segunda-feira, junho 02, 2014

Luc Ferry e o amor aonde não se pensa

Ultimamente não são raras as abordagens sobre como a contemporaneidade tem destruído e solapado os ideais e tradições pelos quais o homem tanto lutou e dos quais a História vem a ser o discurso testemunhal mais verossímil.

Podemos dizer que os tempos de hoje são tempos sombrios, tempos em que a humanidade deu as costas, ou minimamente deu de ombros para o sofrimento do outro homem. 

Sim, sem dúvidas, não existe menos egoísmo e maldade hoje do que existiu em outros tempo. Devemos ser justos, e também cuidadosos para não cair na armadilha frequente em que muitos  caem: a de entender a contemporaneidade como tempos terríveis, tempos apocalípticos nos quais não é possível vislumbrar nenhuma fagulha de empatia, de interesse pelo próximo, de esperança. 


O amor aonde não se supõe

É a isto que se presta Luc Ferry em seu "Do amor: uma filosofia para o século XXI", o autor, que já foi  ministro da Educação na França, é filósofo e extremamente cuidadoso em apontar o que considera um segundo humanismo, uma época em que há, mais do que em qualquer momento histórico, um interesse genuíno, um amor verdadeiro pelo outro  que chega a transcender ao alcançar as esferas políticas em que os homens estão engajados e nas quais se entrosam publicamente.

Seria a tese de Ferry absurda? Incoerente? ingênua? Precaução e cuidado é o que o leitor mais atento e curioso encontrará nesse livro, pois o humanismo de que fala Ferry não é ingênuo, inclusive bate de frente com a hipocrisia que caracterizou a Idade Média, por exemplo.

A questão a que se detém Ferry é que o amor é a verdadeira revolução - Inclusive, "A revolução do amor", é o título de outro livro do mesmo autor - que permite as pessoas se colocarem no lugar do outro, a lutarem pelos ideais do outro, esse outro assume o lugar de amado, em todos os níveis, amado como amante, amigo, como aquele com quem eu evidentemente simpatizo.

Ou seja, o outro, esse meu íntimo me inspira a um amor que é tudo isso junto: amor-carnal, amizade, caridade - philia, ágape e eros - e este modelo irá nortear as relações que teremos e que vivenciaremos em sociedade.

Para alguns essa tese parece absurda, dirão os mais catastróficos que essa visão de Ferry é completamente incompatível com o que vemos, com o que acompanhamos nas notícias de jornal. Afinal, somos diariamente levados a crer justamente no oposto do que Ferry defende: os novos tempos são tempos difįceis, sombrios em que a violência e a maldade estão institucionalizadas. 

Outro dia ouvi  justamente isso de uma pessoa na rua:) "hoje em dia é assim, a violência comendo solta, antigamente ninguém via filho matar pai e mãe!"

Luc Ferry antecipa as críticas que certamente foram e serão endereçadas a ele ao inclusive não negar que vivemos tempos violentos. No entanto, se o autor corrobora a ideia de que estamos vendo cair diante de nossos olhos os ideais tradicionais, também nos relembra a maldade e a violência que marcaram os tempos antigos, imemoriáveis? Alguém esqueceu dos massacres ocorridos na Idade Média?

Por isso, cabe a lembrança:

" É fácil denunciar as mazelas do tempo atual, as desigualdades, a crise econômica, mas é infinitamentr mais difícil arriscar-se a evocar alguma época de ouro. [...] digam o que quiserem, nossas democracias oferecem espaços de liberdade até então inauditos, além de um permanente cuidado com o outro [...]" 

O trecho é claro e as ideias que evoca são mais ainda. O que devemos fazer é desconfiar de todo um discurso pré-fabricado que muitos assumem meio com pressa, tomando-o como verdade e como justificativa para repetir o que se expressa com o mais ingênuo senso-comum: "É, hoje em dia tá demais!".

O que esse "tá demais" imediatamente provoca é justamente isso: será que as outras eras experimentaram menos violência, menos crueldade? Ao contrário, e na verdade, na contramão do que muitos dizem, Ferry sugere que o humanismo concretamente situado em ações humanitárias nunca foi tão grande.

Mas, o que leva a essas ações humanitárias, senão o amor, arduamente construido entre duas pessoas? É esse o próximo tema que interessa ao autor.

Como nos ensina Ferry, foi na família que o amor passou a ser central, acabando com o casamento escolhido para manter as linhagens da nobreza. 

O casamento na modernidade vai ser profanado, vai esquecer do sagrado no sentido cristão ao assumir sua face erótica e vai, surpreendentemente, marcar as relações políticas ao escapar da esfera privada. O amor reinventado não é cristão e subverte a noção de sagrado como puro, medroso do corpo. O amor erótico assume esse corpo e se legitima a partir dele.


O amor erotizado

O amor, assim repaginado, não prescinde do eros e legitima o corpo como lugar em que será sacralizado. O sagrado recupera a significação de ser " aquilo pelo qual se pode morrer". Ora, se não se morre mais pelos ideais antigos - Pátria, Revolução e Deus - morre-se por amor, por amor aos que nos são caros, por amor aos que nos são íntimos.

Morre-se e se sacrifica pelos filhos, inclusive, esse amor filial é um amor que é recente, pois não é novidade que na Idade Média, não havia muita diferença entre a morte de uma criança e a morte de um cavalo. Falaremos mais disso adiante.

Sendo assim, esse amor, sai dos limites do privado e adquire uma substância pública a qual podemos ver representada nas ações comunitárias ou no sentimento mesmo que faz nosso coração apertar diante do sofrimento alheio, diante da dor do outro.

Essa é mais ou menos o cerne das ideias que nos são apresentadas em "Do Amor" , explícita alusão à Stendhal. Esse amor que nos faz perceber aquela característica específica do objeto amado, aquilo que nos faz percebê-lo como único: " Isso é tão seu!"  se torna o elogio mais sincero que alguém pode receber.

É isso que faz o ser amado ser amado: ser ele. Ferry lembra Montaigne " porque era ela, porque era eu". Obviamente, eu lembro de Chico Buarque: 

Eu não sabia explicar nós dois
Ela mais eu
Porque eu e ela
Não conhecia poemas
Nem muitas palavras belas
Mas ela foi me levando pela mão
Íamos todos os dois
Assim ao léu
Ríamos, choravamos sem razão
Hoje lembrando-me dela
Me vendo nos olhos dela
Sei que o que tinha de ser se deu
Porque era ela
Porque era eu


O amor pelo qual se mata e morre

O que me parece interessante na visão de Ferry é justamente como as pessoas fazem essa transposição ou mesmo tradução, não sei se os termos são válidos, como as pessoas trazem esse amor antes destinado ao privado ( e somente depois de muito tempo isso ocorreu como amor erótico)  para as ruas e se tornar argumento pelo qual se sacraliza o humano. Dito de outra forma, o amor é o único motivo pelo qual se vale a pena morrer.  Talvez nisso é que precisamos nos concentrar.

Penso agora nas grandes tragédias, nos linchamentos em via pública tão irremediavelmente relacionados aos tempos das fogueiras da Inquisição. Eu mesma pensei e associei prontamente um episódio  recente de linchamento em via pública no Brasil com a condenação das bruxas medievais.

 Hoje não penso mais assim, há vários indícios de que essas eras mais se afastam do que se relacionam entre si, medievalismo e contemporaneidade estão afastadas por quilômetros de distância. É outra coisa que está em jogo.

Quando se espancou uma mulher, mãe de dois filhos, em praça pública, viu-se claramente o argumento de muitos envolvidos na cena triste, abominável , que se desenrolou se repetir: " eu espanquei porque estavam dizendo que ela sacrificava crianças em rituais de magia negra". 

Não seria a identificação com o pai que teve o filho morto, um dos motores para que houvesse o engajamento nessa cena  bárbara que foi exaustivamente reproduzida pelos noticiários há um mês atrás?

Com isso não quero me esquecer do lado dionisíaco que vive no sujeito desde que o mundo é mundo, não é essa proposta, não estou esquecendo aqui da catarse perversa que ocorre quando alguém se lança a espancar uma pessoa no chão, a chutar cachorro morto.

A questão é: o amor, levado ao extremo, pode, sim, servir de argumento para ações que paradoxalmente nada tem que ver com o amor? Estranho? Não acho, pois não é de hoje que se mata por Deus, mas, será que Deus aprovaria a matança feita em seu nome?

Será que Deus separaria os seres entre os que amam pessoas de sexo oposto ao seu  e faria uma  fila diferenciada destinada àqueles que amam pessoas do seu mesmo sexo? Não. Mas esse é um argumento bastante propagado por aí.

Morre-se e mata-se por amor, lincha-se por amor, por simplesmente pensar que alguém possa ter feito algo tão cruel com uma criança. Eu , linchador, sou , portanto, idêntico àquele que lincho, só que, neste caso, a mulher espancada até a morte era inocente e também tinha filhos, que hoje choram por não terem sua mãe.

A leitura do amor a que nos apresenta Ferry é chamada por ele de segundo humanismo, um humanismo que estaria , por assim dizer, livre das ilusões metafísicas, pois a única transcedência pela qual se interessa é a transcendência sem Deus, uma transcendência levada à baila por conta da imanência humana. É pelo que grita de mais humano em nós que podemos amar o outro - e também odiá-lo.

O amor, afinal

O amor é isso, mais do que o tal do fogo que arde sem se ver. O amor é alçado a argumento e legitimado nas regras do bem viver, no ethos contemporâneo e isto pode nos levar ao mesmo tempo a uma existência mais amorosa, como também a uma guerra sem precedentes. 

Ferry prefere a esperança ao pensamento catastrófico. Eu também, e se nunca chegaremos a uma sociedade que viva plenamente o amor ao próximo, ao menos podemos viver numa sociedade menos hipócrita que convive , tanto com o aumento dos números de casamento, como com o igual aumento de número de divórcios.

Um exemplo de como a contemporaneidade nos promete várias possibilidades simples e notório: Hoje nos permitimos nos divorciar quando o amor acaba, nos outros tempos, dos casamentos arranjados, as pessoas se aturavam eternamente.

 Vamos pensar mais nisso, vamos ao menos considerar as vantagens da contemporaneidade ao invés de tacar-lhe pedras nostálgicas vindas de um "tempo bom" que nunca existiu.