua da faculdade, eu e minhas interrogações, estas sempre a minha frente, driblando os carros faceiramente, eu ia com mais calma e medo, passadas leves até ouvir o inesperado do tal homem que guardava os carros na esquina. 

Ao atravessar a rua, eu ouvi fragmentos de uma conversa quase inaudível, eram trechos soltos, mas o que ficou foi isso que ressoa em meus ouvidos até agora, disse ele para alguém, e eu não sei bem o contexto, mas ele disse bem assim: 

"Solto ele já é, vamo deixar ele livre"

Era o que me faltava para entender Nietzsche, obrigada, moço que eu não conheço, isso me faz perceber tão claramente a ideia de amor fati, a ideia do próprio exílio. 

Soltos no mundo, desamparados todos somos, mas, sermos livres, eis o desafio, tanto para a filosofia trágica, como para a clínica psicanalítica.

Não seria essa a proposta essencial do niilismo? Seria o guardador de carro um niilista por vocação e devoção?

Agora me sinto em condições  para recorrer à Melman pela última vez, e ouso complementar a frase que abre esse texto:

"O filósofo não sabe nada do mundo, mas o guardador de carros da rua, este sabe".

Agora tudo se costura. Agora um alívio - temporário - para os percalços do exílio.