quarta-feira, outubro 28, 2009

A descoberta do mundo ou a descoberta de Clarice



"Sou tão misteriosa que não me entendo"


Clarice Lispector




Uma vez me falaram algo de que nunca me esqueci: Ler Clarice não é fácil, ler Clarice é angustiante. Eu, acreditando piamente das palavras de quem não parecia mentir, assumi então que era medrosa o suficiente para jamais, sob hipótese alguma, dar com os olhos em linhas assinadas por Clarice Lispector.


Acontece que, por esses mistérios que a vida prega, e , obviamente, seguindo o meu caminho, não pude evitar, um dia, ler Clarice. Mas, vejam bem: não comecei como todos, ainda não li um livro seu, romances, conheço Macabéa apenas do cinema e por ela nutro, em segredo, uma certa amizade, também não sei de onde isto veio, mas veio, e pareço me compadecer de Macabéa, mesmo sabendo dela apenas o que um livro didático de literatura me permitiu saber.


O caminho foi sendo feito até eu chegar nas Crônicas de Clarice; primeiro, "Clarice só para mulheres", dizia respeito às crônicas escritas para jornais brasileiros sob pseudônimos, feitas para divertir e informar as donas-de-casa, ciosas do dever do lar, ocupadas pelos cuidados maternos e envolvidas pelas obrigações conjugais. O livro é interessante e pude ver uma Clarice outra; lê-la, neste momento, não foi nada angustiante, sequer senti uma mísera fagulha de desespero, dor ou desolação; ler esta Clarice me fez entender um pouco mais de ser mulher, me fez saber segredos culinários, estéticos, enfim, nada que lembrasse dor me veio através da pluma de Clarice, talvez, porque com ela compartilhei algo que seria restrito à condição feminina: era isto, eu era mulher, Clarice era mulher, o livro era só para mulheres.


Acontece que nem tudo são rosas silvestres nesta descoberta. Descubro eu mesma outras crônicas, várias, escritas no período que vai de 1968 a 1973, em que vejo uma outra Clarice, uma Clarice, digamos assim, nem sempre leve, nem sempre didática, nem sempre só para mulheres, mas , prioritariamente, essencialmente mulher.


Acredito eu, agora, que Clarice é mais mulher neste, quando assina com seu nome e não mais sob pseudônimos, as crônicas nem sempre saborosas, nem sempre apetitosas, nem sempre feitas para a boa mulher do século XX.


A descoberta do mundo ( 1999, editora Rocco), me apresentou a Clarice de que alguns já falavam; a Clarice angustiada, triste e de uma tristeza ininteligível. Clarice, em suas crônicas, revela mais de si do que poderia supor o inocente leitor de "Clarice só para mulheres". Em crônicas como "Pertencer", " Ideal Burguês" e "Ritual", percebe-se o tom nem sempre fácil com que Clarice nos leva pela mão, ela, que a mim parece ter vivido como um ser acuado, com medo da própria existência e dos segredos que ela mesma gostava de ostentar.


Não, estavam certos os outros, Clarice não é fácil, tampouco agradável em todos os momentos; confesso que o prazer que retiro da leitura é originada justamente desta esperteza, dessa compreensão aguda que a autora possui da natureza humana, e não estou eu aqui falando mais uma vez de feminices. Clarice mesmo disse que não éramos seres segregados, tão diferentes dos outros. No entanto, o que percebo é que Clarice se mostrou muito mais mulher do que no outro livro que li, o outro, também interessantíssimo , me revelava a máscara social que eu, você e todas nós usamos; aqui e ali podemos notar uma pista de que há algo por trás de máscaras sociais feitas de pepino; algo além de bacias de sal grosso para pés cansados.


Este algo mais eu vi em A descoberta do Mundo. Ora, não seria diferente, e eu agora posso pensar, não seria nada cômodo, tampouco apaziguante, descobrir o mundo, posto que feito de lamentações, de perdas e de solidão. Solidão tão bem expressada na escrita sofrida e desejosa de companhia de Clarice Lispector.


Eu aceitei ser sua companhia, acredito que era isso que ela buscava, uma alma capaz de entendê-la, uns olhos para lê-la e que, com isso, dessem sentido a sua vida, tão arduamente vivida, aguentada. Eu emprestei meus olhos à leitura, mesmo contrariando meus primeiros ímpetos de não adentrar em um universo angustiante, aceitei o desafio: Ler Clarice não é fácil e seu constante apelo à companhia, à cumplicidade, me faz uma espécie de leitor-testemunha, o que nem sempre, ou quase nunca, é reconfortante.


Descobrir o mundo não é fácil. A leitura, esta ainda não acabou, posto que o mundo é vasto e o de Clarice me parece sem fim. No entanto, sigo, agora não mais ouvindo da boca dos outros o quão difícil é Clarice, mas sabendo de mim mesma que não, não é tarefa fácil esta que aceitei ao adquirir o livro, mas, justamente por isso, não canso de empreendê-la.


No fim de tudo ainda não acabei de descobrir o mundo e, caso um dia o faça, será uma decepção para mim.