sexta-feira, dezembro 17, 2010

Woody Allen e a humanidade sem plumas



"A beleza está em quem vê. Se quem vê for míope ou estrábico deve perguntar à pessoa ao lado qual é a garota mais bonita"


Woody Allen


Ao se deparar com esta frase, o atento leitor poderia já adivinhar a autoria: Woody Allen. Ele é desses autores que já fazem parte do imaginário popular. Não conto as vezes em que Woody apareceu aqui neste modesto blog, seja devido às sensações de estranhamento, seja devido às perolas como estas, presente em seu pequeno livro, editado no Brasil pela L&PM, em 2008 , Sem Plumas.


Seria pouco dizer que o livro é de fácil e agradável digestão: lê-se em menos de duas horas, nas quais o leitor poderá , além de ler, que é seu ofício nato, rir, que é algo que somente os autores talentosos podem causar. São 17 historietas com títulos bastante sugestivos, tais como: Examinando excertos psíquicos, Os Pergaminhos, O gênio irlandês e para mim , a mais genial de todas: Se os impressionistas tivessem sido dentistas.


Sem Plumas seria um modo de desdizer Emily Dickinson que uma vez afirmou: "a esperança é uma coisa com plumas". No mais puro estilo Allen de ser, o autor americano fascinado por jazz e por teoria psicanalítica - não necessariamente nesta ordem - parece nos dizer que seus escritos são relatos desesperançosos diante dos lugares comuns mais desejados pela humanidade: felicidade, amor, sorte, saúde.


Claro que o leitor atento perceberá que é na desesperança que Allen encontra seu gênio: Auto de frases como " Morrer é uma das poucas coisas que se pode fazer deitado", sendo da opinião de que o Além existe, o problema seria saber a quantos quilômetros fica do centro da cidade e até que horas fica aberto, Allen nos revela a mesma veia cômica que faz sucesso em seus filmes, exemplo disto são "Melinda & Melinda", "Maridos e Esposas", "Vicky, Cristina , Barcelona" , e o mais recente "Tudo pode dar certo" que, apesar do péssimo título em português vem ressaltar exatamente a noção de que, na impossibilidade da felicidade eterna, deveríamos nos contentar com qualquer coisa que dê certo.


Esta ideia aparece e reaparece na obra de Allen, se fosse eu Zizëk, comentado no post passaado, diria que a desesperança, o fato do homem ser ontologicamente sem plumas seria o sinthoma de Woody Allen, esse jeito irreverente e irônico de rir de si mesmo ao trazer suas neuroses para a tela e para qualquer outro meio em que se expresse transforma o diretor de O que você sempre quis saber sobre sexo mas tinha vergonha de perguntar num dos maiores nomes da desesperança de que se tem notícia atualmente.


O primeiro deles? Acho que não erraria se falasse que foi Freud: Se houve alguém que começou com essa história de denunciar nossa ausência de penas, este alguém foi o psicanalista de Viena, Allen foi apenas o carona. Vejamos alguns dos tipos e das situações sem plumas exploradas por Allen :

1- A jovem pseudo-intelectual:


" Família grã-fina de Nova Iorque. Passava as férias com o pessoal da esquerda festiva. Podia ser vista em todas as sessões dos cinemas de arte. Viciada em escrever ' É isso aí!' nas margens dos livros de Kant" (ALLEN, 2008, p.45)


2- A prostituta intelectual:


" O quente custava 300 dólares: uma recém-formada em psicologia fingiria apanhar [ o cliente ] no Museu de Arte Moderna, envolver-se-ia com [ele] numa discussão sobre o conceito freudiano da mulher, deixá-lo-ia ler a sua tese de mestrado e até encenaria um suicídio" (ALLEN, op cit. p.47)


3 - O problema filosófico original:


" Se uma árvore tomba na floresta e não há ninguém por perto para ouvi-la cair - como sabemos que fez barulho?" (ALLEN, op. cit. p. 121)


4 - Sobre a diferença entre amor e admiração:


" É evidente que ser amado é diferente de ser admirado, já que sempre se pode ser admirado a distância - enquanto, para se amar de verdade uma pessoa, é preciso estar no mesmo quarto com ela e, de preferência, enrolado atrás das cortinas" (ALLEN, op. cit. p. 94)


5 - Sobre o dinheiro:


" O dinheiro não é tudo, mas é melhor do que ter saúde. Afinal, não se pode entrar num açougue, pedir um quilo de alcatra e dizer ao açougueiro: 'Olhe como estou bronzeado. Vendendo saúde!Nunca fico gripado!' e esperar que ele lhe entregue a carne" ( ALLEN, op cit. p. 93)


Como estes existem tantos outros espalhados, como que impregnando a obra deste homem que, senão nos conta nada inédito, ao menos nos ensina a rir das nossas próprias mazelas. Sim, somos humanos, passíveis de erros, interesseiros, frugais , fúteis e essencialmente desamparados, sem plumas que somos. Recomendo fortemente.




"

sábado, dezembro 11, 2010

Zizëk, Hitchcock e corpos que caem



Quem não conhece os filmes de Hitchcock não sabe o que está perdendo. Acredito, no entanto, que não estejamos falando da maioria das pessoas que aprecia a sétima arte. Em seu livro Lacrimae Rerum (Boitempo, 2009), o filósofo pop esloveno Slavoj Zizëk nos apresenta seus ensaios sobre cinema moderno, que, inclusive é o subtítulo deste seu livro lançado há dois anos.


É neste livro que Zizëk faz suas reflexões e nos oferece seus originais insights sobre aquela que seria a arte da qual Freud menos se aproximou, mas que , nem por isso escapa de ser analisada por um viés psicanalítico. Zizëk, especificamente em seu ensaio denominado "Alfred Hitchcock ou Haverá uma maneira certa de fazer o remake de um filme?", inicia suas pontuações sustentando que não seria de seu interesse empreender nenhum tipo de idolatria a qual o levaria pela mão e guiaria seus pensamentos a respeito de Alfred Hitchcock, por muitos considerado o pai do cinema de suspense.


Nas palavras de Zizëk: " é preciso evitar aqui o discurso carregado de jargões sobre o toque único de Hitchcock, e coisas do gênero, e abordar a difícil tarefa de especificar o que confere a seus filmes um caráter singular". (ZIZEK, 2009, p.79)


Ou seja, não há necessidade de rasgação de seda, o importante é falar o motivo pelo qual Hitchcock é considerado brilhante e seu cinema, único. É por esta via que Zizëk nos guia. Sendo assim, o escritor esloveno fala que qualquer tentativa, por mais pretensiosa que for, de "explicar Hitchcock" tenderá a assemelhar-se a uma coisa do tipo "Hitchcock made easy", ou , um Hitchcock envernizado, quase "de A a Z", feito para quem não precisa entender tanto de cinema e que tem uma necessidade extrema de padronizar o que vê.


Em seu ensaio sobre a obra de Hitchcock, Zizëk fala sobre o traço perverso presente na Marion, a primeira hóspede do lendário Motel Bates, que a liga a seu assassino Norman. Há inclusive uma semelhança entre os nomes, o que não se pode deixar de observar ( mas esta é por minha conta, não por Zizëk, me atrevi).


Sobre os traços gerais presentes na obra de Hitchcock, Zizëk nos fala do que chama "motivos visuais impostos por uma estranha compulsão" (ZIZEK, 2009, p.82). Seriam eles, pessoas se agarrando à mão de outra, na iminência de cair, sendo necessário que haja alguém para levá-la ao plano da superfície/realidade ( não se esqueçam da emblemática cena de Um corpo que cai, em que James Stewart, Scottie, aparece necessitando de apoio de alguém para sobreviver a uma possível queda).


Outro motivo visual compulsivo em Hitchcock seria a imagem do carro à beira do precipício, prenunciando, mais uma vez, a possibilidade de queda iminente, o que podemos, mais uma vez sem auxílio do esloveno, associar ao temor ao abandono do corpo deixado à mercê das leis da gravidade. Assim, um carro à beira do abismo cumpre a mesma função da mão que pode tanto agarrar a mão do mocinho, como soltá-la, deixando, mais uma vez, seu corpo em abandono, um corpo em queda.


Zizëk também faz alusão à imagem da mulher inteligente, porém sem muitos atrativos físicos que faria o papel da companheira de aventuras do herói - quem não lembra da amiga de James Stewart, Midge, vivida pela atriz Barbara Bel Geddes em Um corpo que cai? Há, entre estes motivos visuais a imagem quase obssessiva do crânio mumificado, tal como vemos em Psicose, representando a morte assustadora, como na cena em que vemos a terrível imagem de Norma Bates, mãe de Norman, no porão da casa lúgubre em que a personagem do assassino vive parte de sua vida.


Zizëk, inclusive, faz uma análise freudiana dos espaços geométricos pelos quais a personagem de Norman Bates transita, relacionando-os às esferas psíquicas idealizadas por Freud e que hoje já caíram no gosto popular: o id, o ego e o superego, sendo o porão, portanto, o lugar dos impulsos, dos conteúdos obscuros que não devem sair à luz do dia. Ora, não seria também o id o lugar conhecido como porão da mente, aonde guardamos todas as quinquilharias das quais não queremos mais saber?


Para quem se interessar por esta análise de Psicose, poderá também assistir o filme O guia pervertido de Cinema, em que também Zizëk aparece como astro principal, aparecendo em cenários usados em filmes, como a baía em que se passa Pássaros, também de Hitchcock, entre outros que marcaram os filmes considerados obras-primas, não somente da autoria do cineasta americano.


Sem dúvida há tantas outras peculiaridades em Hitchcock que não caberia aqui, tampouco caberia no ensaio de Zizëk, pois percebemos que o autor, a partir de seus insights, nos fornece a possibilidade de tantos outros. Porém, a ideia principal que fica deste ensaio é que os motivos visuais usados na obra do cineasta americano podem ser considerados sinthoma, diferente do sintoma, algo que resiste à significação, são signos materiais que indicariam as vias pelas quais o cineasta constrói suas histórias, deixando amostra seu fantasma, ou seja, tudo aquilo com o que não pode lidar, e que insiste em aparecer, seja na imagem do crânio fossilizado, seja no carro à beira do abismo, na mulher inteligente, nas sombras que se transformam em silhuetas humanas, tudo conferindo o mais alto grau de suspense à película.


Depois de tudo isso, talvez possamos rasgar seda, idealizar tanto Hitchcock como o próprio Zizëk, no entanto, cabe um conselho de prudência: acalma-te!Assiste um Hitchcock, mas já com outros olhos, e tira tuas próprias conclusões.


segunda-feira, novembro 22, 2010

O estranho caso das toupeiras: identificação ou ignorância?



Machado de Assis já a definiu como um certo movimento de canto da boca, utilizado por algum cínico. Em geral, nós utilizamos a ironia como uma forma quase bem humorada para demonstrarmos nossas reais opiniões diante de um determinado objeto/pessoa/evento. A ironia, por si só, revela um sujeito que lança mão de linguagem oposta ao que realmente gostaria de dizer. Exemplo: "Mas está tão boa esta peça de teatro!". Ao analisar esta simples frase, podemos observar que a frase, por seu tom, exageradamente positivo quando pronunciada, revela, na verdade, a oposição com a experiência de fato vivenciada, a qual seria : "Não estou suportanto esta peça de teatro".


Muitas vezes não estamos atentos a ela, mas ironia está nas esquinas, nas margens, à espera de alguém que tenha coragem o suficiente para utilizá-la. A ironia, se uma pessoa fosse, seria elegante, porém de uma elegância nada óbvia, seria bela, mas não daquelas belezas plastificadas à moda Hollywoodiana, mas uma beleza reservada, bela, quase feia, mas, que ao de perto, poderíamos constatar todo seu esplendor.


Muitas vezes, neste mesmo blog, procuro me utilizar deste recurso estilístico para enfatizar opiniões que tenho a respeito de um determinado evento/objeto/pessoa. Como a Psicanálise bem nos explica, há desejos que não nos convém realizar, o mesmo podemos dizer de ações. Há ações que, se realizadas, provocariam consequencias desagradáveis.


Foi para criticar, sublimar uma situação difícil que escrevi "A perversão e o reino das toupeiras". Um texto inocente, banhado pela saliva da ironia, esta que, marginal que é, logo viu em mim um palco para se exibir. Poderia eu dizer que a ironia me escolheu e foi assim que pensei em sujeitos rasteiros que têm entre seus passatempos se utilizar do mérito alheio visando objetivos individuais. Em suma, as toupeiras , mesmo não enxergando muito bem, não deixam de se aproveitar das qualidades alheias.


O interessante é que, estava falando de pessoas em especial nas quais noto estas características tão "touperísticas"e que, ao fazer uso da ironia, não me é necessário aqui citar nomes, idades, profissões e ameaças, agressões verbais. O que me interessou foi usar , de fato, a ironia, para falar de algo em que acredito. Em poucas palavras: não preciso agredir ninguém, magoar ninguém, somente usar ironia e ter criatividade para imaginar um animal, por suas características particulares, semelhante a este tipo de pessoa a qual, de fato, eu gostaria de me referir. Simples assim, todos nós podemos fazer isso, e fazemos, vez por outra.

Engraçado foi que , neste mês de novembro, recebi dois comentários inesperados a respeito desse texto. Um deles , vindo provavelmente de uma toupeira, disse identificar-se. Em suas próprias palavras:"interessante , de repente me identifiquei": Toupeiras do mundo todo, uni-vos, foi isso que imaginei. Certamente meu texto atingiu esta pessoa em cheio e fê-la ver que, de fato, age e se comporta como uma toupeira, tal como a descrevi. A esta desejo que o texto sirva como aprendizado, que deixe de ser toupeira, uma vez reconhecendo-se nesta, mas, acho difícil, neste caso.


O outro comentário sobre o texto das toupeiras, recebi hoje. Alguém certamente também tocado pelo nobre caráter da toupeira aqui relacionado, resolveu romper com o silêncio, escrevendo-me palavras de baixo calão, advertendo-me, inclusive sobre o absurdo de minhas palavras diante de um mundo tão devastado, diante de tantos apelos que recebemos diariramente sobre atitudes ecologicamente corretas.


Esta pessoa considero, sem meias palavras ou uso da ironia, um imbecil ecologicamente correto. É isto. A pessoa, além de não entender o uso da ironia presente no texto, ainda me criticou, ferrenhamente, sobre o absurdo em dizer que as toupeiras deveriam estar apenas em livros de fotos, como animais extintos.


Certamente, o(a) imbecil ecologicamente correto acolhe animaizinhos em situação de risco, adota papagaios mancos e toupeiras manetas. Deve ser daqueles que usa ecobags mas não sabem a diferenciação entre ficção e realidade, e melhor, entre ironia e seriedade. Não percebe que tão ecologicamente correto como acolher animaizinhos e cuidar do planeta, é tratar o próximo com hombridade e respeito.
A esta toupeira ecologicamente correta, meus pêsames, não posso receitar e se pudesse, não haveria remédio algum, senão educação, para lhe indicar diante de tanta demonstração de ignorância. Aconselho, se conselho algum couber, que releia o texto e tente, ao menos tente, observar a ironia nas entrelinhas, e nas linhas mesmo, porque nunca a disfarcei.


Mas, caso nada disso seja o suficiente. Digo: Não, não desejo a morte, a extinção, o extermínio, o sacrifício destes animaizinhos tão meigos e doces como as toupeiras, não, o que desejo é a extinção da outra toupeira, da toupeira-sacana, que se alimenta do sangue e do suor dos outros. Identifica-se também?


Chego à conclusão que o blog não é tão inabitado assim, e se, alguém se doeu com o extermínio das toupeiras-sacanas, ou é ignorante ou faz parte deste grupo de seres humanos que insiste em utilizar atitudes-toupeiras diante das pessoas. Ignorância ou identificação? Descubra você, a mim , diante disto, só tive mais oportunidade de zombar e de usar a boa e velha ironia para falar dos comentários recebidos, não farei isso sempre, porque seria perder tempo, tempo o qual nem sempre tenho para isso, mas valeu por ter rendido mais uma oportunidade para ser irônica.


A estes, meus sinceros e devotados agradecimentos.

sábado, novembro 13, 2010

Encontros com a Poesia de Osvaldo Chaves



Era para ser apenas mais um poema, algo do qual poderia falar, me debruçando sobre o tema que tanto me interessa , o tema da interface Psicanálise-Literatura. Quando me foi feito o convite, no início deste ano, para participar da coletânea Encontros com a poesia de Osvaldo Chaves (Edições Bagaço, 2010), me senti inicialmente impactada: Como seria escrever sobre um poeta que não conheço? Como seria escrever um capítulo de livro?


De fato, isso assustava, mas confesso que, a despeito do primeiro amedrontamento, veio a curiosidade de conhecer a obra de Osvaldo Chaves, padre e poeta cearense que, infelizmente, não tem sua obra reconhecida no restante do país.


Organizado pelas professoras Jerzuí Mendes Tôrres e Maria Heloísa Melo de Morais, Encontros com a Poesia de Osvaldo Chaves, é uma coletânea que contou com a colaboração de oito críticos literários que disseram sim ao delicioso convite de se debruçarem sobre a obra Exíguas (2008), coletânea em que Chaves reune poemas com as mais variadas temáticas, escritos em diversos períodos da vida do poeta.
É interessante ressaltar que o lançamento de Encontros com a poesia de Osvaldo Chaves cumpre com a função de disseminar o conhecimento sobre a obra de um poeta tão consistente como padre Osvaldo Chaves, mas que, devido à dificuldade de publicação tão típica do nosso país, não pôde ser conhecido por outras pessoas fora do Ceará

Como participante desta iniciativa de Jerzuí e Heloísa, agradeço o convite e agradeço, especialmente, a oportunidade de ter conhecido um sítio tão singelo, tão vivo e tocante, como o Angelim. O poema Angelim Intacto, obra que me escolheu, hoje faz parte dos seletos poemas que guardo com carinho, porque algo me acrescentaram. Sobre esse algo, não sei dizer o quê, mas sei que o sítio me tocou, me escolheu e por isso, agora, também é meu.


O poema, como todo poema, não requer explicação. Mas, se alguma cabe, digo que o poeta, em Angelim Intacto, convida o leitor a conhecer o sítio de sua infância. Em sua essência de poeta, Osvaldo Chaves nos guia pela mão , por entre os cômodos, as escadas, os alpendres e os pés de jabuticaba lá do Angelim que resistiu às secas e a todas as intempéries da natureza, para permanecer vivo, intacto, na memória de poeta que, em cada estrofe, nos convida a sentir a atmosfera, os aromas, tudo que rodeia a sua infância, jamais perdida, porque transformada em arte.

Segue abaixo um trecho deste poema tão comovente, que tanto me mobilizou. O angelim, surpreendentemente, tornou-se meu, porque o senti, porque o escutei, porque o testemunhei, em minha memória, através do dom da poesia:



Nem tudo morre, muita coisa fica

Intacta:

o aroma, o gosto, o som, a imagem e o contato

são a alma imortal das coisas transitórias.


Depois de morto o olfato,

É vida, na memória, o aroma das coisas

Apagada a visão,

É vida a imagem, o relevo e a cor

Morta a audição, ficam vivos os sons


Gravados

Nos microssulcos do íntimo do espírito

terça-feira, novembro 09, 2010

Meus quatro segundos com Jean-Pierre Lebrun



Se você tivesse a sua disposição 4 segundos de frente com seu ídolo, como usaria estes momentos de maneira proveitosa de modo que jamais se arrependesse destes momentos infinitos, duradouros, eternos?

Pois bem, a história seria quase essa, senão fossem os detalhes que a diferem de qualquer outra mostrada em algum programa de televisão. Tudo aconteceu no XXXIX Encontro Anual do Centro de Estudos Freudianos do Recife - CEF/Recife. O palestrante-estrela-da-vez era Jean-Pierre Lebrun, psicanalista belga, autor de O mundo sem limites, A perversão comum, O futuro do ódio, entre outros.

Lebrun é sumidade no que tange à Psicanálise contemporânea, tendo escrito em dupla com Melman O homem sem gravidade, o psicanalista belga é firme em suas considerações, simpático em sua postura e articulado no que pretende expor. Em seu curso sobre "Os estados-limite" defende que o psicanalista de hoje deve começar a considerar estes estados não como uma quarta estrutura, após as conhecidas: Neurose/Psicose/Perversão. Lebrun vai além em sua exposição, relembrando aos desavisados e aos resistentes que o inconsciente é social, que não se concebe um trabalho de humanização, de psicanálise que prescinda do entendimento das realidades sociais e, como se não bastasse, ainda faz menção a certas instituições psicanalíticas que funcionam nos moldes de instituições religiosas.

Lebrun é resoluto ao dizer que a cada novo paciente o analista se depara com a urgente necessidade de reinventar sua clínica, de atualizar o que chama de recursos de "navegação psicanalítica" para que sejamos - e aqui me coloco no lugar do psicanalista, por pura pretensão - ainda úteis nesta sociedade contemporânea.

Tudo caminhava para a perfeição. Lebrun falava diante de um público sedento de conhecimento sem pestanejar, sem beber um gole d´água, simpática e pacientemente aguardando que sua fala fosse traduzida para o bom e velho português , língua-mãe daqueles que povoavam a plateia do evento e que, por uma infelicidade, não poderiam ter acesso á Lebrun em francês.

Eu lá estava, agora chegou a hora de me situar nesta historieta: estava na primeira fila, do primeiro dia de curso, busquei com unhas e dentes agarrar-me àquela fila inaugural como se dali pudesse captar melhor o conhecimento que Lebrun fazia transbordar em meus ouvidos. Não raramente podia me dar conta do feito que era, para mim, uma psicóloga que sempre quis mesmo ser psicanalista, estar ali, diante daquele homem que parecia tudo saber: haja suposto-saber nisso tudo.

Somente em estar ali e poder dividir com Lebrun, a poucos metros de mim, a mesma cota de oxigênio já era honra o suficiente para me encher de orgulho e preencher um ano inteiro de aulas na Universidade. Acontece que , tal como nos ensina a Psicanálise, dá-se o unheimlich, o desconhecido, o estranho motivador deste pequeno relato sem pretensão: Estou eu, em minhas idas e vindas de elevador, buscando ou trazendo alguma coisa, num determinado momento em que o curso estava em seu intervalo: Tudo se dá.

Quando estou eu mais preocupada em apertar o botão certo do elevador, me deparo com o unheimlich em pessoa: aquele sujeito branco, com cara de gringo e um jeito um tanto quanto bonachão, jeito de pai ou de vô, diriam outros. Era ele: Jean-Pierre Lebrun, em carne e osso, na mesma viagem, no mesmo elevador, naqueles infinitos 4 segundos que eternizaram o dia 05 de novembro de 2010.
O que dizer em quatro segundos que traduza admiração e respeito? O que poderia eu, que não sei francês, falar àquele homem que é considerado um dos pensadores contemporâneos mais influentes da disciplina da qual venho buscando me inteirar há quase uma década?

É preciso dizer que também houvera antes deste, um outro encontro com Lebrun, também quase particular e que durou cerca de 4 segundos, agora são 8 segundos em que Lebrun se dedicara a mim ou só tivera a mim como pessoa para olhar. Os quatro primeiros aconteceram quando eu , seguindo uma fila imaginária criada por alguém igualmente sedenta, decidi pedir-lhe um autógrafo em meu exemplar de O Mal-estar na subjetivação. Mais uma vez me vi diante do obstáculo da língua: dara um dedo para poder falar , em francês: "Por favor, o senhor poderia me dar a honra de autografar este exemplar?". Somente isto, não precisava de um francês para traduzir um Seminário de Lacan, bastavam essas palavras.

Não o fiz , o máximo que pude fazer foi esboçar um gesto que universalmente pode ser compreendido como: " Escreve aqui?", passando-lhe a caneta a qual Lebrun gentilmente aceitou e, cuidadosamente tratou de entender meu nome. Pronunciou um breve: "Miriam", com todo sotaque que Deus lhe deu e rabiscou com sua letra um tanto quanto ilegível até mesmo para quem sabe francês: " A Miriam , com toda minha simpatia. Jean-Pierre Lebrun, Recife Novembro 2010" ( Claro que contei com a ajuda de uma pessoa que traduziu tanta simpatia que eu julgava ser apenas um estranho "spaghetti, tal a dificuldade no francês e no deciframento da letra).

Ok, como era Lebrun, deixei passar o que raramente perdôo: a falta do famigerado acento no primeiro "i" do meu nome, era a assinatura de Lebrun e isto equivale a um autógrafo de Freud na minha Interpretação dos Sonhos ou mesmo de John Lennon em meu Imagine. Tudo quase igual em importância para mim.

Esta foi a primeira vez que obtive um autógrafo de alguém , em outro evento fiz o que sempre odiei nos outros: pedi para que David Zimmerman tirasse uma foto comigo. Odiei, a foto ficou boa, mas me senti tão tiete que nunca mais repeti o feito e no meu álbum com celebridades psicanalíticas só consta uma foto, e será a única.

Mas voltando ao elevador, senti uma verdadeira necessidade de dizer-lhe tantas coisas, tantas que, naquele exato momento consegui fazer rapidamente uma lista mental do que poderia dizer, perguntar, questionar.

Começaria assim: "Lebrun, Lebrun!Sou sua fã, Adorei o Mundo sem limites, não conheço de fato tanto sua obra, mas me identifiquei tanto com você, com sua luta em dizer que Psicanálise também é social , com sua maneira sutil e firme de demonstrar sua relação de amor e ódio com Melman, sobretudo me identifico com sua posição de 'marginal' no que tange ao que concebe como psicanalítico, longe do centro parisiense, tal como eu me sinto longe do centro acadêmico ...". " Ah, Jean, posso chamá-lo assim?, antes que você fale alguma coisa, quero agradecer, porque eu só tenho a agradecer a oportunidade de ver assim tão de perto um intelectual, assim, como você e simples, simples que nem gente normal!"

Sim , isso seria uma demonstração pura de afeto e admiração, muito confundida com o que poderiam dizer "idolatria", "tietagem". Não pretendia apenas isso.

Claro que eu poderia contar com a possibilidade de o elevador emperrar e que ficássemos alguns minutos, quem sabe horas, quem sabe mesmo um dia inteiro, a espera do socorro, conversando sobre a função paterna, a função patriarcal, o declínio da função paterna, as cores do incesto, as cores do Édipo...seria um verdadeiro arco-íris.

Talvez não durasse tanto, talvez durasse mesmo apenas quatro segundos os quais eu deveria aproveitar inteiramente desabafando o que me assombra há tanto tempo: "Lebrun, Lebrun, por favor, me diga e ensine a este povo que Psicanálise é social, eu estou cansada de dizer, de divulgar, aonde posso vou e falo sobre isso, deixo claro, mas preciso de você ao meu lado para continuar com essa cantiga enfadonha ' o inconsciente é social' , 'somos sociais', 'a linguagem é social', por favor, me ajude, faça essa gente ver!" .

Muitas coisas poderiam ser ditas, mas naquele momento, porque não falo francês, porque não tenho coragem suficiente e porque não havia tempo, substituí todas as minhas dúvidas, minha tietagem, minha admiração por um singelo sorriso, ao qual Lebrun, em sua simpatia quase paterna, me retribuiu. O resto que eu poderia dizer seria invenção, não disse nada, retornei ao meu quarto no qual pude espalhar: "vim com ele no elevador!". O resto seria lenda.

quinta-feira, novembro 04, 2010

terça-feira, novembro 02, 2010

Ana pelos olhos de Otto, Otto pelos olhos de Ana


Uma história de amor e de coincidências. Este é o cerne de Os amantes do Círculo Polar (Julio Medem, Espanha, 1998). Tudo se passa quando o expectador conhece Otto e Ana, duas crianças que têm o rumo de suas vidas afetado por uma série de coincidências intrigantes que ora os afasta, ora os une como se tivesse controle sobre suas vidas.


As coincidências acontecem desde o momento em que Otto, ainda menino, vai buscar uma bola que, por uma dessas coincidências do destino, não foi chutada direito por um amigo, levando-o a conhecer a menina Ana, atormentada pela notícia da morte do pai, e que, oportunamente, imagina que Otto seja seu pai, encarnado no corpo do menino.


Some-se a isso uma boa dose de interferência no destino , o que provocará mais uma sequencia de infinitas coincidências que ligará as vidas de Otto e Ana para sempre. Ao longo do filme testemunhamos o crescimento das duas crianças, a descoberta do amor e do que mais os movia: a busca pela maior coincidência de todas, a coincidência de suas vidas. Era isto que ambas as personagens esperavam.


A narrativa não-linear em que muitas vezes se confudem o Otto menino com o Otto adulto, jovem, a Ana adulta e a Ana menina, parece querer nos mostrar que, durante a vida, somos tudo isso: crianças, adolescentes, jovens, diante de inúmeras coincidências que a vida vai nos pregando ao longo de nossa existência, ela nos convoca inteiros, em todos os nossos devires, criança, jovem, adulto, somos todos um mesmo, de trás para frente, de frente para trás, como bem anunciam os palíndromos que formam os nomes : ANA e OTTO.
Assistimos ao filme tanto através dos olhos de Ana, como pelo ponto de vista de Otto. Os olhos têm um papel importante neste filme, podemos até dizer que estes é que são os verdadeiros protagonistas da película de Medem: "Otto pelos olhos de Ana, Ana pelos olhos de Otto" constrói a perspectiva do próprio espectador diante da história das vidas cruzadas das personagens interpretadas por Fele Martínez ( Má educação) e Najwa Nimri.
Durante o filme entendemos o truque das coincidências que une Ana e Otto, dois palíndromos, nomes que podem ser lidos da esquerda para direita que não mudam seu significado. O que quer dizer estes palíndromos? Ana e Otto são os mesmos, criança, adolescentes e adultos, de trás para frente, os mesmos e da mesma maneira ligados, unidos e sempre, à espera.

Assim é a história dos Amantes do Círculo Polar. O círculo Polar e seu sol da meia noite são a metáfora perfeita para a atemporalidade da vida, um lugar onde o sol não se põe permite que a vida continue, as coincidências continuem a espreitar.


Julio Medem parece ter acertado em traduzir para o cinema toda o mistério da vida e de seus descaminhos, especialmente parece ter encontrado o modo mais belo de dizer-nos que somos esse joguete diante da vida, mas que, nem por isso, deixamos de utilizar o livre arbítrio. Belo, sensível e profundo, assim é os Amantes do Círculo Polar.

sábado, outubro 30, 2010

A vida como ela é...sem tirar nem pôr



Não é com surpresa que vejo o sucesso que A vida como ela é, ( Agir, 2009) perdurar até hoje, mesmo depois do estardalhaço causado em 1997, quando da produção da série exibida no programa Fantástico, com direção de Daniel Filho e roteiro de Euclides Marinho, buscando um retrato fiel daquele Rio de Janeiro dos anos 50, da já citada Rua alegre, das vizinhas invejosas e das mulheres pecadoras que tão bem foram retratados pelo gênio óbvio Nelson Rodrigues.


Esse pretendia ser um post em que se exaltasse o livro da Agir, mas, ao mesmo tempo, me fui apresentada, agora já adulta, a obra que tanto instigava minha curiosidade, naquelas noites de domingo. A vida como ela é saiu em DVD e assim, para quem não conhece o compêndio de crônicas homônimo, fica mais fácil compreender o universo rodrigueano.


A vida como ela é...estejamos nós falando das crônicas ou da série de televisão continua instigante e , principalmente, fiel ao que se propôs: um retrato honesto da vida carioca, suburbana, tão cotidiana, e tão trágica, ao mesmo tempo. Ao tempo em que quase testemunhamos inocentes casais tomando um sorvete na leiteria do bairro de Laranjeiras, também assistimos à pactos de morte, traições, incestos , mortes risíveis como a morte do homem, que, cansado de jantar duas vezes, dividindo-se entre amante e esposa, resolver pôr fim a sua existência com um tiro no peito, porém não o faz sem deixar claro seus motivos: "morro porque cansei de jantar duas vezes", desabafa.


Assim como "Mártir em casa e na rua", nome da crônica em questão, podemos nos surpreender com outras tantas, como a tão famosa Dama do lotação, Terezinha, Delicado. Entre tantas não saberia aqui dizer qual é a mais fiel à vida cotidiana, não saberia também afirmar qual seria a mais exata em retratar a constituição psíquica do sujeito para sempre alienado em seu desejo, que, muitas vezes, não sabendo lidar com os descaminhos deste, acaba passando ao ato - termo psicanalítico que faz referência ao momento em que não é possível outro escoadouro socialmente aceito para deixar as pulsões fluirem: é necessário passar ao ato, porque não se pode fazer outra coisa.


É por isso que A vida como ela é parece tão trágica, tão shakesperiana: é porque o que observarmos é a impossibilidade do sujeito compactuar com seu desejo, este sempre arredio, rebelde, obsceno. Por isso , o sujeito que não aguenta mais a farsa cotidiana de agradar esposa e amante resolve a questão se matando, por isso a noiva saudosa do ex-amante malandro decide por fim à sua vida ateando fogo em suas vestes, é por isso que Euzebiozinho se enforca vestido de noiva.


Exemplos são muitos e eu não farei aqui o papel de estraga-prazeres dizendo o fim de todas as crônica que, inicialmente, faziam parte de um jornal diário o qual todas as pessoas, nos bondes, nas ruas, nos botecos compravam e se deleitavam ao ansiosamente procurar, por entre as páginas de política e policial, a pequena estorieta do dia, aquela a qual sempre seria surpreendente, porque demasiadamente humana.


A vida como ela é pode ser analisada e entendida como um excelente modo de investigação do psiquismo e de todas as mazelas que nos marcam, desde que entramos de sola neste mundo. Recomendo fortemente tanto a série televisiva como a reunião de crônicas publicada pela editora Agir.

segunda-feira, outubro 18, 2010

As memórias de um gênio óbvio



“ Não há ninguém, vivo ou morto, que não tenha concebido a sua fantasia homicida. O melhor de nós já pensou em matar e já se imaginou matando, etc, etc (Aliás, envergonha-me estar aqui proclamando o óbvio)”.

Nelson Rodrigues

A um desavisado, certamente esta frase soaria como de mau gosto, típica de um escritor medíocre que não cansava de falar sobre anomalias, aberrações, coisas que acometem os anormais. No entanto, para os avisados e amantes da obra de Nelson Rodrigues, nada mais óbvio, de fato, do que a afirmação do autor: as pessoas trazem, dentro de si, todas as mazelas psicológicas que poderiam contribuir para a venda de qualquer noticiário policial, por mais sensacionalista que fosse.

Assim foi a vida de Nelson Rodrigues, e ele não poderia falar do que não conheceu. Em Memórias e A menina sem estrela (Agir, 2009), viramos testemunhas das inúmeras situações que chamaram atenção desse mestre da literatura e do teatro nacional. Somos catapultados para o contexto sócio-cultural que viu nascer o jornalista Nelson, filho de uma família de jornalistas e que adquiriu, por força do hábito e da vida, um certo gosto pelo que lia e escrevia nos noticiários policiais: pactos de morte entre amantes, suicídios, assassinatos e traições, sobretudo a traição feminina eram os grandes interesses do então jornalista policial que gostava de acrescentar, aqui e ali, um tom dramático, poético até, nas mortes diárias que noticia.

Ao ler Memórias, certamente compramos um bilhete de viagem de volta para o século XX, conhecemos o famoso carnaval de 1919 do qual Nelson fala com riqueza ímpar de detalhes, o que faz qualquer leitor subitamente descobrir uma serpentina nos próprios cabelos. Também viajamos rumo às origens do teatro nacional, conhecemos as polêmicas em torno do Teatro Municipal, do disse-me-disse que marcava a recepção da obra de Nelson em todos os setores da vida social carioca que costumava atrair-se por todo o sangue e adultérios mostrados pela obra do autor pernambucano que adotou o Rio de Janeiro como cidade natal.

Marcado desde o nascimento pela estrela de tarado ( vale a pena conhecer o fato que já anunciava a má reputação de Nelson quando adulto: aos quatro anos, Nelsinho teria sido proibido de visitar a casa de uma vizinha, mãe de uma menininha que deveria ter a mesma idade dele. De acordo com as palavras da atônita vizinha à mãe de Nelson: "Todos os seus filhos podem vir a minha casa, exceto Nelsinho").

O que se seguiu foi mesmo a confirmação da advertência da vizinha: Nelsinho cresceu e continuou sendo considerado persona non grata no teatro brasileiro, na própria literatura para a qual tanto contribuiu, pois foi, em vida, um dos maiores desafetos de muitos grandes nomes da mesma, enfim, alguém a ser banido, extirpado do convívio social, pois sua obra exalava um cheiro de lama e miséria, estas tão expulsas, desde sempre, das sociedades civilizadas - Nelsinho, em toda sua vida, só pôde colecionar advertências, tais como a da vizinha da longínqua Rua Alegre.

Certa vez, questionado por Carlos Drummond de Andrade sobre o motivo de Nelson não falar em sua obra de pessoas normais, o dramaturgo pernambucano engoliu a resposta que nunca dera ao poeta mineiro: "falo de pessoas tão normais quanto você e eu". Talvez o pernambucano fosse mesmo a pedra no caminho de Drummond, que, mesmo com tanta poesia, não conseguia entender a imensa normalidade presente na obra de Nelson Rodrigues: chegaria a ser obscena de tão óbvia a semelhança da obra mais "bizarra" com a vida mais normal, mais apática retratadas em obras como A dama da lotação, Engraçadinha, Toda nudez será castigada, etc.

Para os que não conhecem, vale a pena conhecer a obra do mestre dos acontecimentos corriqueiros, intérprete original de toda a mesmice sem graça com a qual o ser humano mediano dirige sua vida. Há de se falar de pessoas normais, ora, e não seria o adúltero uma das figuras mais famosas e conhecidas de que se têm notícia a nossa vã humanidade? Por acaso somente os anormais traem? Não creio nisso, nem Nelson.

Aos ainda desavisados, recomendo Memórias a fim de tomar ciência do contexto sócio-cultural que fez de Nelson o "grande tarado", fama repercutida pelas mesmas pessoas, de conduta moral imaculada, que, mais tarde se curvariam aos pés de Nelson na sua velhice e ainda mais depois de sua morte, em 1980.

Se tivessem de começar por algum lugar, conheçam a história, conheçam as Memórias, aí então qualquer pessoa, normal ou não, estaria preparada para entender um pouco mais da genialidade daquele que ousou detestar a unanimidade.

quinta-feira, agosto 19, 2010

Memórias para dias ensolarados



Dias ensolarados premiados com súbitas chuvas que inundam as ruas e deixam os becos de uma pacata cidade colombiana com cheio de enxofre. É este o cenário com o qual nos agracia Gabriel García Marquez em seu Memórias de minhas putas tristes (21 edição, Record, 2009).

Neste livro cheio de sol , suor e sensualidade nos deparamos com uma figura que talvez não combinasse, de início, com este cenário: um velho às vésperas de completar noventa primaveras encomenda a uma conhecida cafetina uma noite de amor com uma ninfeta virgem que deveria restituir-lhe tudo aquilo que a natureza e o tempo teimavam em lhe furtar.

Acontece que a narrativa transcorre assim, cheia de sensualidade, página por página, captando o coração e as entranhas do mais calculado e sistemático leitor.

Repleta de apelos sensoriais, muitas vezes acompanhamos o velho narrador em seus passeios por uma cidade que fora outra que não a que se apresentava, sombra do passado que constantemente é evocado pelo narrador ancião, velho jornalista, amigos das letras e das línguas, em especial o italiano e o latim, escritor de crônicas tão anacrônicas como seu próprio caráter, mas que, de alguma forma o mantinham vivo.

Ao que parece García Marquez em seu Memórias de minhas putas tristes é mestre em nos levar pela mão por entre becos e vielas, nos mostrar os caminhos tortuosos pelos quais sempre o amor se faz presente, nos fazendo quase sentir na pele os arroubos do amor e do sexo, contudo, por incrível que pareça, em nenhum momento o livro se torna pornográfico, mesmo que se pense nisso ao se imaginar um ancião contando as memórias de suas putas tristes.

Bem diferente disso é o universo deste livro. Quase sentimos o cheiro da chuva, o ronronar do velho gato, a pele embrutecida de Delgadina e seu cheiro inconfundível de alcaçuz.

Não bastasse a crueza da descrição de todo o cenário e a veracidade com a qual as personagens são trazidas à vida por Marquez, uma coisa há de se dizer: em meio a tudo isto, ainda assim, falou-se de amor.

E um amor cantado, embalado ao som de boleros e de clássicos de Mozart. Um amor maduro que , ao mesmo tempo, não deixa de se mostrar ridículo porque nos mostra a essência do humano: o patético quando se fala de amor. Latino como tinha que ser o amor é a vitória e a tragédia do ancião que, mesmo não sentindo a idade pesar em seus calcanhares admitia que passara a vida escapando do amor tal como o diabo evita a cruz divina.

Não se poderia esperar menos do prêmio Nobel de literatura. Memórias de minhas putas tristes é uma história ensolarada, sensual, sensorial , passional de amor, tal como todo amor deveria ser para valer à pena, tanto que eu, leitora sistemática, acostumada aos escritos acadêmicos, pude notar uma única lágrima, furtiva, quase clandestina a escorrer face abaixo ao virar a derradeira página de um romance que me ensina que não necessariamente para se falar de amor deve-se ser sério, sisudo, tal como um compêndio de psicopatologia. Na verdade quase nunca se deve sê-lo.

quinta-feira, agosto 12, 2010

O que posso dizer sobre Os Espiões?



O bom leitor, o leitor ocasional, o chamado "traça de livro", o leitor mediano e até o leitor autor , seja quem for, não conseguirá se livrar da obssessão por Os Espiões (Alfaguara, 2009).

Escrito por Luiz Fernando Veríssimo e inspirado em tantas histórias de detetive, em romances policiais, em Os Espiões somos guiados pelo fio que leva um editor entediado com a vida , com o casamento e com o trabalho a uma história privada pintada com tons de realismo macabro e contada como se fosse um crime passional que chega as suas mãos por meio de sucessivos envelopes brancos de autoria de uma tal de Ariadne.


Tal como todo bom romance policial, nós, os leitores mais fiéis, somos levados a conhecer o universo de Agomar Trapiche, do professor de cursinho pré-vestibular Dubin, da bela Bela, sua secretária. Também conhecemos o delicioso e rabugento professor Fortuna, para quem a alfabetização de mulheres era vista como um atentado à boa civilização.

Em
Os Espiões, o leitor menos fiel também tem acesso ao mundo de Veríssimo, um mundo cheio de humor, de ironia e sutis críticas sobre a hipocrisia e a mediocridade humanas. Não tenho aqui a intenção, também não possuo a pretensão de fazer um ensaio sobre Os Espiões. O motivo pelo qual não o farei é que me considero uma leitora fiel de Veríssimo.

Conheci sua obra porque alguém me dissera que era um dos melhores escritores brasileiros quando se pensa em escrita de humor, em um tipo de humor inteligência que é capaz de ultrapassar o próprio gênero para se alinhar ao que se tem de melhor na literatura de um país. Eu, humorista nata, achei que seria interessante conhecer a obra de Veríssimo, nunca li a de seu pai, mas , julgando pela herança genética e pelo que muitos me contavam, Veríssimo, o filho, tinha que ser genial. E é.


Sobre o enredo? Hum, muito pouco posso revelar, mas vou dizer que o livro prende qualquer que seja a categoria do leitor de modo que não existem mais "hora do almoço" "hora de sair", "hora de dormir". Veríssimo nos conduz, entrelaçando com talento os fios que Ariadne vai revelando, capítulo por capítulo, envelope branco por envelope branco, deixando todo aquele que se encontra com o livro em mãos tonto como se estivesse em um labirinto.

A respeito das alusões à De Chirico, à Ariadne de Teseu? Pouco posso dizer, somente me sinto autorizada a falar que o autor tem sucesso ao nos guiar por esse labirinto que a história de Ariadne nos apresenta. E o melhor? Não nos sentimos angustiados, no máximo, eufóricos para chegarmos ao derradeiro capítulo.

E quando lá chegamos? Que vontade de voltar...mas já é tarde, já fomos enfeitiçados e pena que o livro um dia acaba...mas não quer dizer que não poderemos retornar ao labirinto, nem que seja para rir com as opiniões e palestras do Professor Fortuna.


Como isto aqui não é sobre o autor e sim sobre a obra, pensei o que escrever sobre o recente livro do escritor gaucho que não revelasse a quem quer que esteja lendo isso o final da trama.

Acredito mesmo que até se me contentasse em contar como o fio de Ariadne é trançado e retrançado nos quinze capítulos em que o livro se desenrola, mesmo sem revelar o final da narrativa, estaria prestando um desesrviço aos leitores, fiéis e infiéis, novos ou antigos de Veríssimo.


Farei o seguinte: não contarei nada. Espero que isso atice a curiosidade de quem gosta de tudo que Veríssimo escreve, ou mesmo chame atenção daquele que nunca leu nenhuma linha vinda lá das bandas de Porto Alegre.
Não contarei sobre a Ariadne que costumava escrever sem vírgulas, não falarei sobre a origem do apelido da figura soturna conhecida como Rico. Não. Não direi uma palavra sequer sobre o que significava, em Frondosa, dizer que iria "visitar o túmulo de mamãe".


Meu silêncio receberá aquele que me perguntar como o editor conhece Ariadne, o que de fato se poderia entender como a "Operação Teseu", ou mesmo porque diabos o Mandioca gostava de "entregar" os jogos que disputava pelo time de futsal da cidade.

Não adianta insistir, porque também nada direi sobre Dona Loló, Franco e Fabrízio Martelli.
Deixarei tudo à cargo da curiosidade de quem possivelmente me lê agora. Se alguém , ao ler isto aqui, se interessar, descubra por si só o trançado feito pela tal Ariadne, trançado escrito e amarrado com "a pena da ironia e da galhofa", expressão que, se não pode se restringir à Machado de Assis, não poderia deixar de ser associada à Veríssimo.

Exagero? Coisa de leitora apaixonada e fiel?
Sobre isto nada. Nenhuma palavra sequer. Descubram por si sós, eu é que não vou estragar uma história de detetive.Itálico

segunda-feira, julho 12, 2010

E.U.A versus Lennon: um documentário honesto


E.U.A versus John Lennon é o documentário do momento. Na verdade rodado em 2006, o filme assinado por David Leaf e John Scheinfeld, certamente honrou seus objetivos: traçar o caminho tortuoso pelo qual se desenvolveu a carreira do ex-beatle quando passou a interferir ou a se preocupar com assuntos referentes à ordem nacional americana.


O filme consegue ser fiel a seus propósitos; mostra um Lennon fixado na infância, sobretudo em uma mãe que praticamente o abandonara e que não o abandonou nas lembranças da vida adulta, um jovem rebelde por nascença, não por escolha: era ele o próprio Working Class Heroe que chegou a cantar em uma de suas músicas do período pós-beatles.


Vemos no documentário um John politicamente ativo, preocupado com os destinos da humanidade que, naquele momento - início dos anos 70 - estava sendo conduzida ao massacre comandada pelos governantes dos Estados Unidos, a maior nação de todas, até hoje.


Trazendo quase uma dúzia de relatos, uns emocionantes, outros revoltantes, parece-me que Leaf e Scheinfeld não tomaram partido de Lennon, como se poderia pensar, ao contrário, ouviram rebeldes setentistas, ouviram radicais extremistas, mas também deram vez e voz aos representantes do governo da época, à pessoas que podemos facilmente relacionar às cenas de truculentos embates com uma população em sua maioria jovem, em muitos casos sob efeito de drogas, mas, sobretudo, unidos por um só objetivo: Dar uma chance à paz, uma canção entoada primeiramente por John e Yoko e que posteriomente se tornou um hino de toda uma geração revoltada contra um governo no mínimo corrupto, contra uma guerra sem propósito - se é que alguma guerra tem outra motivação que não o sadismo de seus idealizadores.


Do movimento Bed Peace à sua ligação com o partido das "Panteras Negras", observamos o desenvolvimento político e humano de um artista, que, se começou sua carreira de sucesso com o aval de uma massa praticamente hipnotizada diante de sua atitude já rebelde nos palcos, diante de sua voz esganiçada em "Twist and Shout", nos últimos anos de vida teve boa parte desta mesma massa dividida entre os que o apoiavam e os que o rejeitavam veementemente , e para os quais não passava de um subversivo.


Voltando um pouco no tempo, não achamos que Lennon dos anos 70, o que cantava a paz e o fim da guerra no Vietnã, não era muito diferente do jovem que ironizava os governantes: A própria família real inglesa foi motivo de chacota na voz de Lennon, não nos esqueçamos jamais quando o pop star pedia para que a rainha Elisabeth e sua turma ao menos balançassem suas jóias ao ouvir Twist and Shout no lugar de baterem palmas, como a maioria de seus súditos fariam.


O Lennon do documentário é o mesmo jovem rebelde que não se contentou com o título de mais adorado do mundo junto com seus outros amigos, não era mais do FabFour, mas foi igualmente genial quando conclamou toda uma nação - e também boa parte do mundo, diga-se de passagem - a romper com a lógica quase facista do governo de Nixon que mandava e desmandava diante de uma nação.


Lennon não ficou calado, sem dúvida com ajuda da mesma fama que o fez quem era, usou a mídia, usou sua excentricidade, inteligência e genialidade para trazer um pouco de reflexão à pessoas que costumavam engolir sem mastigar. Em suma, seus movimentos como o Bed Peace, a história de deixar o cabelo crescer pela paz, a sua própria relação com a exótica esposa Yoko Ono foram fundamentais para ele fazer o que pretendia: lançar a a reflexão, no intuito ingênuo de mudar o mundo.


Você pode dizer que ele é apenas um sonhador, ele foi, mas deixou sua mensagem, é o que Yoko atesta em sua última aparição num documentário simples que honrou seu propósito: mostrar a relação tensa entre uma nação e um ídolo. A lição que fica é que , em tempos pós-Bush e guerra ao terror, não custava muito que outras celebridades realmente se imbuíssem de um espírito de paz, que não apenas se preocupassem com seus bolsos e imagens e que, sim, voltassem seu público e seus fãs para os problemas que, afinal, não são muito diferentes dos de trinta anos atrás.


O mundo continua o mesmo, a politicagem continua utilizando dos mesmos recursos hediondos, e as pessoas continuam sendo segregadas entre passivos e subversivos, continuam achando "um saco" votar, "um saco" assistir horário político. Num mundo em que imagem é tudo, atitudes de Lennon poderiam muito bem ser enquadradas como jogadas de marketing, mas, se assim fosse, como explicar as vantagens ( nenhuma )que Lennon obteve com toda sua luta pela paz?


Os quatro tiros que levou certamente não estariam contabilizados no fechar de contas. Em um mundo em que tudo é fake e em que uma figura como Lady Gaga lança moda, em que ídolos do esporte são presos por crimes dignos de psicopatas, não me resta muita esperança ao imaginar um mundo de celebridades que faça mais do que doar um quinhão de sua fortuna à Ongs ou adotar jovens órfãos de lugares devastados pelo mesma nação que lota os cinemas e dá fama e fortuna às Angelinas Jolies da vida.


Pacifismo e engajamento é mais do que se faz hoje em dia, e acredito que Eua versus John Lennon ensinaria muito às gerações atuais, calcadas essencialmente no individualismo que confudem felicidade pessoal com ativismo político-social, afinal, resta uma dúvida: Está-se adotando órfãos do Cambodja por uma necessidade pessoal ou por uma necessidade de chamar atenção para conflitos, guerras e submissão de outras nações perante o poderio bélico de uma potência mundial?


Para responder a estas questões, devemos pensar um pouco, mas, como pensar, se twitar um "calabocagalvao" é mais importante? uma briga entre mulheres por um homem é recorde de acessos? Se a notícia do dia é o carinha que ganha rios de dinheiro vivendo um vampirinho adolescente? Bem que estava na hora de um Lennon aparecer...mas fica difícil nesses tempos em que as pessoas se refugiam na fantasia e na ficção e tudo que for real é enfadonho, chato, sem muitos pixels.



Ponto para Leaf e Scheinfeld que conseguiram fazer um filme à altura de Lennon que estará sempre vivo, invariavelmente, quer queiram ou não.

terça-feira, julho 06, 2010

Sublima que melhora!



Quando as pessoas estão envolvidas em festejos, comemorações, festinhas parece fácil dizer que estão acompanhadas, que estão em conjunto, em grupo, etc. Mas, como vamos dizer que estamos sós?Como sabemos que estamos sós?


Esta pergunta pode parecer de fácil resposta, uma vez que, aparentemente, estar só é o contrário de estar em grupo, ao lado de pessoas. Digo que não é bem assim, você pode estar ao lado de pessoas que não são tão significativas e que, por este fato, você continua se sentindo isolado, perdido, ou você pode estar com pessoas significativas e estar se sentindo igualmente sozinho.


Fato é que nas tristezas da vida, nos momentos em que você reza para não desesperar, raras são as pessoas que irão estender a mão, dizer "olha, estou aqui". Pouquíssimas. Nesse mundo em que vivemos, em que imagem é tudo, alegria é imperativo e ter amigos é sinônimo de felicidade, quem ousa se aproximar de uma pessoa que não faça parte dessa lógica, que nao compactue com comentariozinhos desnecessários e falsos? É isso, é disso que o povo gosta.



Quanto a mim, continuo vivendo a solidão, às vezes acompanhada, às vezes solitária, mas quase sempre compartilhada com uma única pessoa - ainda bem que ele existe - e aos outros, a quem interessar possa, continuo aqui, não postando fotos revelando o quanto curti a Copa do Mundo, o quanto curti o São João, o quanto adorei a viagem que não fiz.


Como não há meios de se demonstrar a tristeza, o processo depressivo, a solidão, melhor mesmo é falar, mesmo que ninguém leia, porque isso, de algum modo, pode garantir dias melhores. Da solidão e da morte, ninguém nunca quer saber.


Sigamos com nossas alegorias, fotos em verde e amarelo e comentários falsos sobre as pessoas, a vida e o mundo. Ah, Rogers, como discordo de você, de onde você tirou que o ser humano é essencialmente bom? Se assim fossem , como seria a vida? Metade da humanidade - bem mais da metade, vamos ser sinceros - não aprendeu a ser gente , por isso, não vão se beneficiar com um livro chamado "Tornar-se Pessoa".


Entre Tornar-se Pessoa e ser sujeito, prefiro a última opção e "O mal estar na civilização" permanecerá meu livro de cabeceira, enquanto a dor não passar, enquanto a ferida não cicatrizar e ninguém vier a meu consolo, porque isso certamente não espero.


Sublima que melhora!

domingo, junho 20, 2010

A perversão e o reino das toupeiras



A toupeira, é um bichinho tão bonitinho, singelo e gracioso. Ali, naquele cantinho dele, pode ser tão feliz, tão acomodado. Este bicho que pouco enxerga mas muito ouve, que busca incessantemente por comida parece inofensivo...ledo engano, são bastante vivos e podem ameaçar mesmo os bichos maiores. Vejamos algumas informações sobre esse bicho de duas caras:


A toupeira vive debaixo da terra, nos campos e nos jardins.Está sempre com fome e por isso consegue cavar grandes túneis à procura de comida.

Comem qualquer bicho que lhes apareça pela frente: vermes, larvas, minhocas, e às vezes até outras toupeiras. Para cavar a terra, a toupeira usa as patas da frente, que são muito fortes, uma espécie de pá.


À medida que vai avançando, a toupeira escava a terra e empurra-a para trás. A toupeira não vê quase nada, os seus olhos são do tamanho da cabeça de um alfinete! Mas em compensação ouve e cheira tudo muito bem a sua volta!



Como se percebe, a toupeira é um bichinho quase cego, sempre faminto mas que na verdade ouve e cheira tudo a sua volta. A toupeira é sacaninha, como a gente pode perceber, porque no interesse e estando com fome, não importa qual seja o alimento, estraçalha e come até as outras toupeiras com a única intenção de matar quem lhe estava matando.


A toupeira vive debaixo da terra, não deve ter acesso nenhum À luz e tem uma enorme vontade de sugar, de comer do outro aquilo que de interesse for. Não são as toupeiras graciosas réplicas de muitos seres humanos que conhecemos?


Ora, olhos do tamanho de cabeças de alfinete certamente não enxergam longe, e, sinceramente, viver embaixo da terra não parece coisa boa para ninguém. Mas as toupeiras, elas gostam, elas são sujas e vivem enfiadas em buracos, tendo nessas pequenas "pás" que são seus dedos, importantes aliados no ofício de descobrir novos alimentos, novos seres para deles se alimentar.


Quanto mais leio sobre a toupeira, mais me lembro de muitos seres humanos que mal enxergam um palmo diante do nariz - ou focinho - e que acabam por ter no olfato e nos dedos a maior vantagem: sabem farejar e se aproveitar do que vêem pela frente, e olhe que não vêem tanto, mas, uma vez enxergando, por que não?


Que me perdoem os ambientalistas, que me perdoem os telespectadores do Discovery Channel, mas que animalzinho sacana essa toupeira, espero tranquilamente o dia em que se comam até serem apenas fotos em livros sobre animais em extinção.

terça-feira, maio 04, 2010

A lealdade de Hachiko



Quando me deparei com o filme "Sempre ao seu lado" (Hachiko, 2009), protagonizado por Richard Gere e um cão akita, torci o nariz, não queria ver mais um filme de cachorros falantes e de aventuras extraordinárias à la K-9, um cão da pesada. Decididamente, não iria assistir. Até que tive acesso a uma crítica da revista Bravo! a qual elogiava o tal "filme de cachorro", justamente por tirar-lhe este aposto, Hachiko não era mais uma história de cachorro: Hachiko não fala, não saltita, não persegue bandidos, não trabalha para o FBI e não faz grandes truques a mando de seu dedicado dono.


Hachiko é a história de um cão que existiu, de fato, nos anos 20, no Japão. Um Akita que não costumava obedecer ao simples comando de "vá buscar a bolinha" , uma vez que só fazia o que realmente lhe agradava, e por carinho a alguém. A história, na verdade, mostra com sensibilidade o que é a lealdade, algo tão em desuso atualmente.


Adaptada em uma pequena cidade americana, a história de Hachiko centraliza-se nos "sentimentos" do próprio cão, fazendo de Richard Gere um mero coadjuvante. Trata-se da história de um cão que, por costume, todos os dias acompanhava seu dono à estação de trem, via-o ir ao trabalho e, pontualmente, voltava ao lugar no fim do dia para esperar seu dono retornar. Acontece que em um trágico dia, a personagem de Richard Gere não retorna: morre repentinamente no local de trabalho e assim Hachiko nunca vê seu dono regressar.


O tempo passa, Hachiko, no entanto, não esquece do afeto que seu dono lhe dirigiu por dois anos, e, durante toda a sua vida retorna todos os dias à mesma estação, à espera do dono que teimava em não voltar. Isso aconteceu por nove anos, até a morte do cão, em 1934.


Mais do que um "filme de cachorro", uma espécie de Rintintim ou Lessie, Hachiko é uma história que fala de lealdade e de como não devemos esquecer aqueles que amamos. Nos dias de hoje, somente a fidelidade canina é capaz de atos deste nível. Feito com extrema sensibilidade e sutileza, o filme é sim, triste, horrível, mas, por isso mesmo, percebemos sua beleza, em sua singeleza, numa história sem pretensão que se torna uma bela forma de falar de lealdade, companheirismo, apesar da transitoriedade da vida.


Nos anos que seguem a morte do professor, dono de Hachiko, tudo muda, sua viúva desfaz-se da bela casa em que viviam, Hachiko vai morar com uma nova família, com a filha de seu dono verdadeiro e convive com uma criança. Em uma rápida, mas primorosa cena em que não existem falas nem personagens humanos, acompanhamos o passar das estações, a partir da desfolhagem e folhagem das árvores que abrigam Hachiko: primoroso, porque singelo. Podemos notar que este é um recurso muito utilizado em cinema para demonstrar a passagem do tempo: a mudança da natureza, mas em Hachiko isto ganha um tom poético somente possível graças à sensibilidade de um diretor perspicaz e sutil.


Apesar de Hachiko, o tempo passa, as pessoas mudam, os arredores da estação transitam apressados, porém alguns são os mesmos de sempre, cumprindo a rotina diária: o dono do carrinho de cachorro-quente, a senhora que pega seu trem todos os dias, o homem encarregado da administração da estação, todos continuam seu ritmo de vida , o trem sempre vai e vem, e , à sua espera está Hachiko, esperançoso de receber seu dono, sempre, todos os dias, com o que poderíamos dizer "fé inabalável" no retorno, se não estivéssemos falando de um cachorro.


Cachorro ou não, o que estamos tratando aqui é de transitoriedade, também. Se percebemos que o tempo não pára, os trens não abandonam as estações, o sol não deixa de nascer e morrer todos os dias, acreditamos que tudo, neste mundo que insiste em girar, passa, à exceção de uma coisa: o afeto.


O afeto não morrem como as folhas das laranjeiras, como as flores das cerejeiras tão vistosas em certa época do ano no Japão. O afeto permanece em nós, imemoriável, sujeito à nuvens e trovoadas mas , sobretudo, não sujeito ao recalcamento. Não esquecemos e o tempo não amarela os sentimentos e afeto que temos por algo, alguém.


Assim, uma casa vive em nós, deixa de reduzir-se a seus limites geométricos e geográficos e passa a ser reconstruida com o cimento da nostalgia, mobiliado com os móveis os quais nossa memória projeta e inventa. Hachiko envelhece , o tempo inevitavelmente passa, mas até quando viveu guardou em algo que poderíamos chamar de "lembrança", os momentos de afeto vividos e compartilhados com seu dono, isso, sim, não é passível ao emboloramento, não obedece às leis que transforma tudo que é vivo em pó e em ruínas.


A inevitável verdade não é negada: seremos nós, um dia, reduzidos à pó, seremos história tal como o sol que nasceu ontem e já não se encontra radiante no alto, posto que em seu lugar existe outro. A lua cheia de ontem pode até retornar, mas não será mais a mesma lua, e nós, crescemos e vivemos esse tempo que passa, passamos tal como os ponteiros de um relógio, mas algo, algo fica.


Hachiko nunca cansou de esperar seu dono. A lealdade é o que lhe fez carinho e o sustentou, todos os dias, no mesmo lugar. Atualmente Hachiko está representado por uma estátua de bronze colocada no lugar no qual costumava deitar-se à espera de seu dono. O filme é belo, simples e, como a maioria dos filmes belos e simples, tem um quê de libertador. Vale a pena.

quinta-feira, abril 22, 2010

Conversa para passarinho piar



Treino de vôo


Oh, serzinho cantante

És tu, tão belo e falante

Que me ponho seca a rimar

És tu que vens montado em dois palitinhos

Com aparência de caranguejo-uçá


Oh, serzinho falante

Amiúde até saltitante

Vai, serelepe e todo errante

Com a cabeça envolta em penugem

Reivindicar teu lugar no céu

Dos pardais e dos zepelins


Oh, serzinho encantante

Vem voar nessas grandes nuvens

Que em teus palitinhos

não hás mais de andar


Vai, serzinho discrepante

Que teu ofício de origem

É mesmo o exercício de avoar


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Teorema do pardal


Todo pardal que avoa alto


vai em busca do zepelim


O zepelim que se vê ao longe


tá buscando alguma pipa


toda pipa que é lançada


é uma isca para as estrelas


Logo, o pardal que tão alto avoa


De longe forma uma constelação



(Cristiano Leão)

A Ilha de Bergman: A ilha interna



Rodado na famosa Ilha de Farö, A ilha de Bergman (Suécia, 2006) é um documentário que deveria mostrar a vida íntima de um dos maiores cineastas que o mundo conheceu, mas vai além.


A documentarista explora as questões de vida de Bergman que talvez só sejam esmiuçadas justamente porque aquele seria o último ano de vida do cineasta sueco. Fato é que, ao nos abandonarmos nos arredores da ilha de Farö, estamos com Bergman e fazemos também parte daquele cenário. Bergman responde com uma franqueza que só a idade avançada permite, tudo ou quase tudo que foi tabu, que foi triste ou doloroso em sua vida, que já acena para ele do outro lado do retrovisor.


A impressão que se tem é que se penetra na alma do velho Bergman, genial diretor de "Cenas de um Casamento", "Persona", "Morangos Silvestres", etc, para percebemos a docilidade, a fragilidade de um homem que a todo momento de sua obra parecia sublimar o sofrimento - algo não muito original, mas que Bergman transforma em arte como poucos ousaram e puderam.


Sublimar: Verbo interessante, amado pelos psicanalistas e desconhecido da população em geral. Sublimar, segundo a pena freudiana, significa dar uma nova roupagem à conteúdos que não necessariamente nasceram bem vestidos, isso tudo para passar do lado de lá do inconsciente e chegar às fronteiras cobiçadas da consciência. Geralmente essa nova roupa é costurada com o fio da arte e rematada pelo acabamento de um alfaiate bem competente e ocupado chamado Ego.


Conhecimentos psicanalíticos à parte, A ilha de Bergman nos mostra um retrato fiel da intimidade e das questões que mais marcaram a vida do cineasta e que, de alguma forma, estiveram presentes em sua obra. A impetuosidade do inconsciente, as aterradoras exigências egóicas, o desejo sempre insatisfeito, a neurose, e , sobretudo , mais do que a falibilidade das relações sexuais, a inexistência delas, fazem parte de assuntos muito comuns na obra de Bergman, tornando sua trajetória artística algo único.


Dói ver Bergman, dói por uma coisa: a sublimação existe, mas dói no espectador dormir com todo aquele barulho provocado pelas belíssimas atuações de Liv Ullmann, de Erland Josephson, Ingrid Bergman, entre outros que atuam os papéis de nós mesmos.


É necessariamente esta dor que está presente não mais na obra, mas no discurso sem disfarce de Bergman, já no fim de sua vida, ao analisar a própria falibilidade na missão que recebeu, de ser humano. Bergman nos conta seus medos em relação à morte, a aceitação de que ela viria, seus desastrosos relacionamentos com as mulheres e um bando de questões que assustam toda uma humanidade, acrescidos de declarações que somam-se à culpa neurótica de cada dia que carrega em seus ombros, tal como nós todos.


A Ilha de Bergman é algo que ultrapassa as fronteiras da linda e paradisíaca Farö, deixa a Suécia e ancora na ilha de dentro do homem capaz de transpor suas dificuldades, ou, para ficar mais bonito, suas problemáticas, para a tela do cinema e, assim, faz de todos nós um pouco cúmplices de tudo que se desenrola no lado de dentro da tela.


De acordo com Freud, faz parte do êxito de um bom autor (e aqui podemos incluir o cineasta) conduzir sua plateia de modo que as tragédias internas das personagens sejam vivenciadas como algo familiar a nós, que achamos que estamos tão distante daquele mundo que se desenrola na tela branca.


Freud foi o primeiro a denunciar nossa semelhança com a neurose das personagens. Em "Personagens Psicopáticos no palco", um curto e delicioso texto do pai da Psicanálise, sabemos porque certos autores têm tanto sucesso ao idealizar uma personagem que, subitamente, tem tantas características parecidas com as nossas...


Sem dúvidas Bergman foi mestre também naquilo que Freud considerou uma das maiores provas do sucesso de um autor: ele conseguiu que nós nos identificássemos com toda a tragédia das suas personagens, justamente porque, quando se trata de mundo interno, personagem e pessoa real não são coisas diferentes, uma vez que a personagem sai de algum lugar real, a semelhança não é mera coincidência.


O documentário não nos mostra personagens, no máximo um homem, consciente de sua própria finitude, disposto a revelar para muitos e talvez para si mesmo, suas próprias tragédias, sucesso e fracasso, tudo enfim que faz parte da ópera bufa que se chama vida a qual todos nós encenamos, como maior ou menor brilho. Agora fiquei confusa: será que não nos mostra mesmo nenhum personagem?


A ilha de Bergman vale para os fãs do cineasta e também para os que são fãs apenas da natureza humana, esta que anda tão em baixa. Vale a pena, recomendo fortemente, um bom exercício de auto-consciência.