quarta-feira, outubro 03, 2012

Melanie Klein e a jornada de Fabian: sobre a identificação


Ao ler o primeiro capítulo do livro "Temas de Psicanálise Aplicada" (Zahar, 1955, organizado por Melanie Klein, entre outros) me deparei com algo que muita gente ainda considera novo: a análise de uma obra literária como ilustração de conceitos da teoria psicanalítica, como um bom motivo para estudar.
 
Para aqueles que acham que isto é novidade, a tal da interface, sinto dizer , mas desde Gradiva (1906) Freud tenta ilustrar sua teorização com algumas obras da Literatura, fazendo com que percebamos que, na verdade, o que interessa à Psicanálise é o humano e suas vicissitudes e disto a Literatura está repleta. A literatura ocupa um lugar precioso na Psicanálise, interessando também a outros teóricos que não apenas Freud. É o caso de Melanie Klein.
 
Melanie Klein é uma autora que nem sempre é valorizada como deveria. As pessoas geralmente associam a sua teorização com a clínica infantil, mas é importante que saibamos que os conceitos pensados por Klein são de extrema importância para o desenvolvimento ulterior da Psicanálise como estudo da subjetividade humana, Klein não é so Psicanálise infantil, ela é Psicanálise.
 
Além disto, seus conceitos de identificação projetiva e projeção fazem parte do material de estudo de todo aquele investigador que estuda os delírios e os mecanismos psicóticos em geral. Sendo assim, o que me interessa hoje é falar do capítulo chamado "Sobre a Identificação".
 
Inicialmente, Melanie Klein preocupa-se em definir o que entende por projeção e introjeção e alerta para o papel essencial que estes conceitos relacionados exercem no desenvolvimento da subjetividade. Até aí, nos deparamos com uma teorização sistemática trazida ao leitor por meio de uma escrita fluida e objetiva. Klein consegue ser tão direta e assertiva como poucos teóricos puderam ser depois de Freud, aliás, tanto suas obras, como as de Winnicott me parecem bem agradáveis de serem lidas e compreendidas.
 
 No caso da autora inglesa, acredito que se fala muito sobre a dificuldade que cerca o entendimento de seus conceitos, quando, na verdade, a autora é aquilo que todo escritor deve ser: claro e preciso na defesa de suas hipóteses.
 
 A grande ideia de Klein é que o bebê vive num mundo que é, em última análise,  produto de suas constantes projeções e introjeções. Isto quer dizer que nossa vida deve ser , prioritariamente, produto dos objetos que internalizamos e projetamos no outro. Somos sujeitos que se constituem pela falta e pela fragmentação que permitem que encontremos no outro, algo de nós mesmos que considerávamos perdido.
 
Nisso vejo a beleza da teorização de Klein que neste ponto se associa à teoria de Freud, quando este diz que amamos no outro uma parte de nós mesmos que projetamos no objeto. (Psicologia das massas e análise do eu). Para amar um objeto é preciso - e isso deduzimos - projetar no outro partes do nosso ego que consideramos boas, é preciso ver no outro um quê de familiar para que possamos amá-lo, isto é a base de toda  a identificação para Klein.

Ao dizermos isto não estamos excluindo o fato de que também podemos projetar no outro partes do nosso ego que consideramos más - daí a formação dos objetos persecutórios que , nada mais são do que partes do nosso eu. Acredito que esta concepção lança luz sobre várias problemáticas contemporâneas acerca da violência e dos instintos agressivos.
 
Não podemos esquecer um dos temas preferidos dos estudantes de Psicologia: a subjetividade do psicopata, aquele, que hoje é melhor conhecido como alguém cujo transtorno de personalidade anti-social o levou a cometer crimes muitas vezes hediondos (para sermos cognitivo-comportamentalmente corretos).
 
Identificar-se com o outro é , por assim dizer, reconhecer em alguém as qualidades e os defeitos que separamos de nosso eu e mantivemos em uma galáxia muito, muito distante: isto serve tanto para eu amar o outro, como também para odiá-lo. Inevitável não pensar nos assassinos seriais e suas preferências sexuais, ou no caso de assassinos que preferem ou que apenas matam mulheres, uma vã tentativa de destruir o seio mau (de acordo com a teoria de Klein.
 
O pensamento de Melanie Klein parece certeiro como a matemática: se introjetamos objetos bons advindos do meio, poderemos construir uma vida psíquica mais integrada e livre de fragmentação. No entanto, não existe impulso mortífero que não sucumba à necessidade de integração que todo ego possui. Por isso, a fragmentação nunca se dá por completo enquanto existe vida, isto é dito pela teórica.
 
Estas afirmações parecem indicar uma postura essencialmente positiva sobre as possibilidades do ego se reconstruir e isto se dá porque, desde que nascemos até o dia em que morremos, estamos nos relacionando com o mundo por meio destes complexos elementos que provocam os sentimentos de amor e ódio: estamos vivendo porque introjetamos o outro e sobrevivendo porque projetamos; sentimos culpa porque projetamos, do mesmo modo, podemos reparar um dano, porque nos identificamos.
 
Sendo assim, feliz daquele que pode encontrar os nostálgicos objetos maternos e lançar mão destes para reparar os ataques à mãe amada que o levaram a se afundar num mar de culpas.
 
E a interface nisto tudo? Interessante notar que a leitura psicanalítica de um conto, de uma fábula ou qualquer trecho de uma obra literária nos permite vislumbrar o caráter poético do conceito que se pretende esclarecido através da ilustração. Talvez o interesse de Klein seja tão somente esclarecer os conceitos de projeção e introjeção através da obra de Julien Green, "If I were you" (não sei o nome em português), mas a obra abre espaço para tantas outras possibilidades...
 
Um resumo básico do texto de Green que inspira Klein é o seguinte: um homem considerado por si mesmo mal sucedido e incapaz de atrair as mulheres, em um belo dia conhece alguém, que lhe permite fazer uso de uma fórmula mágica: poderia se transformar em quer que desejasse, havendo apenas uma condição para que tudo se desse tranquilamente: deveria colocar no bolso daquele em quem desejasse se transformar o seu nome original e o seu endereço, para que pudesse voltar, a qualquer momento, ao seu eu original. Nisto há um quê faustiano, aparece o Diabo e diversas tentações às quais sempre sucumbem os homens fracos (na verdade, todo homem).
 
A estória é longamente contada por Klein para depois ser interpretada no melhor estilo "colocando a personagem no divã", o que, diga-se de passagem, não se costuma mais fazer em trabalhos recentes.
 
Apesar da patologização da personagem, sabemos que os conceitos que Melanie Klein parecem ganhar em poesia quando observarmos o troca-troca de "peles" que o sujeito da estória - Fabian - realiza para, afinal, constatar que nada melhor para o próprio eu do que reencontrar-se consigo mesmo depois de uma jornada conturbada para dentro da pele do outro, dos vários outros com os quais acaba sempre se identificando. Há sempre algo de familiar nos outros com os quais Fabian troca de pele.
 
Seguindo seu objetivo, Klein nos explica a estória da personagem-paciente, seus impulsos agressivos diante do pai, o sentimento de culpa gerado pela percepção dos objetos maus que foram capazes de lesar o outro, o sentimento edípico de Fabian por sua mãe que, ao mesmo tempo, permite que este perceba os objetos bons advindos desta e se reconciliar com a figura do pai, possibilitada pela aceitação da religião (o Pai).
 
Acredito que estas poucas informações tenham deixado qualquer um que chegou a ler este texto até aqui no mínimo curioso. O que quero com tudo isso é chamar atenção para a beleza que estes conceitos engendram: apesar de muitas vezes estejamos falando de fragmentação, seio mau, agressividade, impulsos de morte, etc. Perceber desta forma seria apenas reduzir a tarefa de Melanie Klein.
 
Sendo assim, entendemos que estar na pele do outro acaba sendo a melhor forma de recuperarmos a particularidade de nós mesmos. Isto deve ser o fundamento do que a Psicologia Social chama de empatia, pois empatizar é, em última análise, "colocar-se no lugar do outro, como se ele fosse, adquirindo características deste" (Houaiss). E aí eu complementaria Antonio Houaiss: adquirindo as características do outro que, são, na verdade, minhas.
 
Para quê serve estar na pele do outro? Serve para nos constituirmos como sujeitos. A jornada de Fabian não foi em vão, aprendemos com Klein.

quinta-feira, abril 26, 2012

O evento, o Real e Paul McCartney


O dia de 21 de abril de 2012 será lembrado como  o dia em que me encontrei com o Real. Segundo os desdobramentos lacanianos. O Real é tudo aquilo que não podemos abarcar por meio de símbolos, o Real mais se aparenta com um acontecimento, com um evento. Eu lembro agora de outro momento, que talvez não tenha muita relação com o que eu estou tentando dizer, mas acabei me lembrando.


Lembrei agora de uma palestra de um filósofo que me chamou bastante atenção: ele falava de amor, falava da necessidade atual das pessoas disciplinarem o amor, higienizarem as relações a ponto de pouco sobrar para nos deixarmos arrebatar. Você poderia agora pensar: Filosofia, Real, amor?Como estes fatos se entrelaçam com o tal 21 de abril?

Vejamos os argumentos: segundo o tal filósofo, o evento seria algo que não podemos programar, algo que irrompe, que nos toma de assalto e tem a característica imútavel de ser surpreendente. O evento é um acontecimento e isto deve nos arrebatar, justamente porque não o programamos, ele apenas acontece e nos toma.
Poderia falar da consequência disto para as relações amorosas. Vou insistir no Real, e percebemos que o evento é parte do Real,  é mesmo aquilo que não se inscreve. Vejamos: se estamos realmente envolvidos e tomados pelo evento, ele é o Real, aquilo que, por mais que tentemos, não conseguimos simbolizar.

Agora vem a parte mais interessante, voltemos ao dia 21 de abril de 2012. Deu-se o evento para mim, o evento verdadeiro. Inesperado, surpreendente. O que não posso simbolizar, mas tentarei porque sou um ser simbólico. A partir daqui, então, esqueçam os ensinamentos sobre Lacan e seu Real, esqueçam o filósofo e seu evento. Vamos ao que arrebata.
O evento do qual falo é tudo aquilo que não consigo abocanhar com os símbolos dos quais aprendi a dispor quando cresci: Sou fã dos Beatles, minha identidade , minha vida como sujeito se formou junto com os quatro de Liverpool. John Lennon, Ringo Starr, Paul McCartney e George Harrison sempre foram para mim os amigos de infância que não tive, as pessoas com as quais compartilhei meus momentos mais marcantes, e falo isso sem o temor da pieguice. Falo apenas o que se dá.

Depois de vários anos de Beatlemania solitária, eis que o improvável acontece: surgem boatos em fevereiro que sir Paul McCartney se apresentaria no Nordeste, em Recife, cidade vizinha à minha. Esta seria a terceira visita consecutiva do ex-beatles ao Brasil, tamanha frequencia causava uma espécie de descrença por parte de todos os beatlemaniacos brasileiros: seria estranho Paul estar no  Brasil, de novo, em tão pouco tempo, numa capital do nordeste que tem fama de ser megalomaníaca, enfim, em poucas palavras: não seria mais do que um boato.

Até que o impensável se dá: Paul realmente vem, e eu seria uma das pessoas que se cercaria de todas as informações possíveis sobre esta vinda tão estranha, e ao mesmo tempo tão esperada: eu estava arrodeando o evento, procurando me informar sobre as homenagens, sobre o set list , sobre tudo enfim que diria respeito a Paul. Eu estava tentando programar o evento, comprando ingresso, programando a viagem.
O dia do evento chega, e falo evento porque assim ele é referido: o evento começaria às 21:30 da noite, em um estádio de futebol, e os portões se abririam ao público desde às 17:30.
Depois de muito tempo na fila, já sentia uma espécie de comoção por conta da situação, das pessoas do país todo que se espremiam e se maltratavam naquela fila quilométrica. Eis que entro no tal estádio e busco um lugar na frente. É interessante porque não me servia qualquer lugar, à despeito de qualquer advertência, de qualquer ressalva financeira, decidi gastar os tostões que tinha numa experiência que valeria por uma vida.

Às 21:35, aproximadamente, sir Paul McCartney aparece, eu digo aparece porque foi num lampejo, de um simples palco à espera, cheio de parafernalhas eletrônicas, instrumentos e pessoas trabalhando exaustivamente, ele chegou e tudo parecia fazer sentido, ou não fazer nenhum sentido. Pergunto-me agora a sensação que tive ao vê-lo ali, na minha frente, o homem das capas dos discos, o homem que está no quadro no meu quarto, na minha caneca preferida, enfim, era Paul McCartney.  E falo isso
 sem o temor da pieguice, insisto.

Aí entra o conceito de evento, como inesperado. Por mais que se houvesse anunciado o tal evento, o evento em si, o show, a visão de Paul ali, reluzente, vivo, elétrico na minha frente, era a personificação do evento, do inesperado que, por mais que tivesse sido esperado, acalentado nos melhores sonhos, a sensação reinante em mim era: como é possível?

Nesse momento estou buscando associações, revivendo as experiências sensoriais vividas no dia, e não consigo , de maneira alguma, transformar isto em palavras: estamos na seara do Real. Por mais que eu tente, por mais que existam registros de que realmente o show aconteceu, eu não consigo compreender como aconteceu.

O Real é o que não se explica, naquele momento não filmei, não me preocupei em registrar o momento incessantemente por meio de fotografias; tirei algumas, mas ainda não acredito no que elas me mostram. O Real de Lacan se apresentou para mim ali, com Paul McCartney cantando todas as canções da minha infância e seminário nenhum iria me dar melhor definição do que vi, e precisamente do que senti, ao ouvi-lo cantar, ao alimentar meus olhos com a visão daquele que tão frequentemente habitou os meus melhores anos de vida - decididamente não temo a pieguice.

E quanto mais eu penso e tento articular teoria ao evento inesperado, sempre será o evento que me arrebata e que me deixa sem palavras, porque não existe símbolo nenhum no mundo que consiga traduzir a sensação do encontro com o Real, ali, a 15 metros de mim, por quase três horas. Infinitas horas de encontro com o Real.

quarta-feira, abril 04, 2012

É o fim? De novo?


Lançado em 2005, pela editora Arènes, na França, o Livro negro da Psicanálise tomou impulso e em 2011 foi lançado em terras tupiniquins pela editora Civilização Brasileira. O que trago aqui é fruto de uma lembrança, trazida a mim por meio de um link em uma rede social: em algum lugar do passado, houve uma pessoa que escreveu uma resenha sobre o tal livro, isto chegou a mim e me fez pensar muito sobre o assunto no qual me enfiei desde 1999: a Psicanálise - a metapsicologia freudiana, a invenção do inconsciente, ou seja lá o nome que queiram dar ao que Freud inaugurou.
Conheci o Livro de "ouvir falar", portanto não esperem de mim uma outra resenha sobre o livro, pois para se fazer uma resenha de um livro é preciso preencher um pré-requisito básico: lê-lo. Eu não o li. No máximo alguém pode considerar isso aqui uma "resenha da resenha".
Soube de sua existência através de uma publicação de Elisabeth Roudinesco (psicanalista e historiadora da Psicanálise), em 2010, quando comprei "Em defesa da Psicanálise". Percebi em Roudinesco um ímpeto jamais visto na defesa do seu objeto de estudo, não era pra menos - pensei - a mulher é historiadora da Psicanálise, reúne em seu nome os textos mais influentes da área dos últimos anos, então é capaz que ela esteja falando também do lugar da indignação - sejamos francos, é duro ver algo em que acreditamos ser enxovalhado em praça pública: dei um desconto à Roudinesco, pelo seu envolvimento passional num debate não menos acalourado que surgiu na França, no ano de lançamento d'O livro negro.
Hoje o tema volta à tona: Através do link que me foi enviado, li uma resenha sobre a publicação que acaba com a reputação de Freud e de quem mais defender a ideia de inconsciente escrita por alguém , talvez, menos apaixonado, ao menos no referido texto: Ricardo Cabral consegue - mais ou menos - encontrar um meio de falar d'O livro sem se deixar cegar pela Psicanálise e seus fundamentos que são duramente criticados na publicação de origem francesa e tampouco se deixar convencer do que a TCC é a bola da vez. Interessante texto que acreditava num debate igualmente acalourado que surgiria no Brasil, com o evento da publicação do livro pela Civilização Brasileira. Outra resenha, publicada em março do ano passado na Folha de São Paulo, pelo jornalista Fabio Andrighetto, nos mostra o mesmo: a esperança de um debate frutífero entre profissionais de várias áreas. O único problema de Andrighetto é a ignorância: em sua resenha percebemos para além do interesse no debate, percebemos uma crença no fato de que a Psicanálise está morrendo, está em "franca decadência", segundo suas palavras. Veremos.
O livro que causou estas resenhas foi lançado no Brasil, como disse anteriormente, em 2011. A resenha de Cabral é de 2011, a de Birman e a de Andrighetto também. A pergunta que não quer calar é : Alguém viu debate?Alguém viu psicanalistas brasileiros se revoltando contra a publicação organizada por Catherine Meyer?Alguém viu entusiastas das neurociências subindo em palanques, gritando, enxovalhando com a cara de Freud, pisando em Lacan, Klein, Winnicott e companhia, citando passagens do referido livro?
Ora, se alguém viu, por favor me diga, me mandem links , pois não vi nada que seja considerável a não ser algumas meia-dúzias de resenhas - mais ou menos - imparciais, defendendo uma das nações em conflito: TCC é a esperança dos dias atuais? A Psicanálise continua a salvação por sua abordagem do sujeito psíquico? Não vi opositores, não vi batalha, não vi guerra, não vi sangue.
Não vi nada, e como não sou francesa e nem sequer pisei na terra de DeGaule, insisto que o debate foi xôxo, borocoxô , quase nada perto da guerra de farpas que aconteceu em Paris. Me perdoem os mais informados do que eu, mas não considero essas resenhas dignas do termo "debate acalourado". Não credito esta falta de investimento libidinal no tema como alguma característica especificamente brasileira - coisa da qual francês sentiria falta- ou nada que o valha. Credito ao fato de que, talvez - e digo talvez porque não tenho certeza - talvez sejamos menos passionais que os franceses . E eu nunca pensei em dizer isso.
Talvez tivéssemos percebido o óbvio, talvez tivéssemos percebido o que Roudinesco, J.A Miller e tantos outros não viram: não há como destituir a Psicanálise do lugar que ela ocupa utilizando os argumentos de "O livro negro da Psicanálise". O fato é facilmente compreendido a partir do momento que consideramos que o tal livro não mostra muita coisa além do que Freud mesmo já tinha revelado: de que não acertou todas as vezes, que sua teoria estava em franco processo -eterno- de construção e que sua teoria era uma mitologia. Nada novo no front.
Em "Estudos sobre Histeria", Freud mesmo diz que deixou de entender algumas das patologias que cercavam de mistério os fenômenos histéricos. Freud, sim, ele mesmo, entendeu sua impossibilidade de compreensão e creditou isso a ninguém mais do que ele mesmo. Ele foi incapaz, ele por certas vezes também acreditou que poderia ter feito melhor, se soubesse de outras coisas que não sabia no momento. Daí referir-se a Freud como o rei dos embustes, francamente não é postura científica que se adote. Toda e qualquer ciência deve se valer de argumentos plausíveis, passíveis de observação e verificação.
Sobre isso, encontrei uma outra resenha não menos interessante sobre a tal publicação , da autoria de Joel Birman, esta que talvez tenha sido mais aguerrida, algo próximo ao tão desejado debate acalourado, segundo Birman, há em, "O livro Negro", toda uma agenda política que se descobre facilmente numa simples tarefa de metodologia: a ordem dos capítulos, nos adverte o autor, é totalmente manipulada para que o grand finalle coincida com a ascensão da mais nova esperança em termos de tratamento psicoterápico: a TCC.
Talvez essa resenha de Birman tenha feito parte do que muitos queriam ver no Brasil: o famoso debate. Eu insisto, não vi nada, nada de novo. Ao que parece é tradição, de tempos em tempos, aparecer um ou outro livro, um ou outro teórico disposto a acabar com as bases de uma teoria, de um conhecimento já consolidado. Mas, e qual o mal nisso? Nenhum. A ciência nasceu assim e - ainda bem - continua evoluindo graças à opiniões que contrastam, isso também aprendemos em Metodologia da Ciência - isto é quebra de paradigma, isto é importante, é vital.
Desta forma, é tradição, de tempos em tempos, vermos estampados em revistas semanais a pergunta recorrente: "Há espaço para Psicanálise?" "Freud é necessário, ainda?". Outras publicações, dependendo do grau de sensacionalismo com o qual esteja comprometida, substituirá a interrogação e estampará em suas capas simples assertivas. "Freud está morto.", "Fim da Psicanálise". Estratégias de marketing à parte. Pensemos sobre essas questões.
Nunca vi um psicanalista organizar coletânea ou livro que seja para falar mal de outras psicoterapias. Talvez isso soe infantil. Talvez seja, mesmo, infantil. Mas o ponto que quero
ressaltar é o seguinte: ataques à invenção freudiana acontecem desde que Freud ainda estava vivo para se defender. A teoria evoluiu, faz uso de interfaces, promove debates sobre questões de interesse social, dialoga com outras áreas do saber, mas não abandona o que mantém em sua essência, desde Freud: o sujeito.
Segundo as poucas resenhas de psicanalistas que vi por aqui sobre o livro, há uma necessária objetificação do sujeito, alguns acreditam mesmo no mundo sem o sujeito e um ou outro ataque às neurociências. Freud acreditava nas neurociências, mas sempre deixou espaço para que pudéssemos pensar no primordial: nosso objeto de trabalho é a escuta, é a disponibilidade do próprio inconsciente em contato com outro inconsciente (Antonino Ferro, psicanalista italiano nos lembra muito bem disso) e, portanto, o novo da Psicanálise - é, portanto, o velho: o sujeito e seu inconsciente - esta frase não é minha, é de outro psicanalista cujo nome não me recordo agora.
Para defender Freud poderia continuar este texto lançando mão do fato de que o mundo contemporâneo esquece do sujeito, que hoje somos seres medicados e alienados, que vivemos a cultura do DSM-IV, da banalização de substâncias químicas, do reinado dos hormônios e afins, mas não, não farei isso, porque acredito que seria muita superficialidade dizer que todas as teorias que são contrárias à Psicanálise estão erradas e que todas estão aí esquecendo em toda esquina o pobre do sujeito, mais sujeito do que nunca.
Não é por aí, ao menos não quero "ir por aí". O que quero dizer é simples. Se O livro negro da Psicanálise equipara à Psicanálise à regimes políticos sangrentos ao devotar um capítulo sobre "as vítimas da Psicanálise", seus defensores deveriam também perceber que esse argumento de destituir Freud do lugar em que ele se encontra atualmente é, no mínimo, falta de assunto. Todo mundo já disse tudo sobre isso: as pessoas se posicionam, contra ou a favor, escrever uns textos, umas resenhas, o que gera um ou outra polêmica, que gera mais repercussão e pronto, acabou o assunto porque surge outro mais interessante.
Quero dizer que O livro negro que defende a ideia de que a Psicanálise mais mal do que bem fez à sociedade moderna, acusando-a de pseudociência, esquece-se do fato de que, qualquer um que falasse de mente e não fizesse parte das ciências naturais era visto com desconfiança. Precisamos lembrar que Kant, o próprio, acreditava que a Psicologia - como um todo - nunca seria ciência, posto que não lida com argumentos matemáticos. Ou seja, era a Filosofia nos empurrando de um lado, e a Psiquiatria e as ciências naturais nos enxotando de outro: isso nos iguala, psicólogos das mais variadas tendências e correntes teóricas.
Criticar Freud não é novidade, falar que Psicanálise não é ciência e alçar a TCC como única forma possível de tratamento não é nem um pouco lúcido, haja visto que Kant nos coloca todos no mesmo saco, eu, o gestaltista, o psicodramatista, o cognitivista: lidamos com o invisível, e, para Kant, isto não merece ser considerado científico.
Essas reflexões não vão me fazer comprar o tal livro, já sei que se trata de um ataque desconjuntado à Psicanálise, sobre o fato de não ser ciência, muitos outros autores, como Fèdida e Figueiredo falaram melhor que eu: não se necessita de qualquer que seja o "tribunal epistemológico" para comprovar a validade da Psicanálise.
Figueiredo diz isso, e eu nunca esqueci a imagem mental que formei do tal "Tribunal": aqueles juízes envelhecidos, de perucas, pregando a velha e boa metodologia, do alto de suas tribunas, perguntando a um Freud, réu, diminuto, o que seria a base metodológica da Psicanálise, como confiar em seus achados que, em muito, não passavam de meras observações clínicas?
Nunca esqueci o tribunal. Mas d'O livro negro da Psicanálise eu esqueci, não porque recalquei, mas porque me foi indiferente. Li o livro da Roudinesco e entendi - até mesmo valorizei - sua enésima tentativa de defender o indefensável, li estas resenhas as quais me referi e pronto.
Não me afeta, não me diz nada, porque nada novo tiro de tudo isto. Para não dizer que não foi útil voltar ao tal livro, agora um sentimento novo me toma: de súbito um calafrio de medo, medo não do livro, mas do que podem fazer com o livro os menos perspicazes que passarão a postar frases do livro, trechos sensacionalistas e começarem um levante "Fora Freud!Fora Lacan e suas lacanagens", medo da repercussão disso nos círculos mais inocentes, porque os escaldados já entenderam que não se pode defender a Psicanálise pelo simples motivo de que ela não precisa de advogado.

segunda-feira, fevereiro 13, 2012

"The artist", voz , barulho e silêncio


Arrasando em todos os prêmios do ano, o maravilhoso "The artist", idealizado por Michael Hazanavicious, tem sido motivo de muitos comentários no meio cinematográfico atualmente. Polemizado por muitos, o filme resgata o glamour da era de ouro do cinema Hollywoodiano com delicadeza e simplicidade.
Trata-se da história de um ator de cinema mudo que passa por turbulências em sua carreira motivadas pelas mudanças na indústria da sétima arte empregadas com fins mercadológicos e políticos.
A saga de George Valentin que encarna o protagonista vai do estrelato ao esquecimento, do glamour à tragédia. Um ator com ótimo tempo para a comédia que não parece imitar os astros dos outros tempos; ao contrário, torna nostálgico qualquer cinéfilo que acompanhou as desventuras de Fred Aistaire na grande tela. O roteiro já ganhou o prêmio Bafta, acompanhado do figurino e da fotografia. O filme - ninguém duvida - será a sensação do próximo prêmio da academia, o famigerado Oscar, da cabeça aos pés decidido politicamente que parece que vai se render ao clima nostálgico que "The artist" provoca: uma curiosidade para quem ainda não viu: o filme é mudo.
Esse é o ingrediente indefectível do filme, talvez o ingrediente mais arriscado que Hazanavicious não pareceu temer: em plena era do 3D e das reprises de grandes clássicos do cinema moderno se adaptando a esta nova tecnologia, "The artist" é um filme mudo, em preto e branco, que gasta seus minutos para contar uma história que não apresenta tanta novidade: um amor, muitos obstáculos, sucesso, comédia e ação. Até então, nada novo no front e é exatamente isso que seduz tanto.
Se não há novidade, poder-se-ia perguntar: então estamos voltando ao passado? Dispondo de tanta tecnologia , em plenos 2012 um diretor francês resolve testar a inteligência e a paciência do espectador ao submetê-lo a esta história que, como já disse, não revela nenhuma novidade.
A questão não é puramente nostalgia, o filme é bom como seria nos anos 20; uma história verossímil, um roteiro sem defeitos que leva o espectador a experimentar as mais diversas sensações. É nisso que "The artist" consegue ser genial. Mas há outro fato a se comentar: a impaciência contemporânea.
Em se tratando de um filme mudo, algumas pessoas - desconhecendo a sinopse - resolvem, em uma atitude que lembrava o repúdio, abandonar a sala de cinema. Presenciei na noite em que vi o filme mais de cinco pessoas deixando a sala ao entenderem que não haveria voz na produção francesa. Ironicamente, o filme também trata da questão do silêncio em seu roteiro, mas é interessante fazermos aqui um paralelo cabível.
Se na tela, o que presenciamos é o auge e a decadência do cinema mudo através das produções da fictícia "Kinograph", o incômodo que causa a mudança do sucesso garantido do cinema que se satisfazia com a mudez, para a aposta no escuro nos novos filmes falados; o que se passa do outro lado do ecrã é o oposto: a mudança provocada pelo incômodo silêncio que atualmente se encontra cada vez mais fora dos planos da sociedade contemporânea, tão bem representada pelas super produções hollywoodianas repletas de efeitos especiais os mais barulhentos possíveis.
Bem dizer estamos na era do barulho, mesmo que não se esteja falando de barulho físico, do som estridente, estamos na era da "onipresença", em que as pessoas usam redes sociais como diários de uma vida, com um roteiro pré-estabelecido do qual todos devem saber/seguir/acompanhar.
O silêncio, nos dias atuais é quase uma ofensa, é repulsivo. Como podemos tolerar um filme mudo se não toleramos o próprio silêncio? O mais puro silêncio é feito de incômodo que nós, seres contemporâneos, visamos incessantemente tamponar. Por acaso não estamos falando aqui de subjetividade? Perdi o bonde ou estou falando algo coerente?
Na falta de uma resposta e de leitores, arrisco - parcialmente - a dizer que estou chegando em um ponto interessante: o silêncio insuportável para muitos que deixam a sala de cinema em "The artist"é o mesmo silêncio intolerável que se evita quando se inunda o mundo de palavras, de caracteres, como queiram.
Nossa relação com o silêncio sempre será problemática enquanto não buscarmos compreender o que não cessa de tagarelar internamente e que, no entanto, não estamos dispostos a escutar; fazemos barulho para tamponar o barulho que não cessa, parece contracenso, parece loucura, mas não é de um todo incoerente.
Fazemos tanto barulho numa espécie de competição sobre quem fala mais alto: eu ou esse isso que me atormenta tanto aqui do lado de dentro. A metapsicologia de Freud foi uma das primeiras tentativas de se dar voz ao que tagarelava indiferente dentro de nós. A chamada "Cura pela fala" permitiu que soubéssemos vislumbrar o que havia de tão estridente nos porões de uma mente que não se deixa conhecer. A ladainha freudiana sobre o silêncio e a voz é antiga, tem mais de cem anos e continua a impressionar.
Da mesma forma que as pessoas não dão uma chance a um filme mudo, ou não parecem dispostas a dar, elas não se tornam nem um pouco mais afeitas a deitar num divã e vasculhar os lugares mais barulhentos do lado de dentro. Isso é fato. Não precisamos falar do que está calado, mas , será que está mesmo calado? Entre escutar - e para isso é preciso silêncio - e agir (passar ao ato), nos dias de hoje se torna mais interessante agir. A ligação entre filme e o trabalho psicanalítico me parece pertinente agora.
Como este não é um post sobre o filme, mas o usa como pretexto, não poderia encerrar sem lembrar do que ouvi, dos comentários após as luzes se acenderem. Um é digno de nota: ao ser perguntada sobre o filme, se havia gostado do que vira, uma garota respondeu: "Er, é assim né, é todo mudo".
A expressão de desgosto parecia evidente no rosto da menina. O julgamento simples sobre se tinha apreciado o filme ou não foi respondido desta forma. Cabe também mencionar que, nesta mesma sessão, telefones celulares tocavam e as pessoas calmamente respondiam - o que nem sempre acontece, pois no cinema todos costumam olhar com desprezo para aquela pessoa desligada que esquecera o celular ligado. Isso me faz entender que as pessoas imaginavam que não seria tão mal educado assim deixar o celular tocar e pior, falar ao telefone, durante um filme mudo, pois não haveria prejuízo algum no acompanhar das cenas, da trama. Mais um erro.
É. O post não é sobre a trama, os atores, os diretores e todo o pessoal que tornou possível "The artist", é mais sobre as pessoas sentadas numa sala de cinema não suportando estar vendo um filme mudo. E isso dá tanto pano pra manga...

segunda-feira, janeiro 02, 2012

Um vencedor




Considerado o melhor filme documentário no Brasil no ano de 2011, Senna (2010) não nos mostra nada de inédito, mas tem o mérito de nos relembrar certas lições que aprendemos com um dos maiores ídolos que o Brasil já conheceu.



Acompanhando os passos de Ayrton Senna, piloto nascido em 21 de março de 1960, o documentário revela o submundo do automobilismo, antes mesmo de toda a parafernalha eletrônica tomar conta da F-1, tornando o esporte, no mínimo , chato, asséptico e previsível. Antes de Schumacher existiram algums ídolos dos quais poucos esquecem.


Senna vale ser visto e revisto por todo aquele que deseja entender melhor como alguém pode vencer mesmo diante de diversidades. Diante da politicagem que já corria solta no mundo perfeito imaginado pela FIA, diante de inimizades, inveja e injustiças, Ayrton Senna mostrou perseverança, obstinação e firmeza, qualidades tão em falta nos dias de hoje, nos ídolos atuais.



Inúmeras são as passagens mostradas pelo documentário nos quais percebemos a garra que fez de Ayrton um campeão. Longe do cenário bizarro que envolve os grandes nomes do futebol atualmente, longe das baladas, das mulheres-fruta, dos anabolizantes , drogas e álcool, Ayrton Senna deu uma lição de como insistir em um objetivo.



Quando perguntado sobre o que a vitória significava para ele, Senna costumava dizer que esta era como uma droga, uma vez vencendo, difícil seria deixar de se levar pela busca dessas sensações que envolvem coragem e firmeza. Só não concordo com o campeão sobre sua opinião a respeito da similaridade entre droga e vitória: Ao contrário da vitória, a droga tira a coragem e destrói. Uma vitória prepara para a próxima.



Apesar de ser um ídolo esportivo, Senna teve um importante papel para a auto-estima do brasileiro que, nos anos 90, via em seu campeão o único motivo de orgulho da nação. Um país soterrado por uma inflação gigantesca, um povo miserável que tinha nos domingos a possibilidade de esquecer um pouco a miséria em que vivia para torcer pelo ídolo que, apesar de ter origem abastada, nunca esqueceu de revelar a qualidade mais rara encontrada nos seres humanos: humildade.



A história nos leva aos três campeonatos mundiais para nos guiar, finalmente, para a curva final, no famigerado GP de Ímola, onde Senna perdeu a vida, apesar de seus pressentimentos. Espiritualidade também marcou sua vida e nos faz entender melhor quem foi essa pessoa que deixou o mundo no auge de seu sucesso.



Passaram-se quase 18 anos e Senna continua presente em cada homenagem que se faça a sua garra e determinação, tão em falta hoje em dia. Achei que este seria um bom motivo para escrever: um ano gastando seus primeiros dois dias, as pessoas pensando no que fazer para viverem melhor e uma lição nos ensinada sobre humildade, generosidade e persistência.



Para mim alguns aprendizados para toda vida: não existe o impossível, apesar de ser clichê, poucos de fato acreditam que podem fazer a diferença, não existe o incompreensível e não existe dificuldade nenhuma que a força de vontade não vença. Coragem, coragem.