sábado, outubro 30, 2010

A vida como ela é...sem tirar nem pôr



Não é com surpresa que vejo o sucesso que A vida como ela é, ( Agir, 2009) perdurar até hoje, mesmo depois do estardalhaço causado em 1997, quando da produção da série exibida no programa Fantástico, com direção de Daniel Filho e roteiro de Euclides Marinho, buscando um retrato fiel daquele Rio de Janeiro dos anos 50, da já citada Rua alegre, das vizinhas invejosas e das mulheres pecadoras que tão bem foram retratados pelo gênio óbvio Nelson Rodrigues.


Esse pretendia ser um post em que se exaltasse o livro da Agir, mas, ao mesmo tempo, me fui apresentada, agora já adulta, a obra que tanto instigava minha curiosidade, naquelas noites de domingo. A vida como ela é saiu em DVD e assim, para quem não conhece o compêndio de crônicas homônimo, fica mais fácil compreender o universo rodrigueano.


A vida como ela é...estejamos nós falando das crônicas ou da série de televisão continua instigante e , principalmente, fiel ao que se propôs: um retrato honesto da vida carioca, suburbana, tão cotidiana, e tão trágica, ao mesmo tempo. Ao tempo em que quase testemunhamos inocentes casais tomando um sorvete na leiteria do bairro de Laranjeiras, também assistimos à pactos de morte, traições, incestos , mortes risíveis como a morte do homem, que, cansado de jantar duas vezes, dividindo-se entre amante e esposa, resolver pôr fim a sua existência com um tiro no peito, porém não o faz sem deixar claro seus motivos: "morro porque cansei de jantar duas vezes", desabafa.


Assim como "Mártir em casa e na rua", nome da crônica em questão, podemos nos surpreender com outras tantas, como a tão famosa Dama do lotação, Terezinha, Delicado. Entre tantas não saberia aqui dizer qual é a mais fiel à vida cotidiana, não saberia também afirmar qual seria a mais exata em retratar a constituição psíquica do sujeito para sempre alienado em seu desejo, que, muitas vezes, não sabendo lidar com os descaminhos deste, acaba passando ao ato - termo psicanalítico que faz referência ao momento em que não é possível outro escoadouro socialmente aceito para deixar as pulsões fluirem: é necessário passar ao ato, porque não se pode fazer outra coisa.


É por isso que A vida como ela é parece tão trágica, tão shakesperiana: é porque o que observarmos é a impossibilidade do sujeito compactuar com seu desejo, este sempre arredio, rebelde, obsceno. Por isso , o sujeito que não aguenta mais a farsa cotidiana de agradar esposa e amante resolve a questão se matando, por isso a noiva saudosa do ex-amante malandro decide por fim à sua vida ateando fogo em suas vestes, é por isso que Euzebiozinho se enforca vestido de noiva.


Exemplos são muitos e eu não farei aqui o papel de estraga-prazeres dizendo o fim de todas as crônica que, inicialmente, faziam parte de um jornal diário o qual todas as pessoas, nos bondes, nas ruas, nos botecos compravam e se deleitavam ao ansiosamente procurar, por entre as páginas de política e policial, a pequena estorieta do dia, aquela a qual sempre seria surpreendente, porque demasiadamente humana.


A vida como ela é pode ser analisada e entendida como um excelente modo de investigação do psiquismo e de todas as mazelas que nos marcam, desde que entramos de sola neste mundo. Recomendo fortemente tanto a série televisiva como a reunião de crônicas publicada pela editora Agir.

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