terça-feira, julho 29, 2008

Meu fake que tinha um fake



"O termo esquizofrenia refere-se a um conjunto de transtornos que abrange o que são, sem dúvida, os mais complexos e assustadores sintomas que jamais encontraremos. Os indivíduos com esquizofrenia podem ouvir vozes, pensar que são controladas por outras pessoas [...] acreditar que os outros estão conspirando contra eles ou expressar-se usando linguagem sem sentido"


David Holmes - Psicologia dos Transtornos Mentais



Pois é, e não se enganem. De acordo com Holmes, estima-se que 1 a 2% da população mundial sofra de esquizofrenia. No entanto, eu faço um alerta aqui: Esse número pode, de fato, aumentar muito no futuro se as pessoas continuarem a agir , realmente, como se tudo lhes fosse possível.

O que quero dizer é simples: Se você se chama Joaquim, tem 40 anos, é separado, não possui os dentes da frente e está desempregado, aceite que você, faça chuva ou faça sol, não deixará de ser conhecido como Joaquim, separado, desempregado, o que pode acontecer de diferente é que Joaquim pode arrumar um emprego novo, um casamento novo, consertar os dentes, porém, ainda assim, será o Joaquim, aquele de sempre.


Há sempre aquelas pessoas que, não satisfeitas com o que são, adentram, mesmo por querer, no fascinante mundo virtual e pré-esquizofrenizante do Orkut, o paraíso azul/roxo ( João me disse o que era mas ainda não sei, de fato, qual a maldita cor predominante). No orkut, como dito no texto que antecede este, você é sempre o que não pode ser ou não consegue ser. Assim, Joaquim pode omitir o fato de ser desempregado, de ser um fracasso entre as mulheres, e, até mesmo esconder os dentes verdadeiros ou disfarçar as obturações e cáries.


Deste modo, entra-se no universo "fake" do Orkut. Antigamente eu achava que faziam "perfis fake" aqueles que gostariam de bisbilhotar a vida dos narcisistas que se expõem alucinadamente, com o ingênuo intuito de, literalmente, se meter na vida alheia, ver suas 546 fotos, ler seus 500 depoimentos. Infelizmente e felizmente (sim, certo que terei uma boa e vasta clientela perturbada por uns bons anos) descubro que os "Fakes" viraram algo de muito real, uma existência própria nas quais as pessoas se tornam realmente o que desejariam ser, dessa forma, existem "comunidades de doação" de fotos para aqueles que desejam construir sua personalidade falsa.

As pessoas que levam mais a sério esse "jogo" pré-esquizofrênico , surtadas mesmo, levam às últimas consequencias a necessidade de viverem uma vida paralela a ponto de escolherem nomes, comunidades muito peculiares, roupas, passarem horas buscando fotos para construirem uma nova personalidade, quase nunca condizente com as próprias.

Pasmem: existem "fakes" que levam "amigas fakes" ao cinema, ao shopping. Nesse mundo paralelo as pessoas podem ter a idade que quiserem, trabalharem no que quiserem, se vestirem como quiserem. Ok, você poderia dizer, "ah, mas é apenas um jogo, bastante criativo, por sinal".


Eu não acho. Acredito piamente que se nasci me chamando Mírian, interesso-me por Psicanálise, bossa nova e Literatura, morrerei sendo essa pessoa, no máximo vou melhorando as edições de mim - espero - com o passar dos anos. Mas, e essas pessoas que levam tão a sério o universo fake? O que podemos esperar delas?

Bem, eu confesso que o prognóstico é sombrio, essas pessoas podem, como já foi muito pesquisado por psiquiatras e psicólogos, simplesmente entender que a vida real - esta que não é roxa nem azul - é enfadonha demais, preto-e-branco demais, sem graça demais. Risco? Vários: desinvestimento nas relações afetivas e sociais, falta de interesse nos assuntos "reais", transtornos de personalidade, de conduta, enfim, não preciso falar mais para sabermos que estamos diante de um problema de extrema gravidade.

No passado existia a classe dos "rebeldes sem causa", geralmente militantes do PT, candidatos a presidente dos diretórios acadêmicos das universidades, pessoas que se diziam diferentes da maioria, massa manipulável pelo sistema capitalista. Há um tempo atrás, não tão distante, existiam os Emo's, uma espécie de tribo adolescente em que as pessoas eram classificadas de acordo com seu interesse por temas emotivos e sentimentais em diversas áreas de conhecimentos/cultura. Os Emos, em resumo, eram os góticos dos anos 80, só que mais alegres ( Marina, obrigada pela definição).

Hoje, qual é minha surpresa ao saber que não existe mais a categoria dos Emo's! Vejam vocês, mal tinha me acostumado a distinguir as espécimes raras dessa fauna orkutiana/adolescente e fico sabendo, assim, sem nenhuma preparação anterior, que esses seres já estão em extinção, evanescendo do mundo, sumindo por aí, certamente em alguma nave espacial roxa decorada em sua superfície com lágrimas pretas.

Estamos na era dos "fakes", o que é bem mais preocupante do que se você simplesmente usasse roupas pretas e roxas, colocasse uma franjinha cobrindo seus olhos e usasse delineador todo o tempo. O problema está justamente na não-existência dos tais "fakes". Você pode fazê-los, um, dois, três, quantos quiser, conversar com pessoas "reais" ou também "fakes" quando lhe der vontade e, ainda assim, ser o mesmo, de carne e osso, o mesmo que é chamado durante as refeições pelos pais que, na maioria das vezes, mal sabem o que se passa no quarto dos seus filhos.

Com isto não quero eu fazer deste texto uma crônica para pais preocupados, tampouco desejo tomar partido destes nessa situação. O que está em jogo aqui não é uma questão moralizadora, mas um alerta, mesmo, em relação à sanidade mental dessas pessoas que simplesmente embarcam num jogo arriscado e perigoso demais, num mundo em que não existem mais limites entre o "isso eu posso" e o "isso eu não posso".

Eu sinceramente ficaria mais feliz se os adolescentes estivessem ainda pintando seus cabelos de azul ou roxo. Mas, e quando não existe uma existência? Quando você começa a se relacionar com pessoas fingindo ser, toda hora, o tal fake, para, em seguida, ter um outro fake, com outro grupo de amigos? É aí que cabe dizer que estamos numa sociedade "pré-esquizofrenizante".

Veja que universo gracioso: Eu sou fulaninho, tenho um fake que tem fakes e meu fake que conhece seu fake resolve ser amigo do seu fake. Fazemos entao uma reunião fake, com fotos fake de praias fakes, em que estamos comendo chocolates fakes e dançando músicas fakes. Quão maluco é isto?

Realmente, as pessoas não tem limites e o que tenho percebido é que, antes o que era um destino tem virado uma opção. Não sei mais qual é o maior risco: imitar os outros ou inventar uma vida que não existe e vivê-la.

Às vezes me parece que as pessoas estão enlouquecendo por opção, agora. Na falta de grandes problemas estruturais psíquicos, criam os seus próprios. Assim, meu fake pode sofrer de depressão, pode ser viciado em fluoxetina, pode ser maníaco depressivo ou hiperativo. Tudo é uma questão de escolha.

Pegue seu transtorno preferido - aquele que você conheceu semana passada no blog da globo.com - dê-lhe um rosto, um sobrenome e um endereço. Esta aí o passaporte para a esquizofrenia. Depois não vá reclamar quando seu fake começar a falar dentro da sua cabeça algumas coisas bastante esquisitas, quando ele começar a pedir comida.