segunda-feira, maio 26, 2014

Merleau-Ponty e ressonâncias na clínica psicanalítica: um barco, a arte e um mundo velho sem porteira

O mundo é mais velho do que a nossa consciência que dele temos. Assim deve ser apresentado a nós um dos mais importantes filósofos do século XX.

O que começou pra mim como uma disciplina do programa de pós-graduação que faço, acaba como uma surpresa que em muito me auxilia a pensar o meu fazer como curiosa sobre as questões que atravessam o humano.

Merleau-Ponty (1908-1961), como se percebe, morreu cedo, morreu ainda com muita coisa a dizer, e por isso mesmo, pelo que não disse, é que vem sendo redescoberto hoje em dia. Seu discurso reverbera na Psicologia, na Psicanálise, na Antropologia, ultrapassando os limites do filosófico por sua capacidade de se relacionar ao que é próprio da contemporaneidade e ao que é inerente ao humano.

Faço um recorte aqui de coisas que muito me interessam na filosofia merleau-pontyniana, a saber, a repercussão de sua concepção de linguagem e a incapacidade da palavra de conter o significado, o fazer da análise e o papel do artista como quem promove o novo.

Sobre a Palavra, para o filósofo, ela é um compartimento limitado que aponta para sua vulnerabilidade. A fala, nesse sentido, seria um tecido imenso dobrado pela linguagem, e o que seriam essa linguagem senão o próprio jogo relaciona pelo qual apreendemos o significado das coisas?

 Para entender melhor o que diz Merleau-Ponty: contrário às ideias típicas do idealismo, ele vai além,  e entende que o mundo não necessita da representação, que dele fazemos, as ideias e os conceitos não seriam a maneira correta de viver o mundo. É aí que pensamos a linguagem, como possibilidades infinitas de dizer e , ainda assim, não dizer tudo, porque nunca existirá uma linguagem completa, uma r
representação nunca valerá mais que a própria coisa, por isso esse jogo é eterno, o jogo dos significantes.

O sentido de uma palavra seria sempre ultrapassado pelo próximo sentido  para aquele que dela faz uso. Sendo assim, não nos cabe saber o mundo e cobri-lo de palavras, o que nos interessa - aí notamos a influência de Husserl - é como vivê-lo e experienciá-lo. Mas ainda assim, estamos presos à linguagem, dela é preciso fazer brotar algo.

A linguagem é ambígua, notívaga, a linguagem é misteriosa e provocadora, ela nos incita a vivermos o mundo e vivermos na originalidade, dispensando o constituído, nos entregando a experiência única do constituinte.

Toda essa noção acerca da linguagem descortina o que é a visão de mundo de Merleau-Ponty, uma visão fenomenológica, husserliana, disposta ao encontro, à busca 
da originalidade, parceira do advento como encontro com a alteridade. 

Merleau-Ponty, em suma, é o desvelamento da verdade como surpresa. E isso é o que a linguagem nos providencia: uma surpresa, por ser polissemia. A clínica parece deixar tudo mais claro.

Sinceramente essas ideias me parecem claras quando nos voltamos novamente para a clínica, não como uma tentativa de fazer uma coisa como "clínica filosófica", visto que o filósofo não pensou um modelo de clínica. O que podemos pensar é a visão de mundo,  uma proposta de filosofia que ressoe no que fazemos na clínica, na escuta mesmo do que diz um analisante, estamos inundados de palavras e linguagem.
Educação para adultos (Jonathas de Andrade)

Para pensar a clínica e sua relação com essa linguagem parcial, não-toda, eu penso em uma metáfora.

A figura do analista e do analisante como os dois ocupantes de um barco, a remo, cercado de um mar de linguagem em busca de uma espécie de ilha paradisíaca (Verdade?). É essa a imagem mental que tenho quando conecto Merleau-Ponty à Clínica Psicanalítica, ou a noção lacaniana de clínica.

Estamos os dois perdidos nesse imenso mar de linguagem, molhando-nos constantemente e sem qualquer garantia que alcançaremos um pedaço de chão, um território seco. O que temos pela frente é só imensidão e ondas, e dobras, e palavras, e corpos que remam.

Se essa imagem é por vezes aterradora, ela não deixa de ser, de alguma forma, potencialidade, possibilidade. Nos lembramos facilmente de Lacan quando se pensa seu clichê mais famoso: o inconsciente é estruturado como linguagem. Há aí Merleau-Ponty, evidentemente.

Ainda fazendo uso da metáfora que propus: o tesouro de significantes, do qual Lacan nos fala, é o trabalho, é o mar que navegamos, é o que temos para chegar - ou não - em algum lugar, e como nosso barco é frágil!

A linguagem, esse mar de palavras que necessita ser navegado -Navegar é preciso! Nos coloca frente a frente ao mistério do qual nos lembra Merleau-Ponty: o significante é metonímico, ele desliza, derrapa, muda e nos muda. A palavra deixa evidente que ela é menos do que parece, a palavra é o que habita essa mar que incessantemente navegamos privados de bússola, nós, analista e analisantes.

Portanto, dizemos muito e ainda deixamos claro que dizemos muito pouco, mas ainda assim, é o que o analista tem como meio de se chegar a algum lugar. Pois, como se chegaria a uma ilha desconhecida sem nos aventurar ao mar do "tudo é possível"?

Como o mar, a linguagem é imprevisível. Muita coisa ocorre em seu universo subaquático: peixes, perigos, movimentos tectônicos. E lá estamos nós, na superfície, imbuídos num trabalho hercúleo de navegar, sempre, mas nunca precisamente!

Deixando um pouco o mar de lado, e voltando à terra...

Descolar palavra de sentido e oferecer ao signo a possibilidade de tudo ser parece ser a riqueza de relacionar a filosofia merleau-pontyniana à clínica psicanalítica, que tanto ouve, que tanto se interessa pela plasticidade do significante.

Ora, não seria esse o papel da análise? Possibilitar outras saídas, um mundo sem porteiras, para que a cristalização e a patologia não encontre espaço? Promover uma abertura ao mundo para que nele possamos criar? Para que dele possamos nos apropriar, povoando-o com linguagem, sempre abertos à experiência?

Uma última consideração gostaria de fazer aqui. O interesse de Merleau-Ponty pela arte também é algo que o une à Psicanálise, parece que a arte sempre tem um estatuto de a priori no tocante à concepção de mundo. E isso é 
revigorante, seja na Filosofia, seja na Psicanálise.

Para Merleau-Ponty, o artista é aquele que promove o novo, que sai do instituído e promove uma torção, uma promiscuidade da linguagem, da palavra, da coisa em si mesma. O artista, esse privilegiado, seja na visão do filósofo, seja na concepção freudiana, promove essa prostituição das "coisas como elas são" ao romper com o que está aí. Ele é a promiscuidade.

Aqui um ponto que quero acrescentar, na esteira do que venho desenvolvendo. Ao ler Merleau-Ponty e sua concepção de linguagem como o ambíguo, me foi possível lembrar de uma obra de arte intitulada "Educação para adultos", em que percebemos claramente o papel do artista como o aquele que age sobre as "máquinas infernais de significação" (termo de Merleau-Ponty para descrever o que seria um livro). 

Nessa obra, o artista propõe trinta cartazes utilizados na alfabetização de adultos ( impressos entre as décadas de 70 e 80 do século passado) e sugere que haja a confeção de novos cartazes em busca da produção de sentidos, de novos sentidos que não os que foram instituídos pela relação, pronta e acabada, impressa nos cartazes, entre imagem e signo, que alguém disse que seria importante para alguém que quer aprender a ler.

Não pretendo aqui discorrer sobre alienação e opressão social, apesar da obra fazer essa discussão e de se utilizar Paulo Freire como referencial. Aqui, por questão de tempo e afinidade, prefiro centrar minha reflexão na questão do artista como o que promove o novo e seu compromisso com a torção da linguagem.

A obra consiste na apresentação de um painel de sessenta imagens, uma tentativa de tabela de correspondência "Imagem-Signo", dispostas não aleatoriamente, o que nos revela a polissemia de sentidos ( por vezes irônico) produzidos pelos novos analfabetos que produziram os trinta cartazes restantes na construção do painel. 

Constituído e Constituinte se entrelaçam e nos mostram duas coisas: a promiscuidade da palavra, como ela pode servir a diversos usos, e a possibilidade de descontruir o mundo, o mundo como representação pela visada de um novo mundo, em eterno processo de redescoberta.

Ao fim de tudo isso, paro pra pensar que somos tudo isso, navegantes e artistas, psicanalistas, dispostos a navegar, a promover o que reverbere no Outro. 

Se chegaremos a algum lugar, isso é o que menos importa. O que importa é abrir esse mundo e deixá-lo escancarado. Obrigada, Merleau-Ponty, por abrir as porteiras desse mundo velho!