segunda-feira, maio 23, 2016

Não empoderemos Rihanna!: sobre os riscos de entender o significante arbitrariamente

 Não é tão polêmico assim, como parece. Começo trazendo Lacan  para me justificar e, mais que, isso, me embasar:

O que, com efeito, constitui o fundo da vida, é que, para tudo que diz respeito à relação entre os homens e as mulheres, o que chamamos de coletividade, a coisa não vai, e todo mundo fala disto, e uma grande parte de nossa atividade se passa a dizer isto.

Lacan , Encore, p.46

Em tempos em que palavras como "empoderamento" e "coletividade" são proferidas por todos os cantos, cabe ressaltar que dentro de um discurso específico, esse discurso analítico que alerta sobre a equivocidade da linguagem, para o deslizamento que caracteriza o campo dos significantes, não faz sentido algum falar em coletividade quando se trata de homens e de mulheres, especificamente sobre relações entre ambos os sexos, entendidos aqui como efeitos de um discurso, como posições discursivas.

Isso me faz lembrar de uma entrevista que vi com a ótima autora que estuda o feminismo, Camile Paglia, quando ela desconfia de que existe um algo além no discurso de uma vítima de violência. Ela cita o caso de Rihanna, cantora famosa, bem sucedida, representação contemporânea do que "deveria ser uma mulher de sucesso” que se justificou em rede de televisão por ter perdoado seu agressor, seu controverso par, Chris Brown, dizendo apenas que ele precisava de alguém, que ele precisava ser cuidado.

Como explicar Rihanna? Acredito que não devemos tentar explicá-la, não devemos nem tentar absolvê-la por tê-lo perdoado, nem vitimizá-la apenas, vamos tentar ficar longe de qualquer resposta apressada, mesmo que hoje em dia isso seja quase impossível.

Como empoderar Rihanna? Como fazê-la a diva de si mesma? Como torná-la alguém liberta dessa relação opressora como alguns poderiam definir sua relação com o antigo namorado? Como enxergar Rihanna nesse caso de completa subserviência ao agressor? 

Penso que devemos ir além da simples e muitas vezes despreocupada menção de termos da moda para que possamos entender "coletividade" e "empoderamento" como aquilo que de fato são: nada mais, nada menos do que significantes, estes que são causadores de  efeitos de significado. 

Sendo assim, coletividade e empoderamento ou seja qual for a palavra, ela não significa nada sozinha. Coletivizar noções e fazê-las caber num lugar que não é capaz de comportar nenhum “ideal” é fazer nada, é ficar batendo a cabeça na parede, ininterruptamente. Coletivizar as mulheres não diz nada sobre A mulher. A correspondência entre o individual e o coletivo é bizarra sob o ponto de vista que trazemos aqui.

Partindo do que diz Lacan, é estranho dizer que se pode empoderar a mulher por muitos motivos, um deles seria que dar poder a alguém significa lhes dizer o que fazer, torná-la protagonista de sua própria história, torná-la “multiplicadora de si mesma” – outro dia ouvi isso de uma pessoa, o que me assustou. 
Dar poder a alguém não diz nada sobre entendimento de um discurso que é liame social, dar poder a uma, a duas mulheres,  não significa nada porque isso significa desconsiderar as tramas específicas de um discurso que marca lugares próprios para cada homem, para cada mulher. 

Não se pode dar poder a alguém tentando fixar modelos ou imperativos que são alheios ao que o sujeito é, ou seja, alheio ao que funciona em seu discurso.
 E isso quer dizer que ninguém jamais pode receber uma fórmula pronta, um “como ser” ou um poder que venha de um outro lugar, isso é quase perverso, arrisco. 

Curioso é que há uma necessidade de “fazer ver” “fazer o outro enxergar”. Não sei se isso é possível, não parece ser, não do ponto de vista psicanalítico, mas esse é somente mais um discurso, como tantos outros que vigoram por aí....logo, nada o torna aparentado ao que possa ser uma “verdade”, pois esta é democrática: a verdade não se mostra toda para ninguém, por isso que a gente tenta tanto explicar, dizer, empoderar...
Voltando à Rihanna, cabe também pensar o que significa esse “cuidado” do qual Chris Brown não pode prescindir, o que é isso que torna essa mulher tão emocionalmente  vulnerável a um espancador?

A quem cabe significar o que existe entre Rihanna e Brown? Ao coletivo? A mim, a você? Aos psicanalistas? Aos feministas? Não,  não cabe a ninguém. Os jargões midiáticos da vez podem ser fortes e cheios de impacto social, mas não podem alcançar nenhum lugar além do qual ele realmente pertence: o campo da linguagem.

Nada apaga a ideia de que o único lugar em que o significante se presta a ser alistado é o dicionário. No discurso dos sujeitos o significante é convocante, causa efeitos, causa significados polissêmicos. O significante não é pedra, ele é lodo e é feito pra escorregar. Para nos fazer escorregar e com isso revelar a banalidade que nos constitui. 

“Coletividade”, “Empoderamento” “Protagonismo”, you name it, são apenas significantes que, sozinhos, não querem dizer absolutamente nada, pois só fazem sentido dentro de um discurso representante de um liame social, essa ligação, esse liame com o outro não é outra coisa que a relação que cada mulher mantém com um homem dentro de uma realidade que também não pode ser outra que não discursiva.

O problema está justamente encrustado na fácil solução da receita do bolo, em tomar o significante como algo totalmente desencadeado de um discurso, é tornar o significante pedra, quando na verdade ele é líquido, escorradio e por isso, perigoso, pois é na sua queda que podemos pensar em talvez entender certas relações que se fundam em violência, em abusos. Tomar o significante como significado é erro, e desse erro podem nascer as mais terríveis soluções. Ser mulher é ser qualquer coisa dentro de um discurso que só faz sentido para aquela mulher, por isso o significante não é arbitrário, mas, ao contrário disso, é perfeitamente encadeado dentro de uma rede de sentidos que só fazem sentido para uma mulher, eis outro império que cai: o do significado unívoco. O singular jamais será definido pela invasão coletiva, por mais boa vontade que haja entre aqueles que desejam empoderar. Não é tão simples assim.

Portanto, penso que não vamos conseguir empoderar Rihanna, também não devemos julgar “a mulher sem açúcar” que apanha dia útil e que é alisada em dia santo, tal como Chico a descreveu.  E nada disso que estou dizendo significa ser conivente com qualquer violência – se você entendeu isso, leia de novo, sugiro recomeçar a leitura agora. Não seremos nós as testemunhas silentes diante do apedrejamento de Geni. O que estou dizendo tem a marca de um discurso que não ignora o inconsciente.

A mulher não existe e qualquer tentativa de empoderá-la que ignore o discurso que tece seu lugar em uma relação com o masculino se transforma num redundante fracasso.

quarta-feira, novembro 11, 2015

Vergänglichkeit ou o relato verdadeiro de um péssimo passeio numa paisagem de verão




"Tudo o mais que, de outro modo, ele teria amado e admirado, lhe parecia
despojado de valor pela transitoriedade que era o destino de tudo"



O passeio de Freud e seus amigos serviu para fazer a humanidade entender sobre luto e sobre perda. O pretexto para a argumentação freudiana foi um episódio ocorrido num dia que se imagina ensolarado e tranquilo ao qual facilmente podemos atrelar imaginariamente as melhores paisagens e os mais ricos vestígios da obra divina, transposta para o que seria a mais maravilhosa das telas, se não fossem as tintas da própria realidade, se não fosse real o azul do céu e, portanto, se não estivéssemos a caminhar sobre a relva verde, quase pedindo-lhe licença a cada passo em busca de novas descobertas.

Não, a essa altura não estamos mais imaginando. Peço-lhes, inclusive, que não imaginem mais, imaginar é quase pecado, apenas ouçam o meu relato, com a mesma atenção que ouviram o texto de Freud que continua ecoando em vossos ouvidos, sendo celebrado e reverenciado por tantos outros ouvidos.

 Sei que a autoria célebre torna o texto imortal, mas há que se fazer justiça a quem o originou, quero dizer, há que se intuir a importância das demais personagens só brevemente mencionadas no mais famoso relato que se tem notícia sobre a transitoriedade das coisas em tempos de guerra. 

E digo mais: personagens só brevemente mencionadas e com o único propósito de  validar os argumentos e desdobramentos teóricos daquele que veio a se tornar o cientista do século, aquele que roubou o fogo de Zeus e lho deu aos homens, a este, todas as reverências; aos outros, o esquecimento mais cruel, à descoberta prometeica, todos os louros, à realidade, as sombras do inferno. 

Pois eis que chego a meu intento. Até agora não entendo, verdadeiramente, como a curiosidade humana não buscou saber mais sobre mim e sobre "o jovem poeta já famoso" (FREUD, 1916, p. 186). 

Somos como sombras dispostas exatamente onde herr professor nos colocou, tal como marionetes, a tornar seu relato mais belo, mais profundo, mais verossímil. E quanto a nós, o que nós temos a dizer sobre esse dia? Alguém já indagou sobre quem somos?

Aguço a curiosidade do leitor atento no intuito de saber se, de fato, existe qualquer traço de incômodo, qualquer fagulha de interesse em saber sobre nós, os outros, os esquecidos, as marionetes de Freud, aqueles seres quase anônimos que foram um dia acompanhar o grande homem em um passeio despretensioso em uma  "rica paisagem  num dia de verão"(FREUD, 1916, p. 186). 

Sobre nós pouco foi dito, a não ser que éramos " um jovem poeta e "um amigo taciturno". Creio não ser segredo a identidade do então jovem poeta "já famoso" , o homem sensível inspirou o texto do homem da ciência - e todos nós sabemos o quanto  a invenção freudiana deve às almas sensíveis, aos caracteres mais nobres que,de tão nobres, por vezes não suportam a crueza da vida e suas atribulações.

Sim, todo leitor atual sabe o quanto herr professor foi beber em homens como Goethe, como Dostoievsky, como Jensen, nobres e distintos cavalheiros que possuíam em comum a característica de se admirarem com as coisas terrenas e delas intuir as coisas etéreas.

É inquestionável, é mesmo impensável a descoberta freudiana sem os poetas, sem os músicos, sem, enfim, as almas mais elevadas que a existência já conheceu. E Rilke, esse poderia cobrar seus préstimos a hora que assim desejasse, era ele o jovem e já famoso poeta, isso não é segredo.

Mas, e quanto ao outro personagem, o outro a errar pelas pradarias? E o que foi feito daquela personagem obscura somente reconhecida no texto famoso como "amigo taciturno"?

Eis quem vos fala. Sou eu o amigo "taciturno", não tendo habilidade para a poesia, sempre gostei das coisas mundanas. Confesso que nunca fui pessoa das letras, nunca me comovi com os dramas santos, e nunca acreditei verdadeiramente em uma existência superior, também o fazer científico nunca me atraiu e a isso devo o fato de ter tido uma infância em que não me foi dado o direito à curiosidade comum às crianças, especialmente às crianças do sexo masculino - se me mostrei alguma vez curioso em relação a algum relógio-cuco, ou tive a mais pura intenção de destruir um brinquedo para saber sobre seu mecanismo disso logo foi demovido pela minha mãe e por suas engenhosas técnicas de me infligir os castigos mais cruéis, foi por amor à vida que desisti da curiosidade e essas experiências infantis me fizeram alheio a qualquer interesse que se tornasse científico - minha alma preferia manter o corpo livre de beliscões e pontapés.

Se nunca fui aquilo que podem chamar de caráter alegre, fanfarrão, também não foi por causa de nenhuma disposição interna que lembre qualquer sensibilidade, qualquer volubilidade romântica, tão comum ao zeitgest ao qual pertenci eu e meus amigos, hoje todos tão mortos como eu. Nunca fui alegre, mas também não acho que isso se devesse a qualquer coisa byroniana correndo em minhas veias. Também não era triste, era apenas indiferente a qualquer esforço humano para rir ou chorar.

Sou sim, "o amigo taciturno" a caminhar pelas pradarias e no dia fatídico de verão eu tinha  ao meu lado direito o homem das ciências, o distinto professor fadado ao sucesso, e junto a meu lado esquerdo vinha o jovem poeta famoso e promissor. 

O que seria eu, o que poderia ser eu ao lado de tanto brilhantismo? Apenas isso, o amigo taciturno que nem direito a maiores menções teve no texto que poder-me-ia ter tornado célebre, tanto ou mais que meus amigos. Mas isso não houve, e morri no anonimato, da mesma forma que nasci, sendo aquele passeio a única situação da vida em que estive próximo a qualquer sombra de gênio, no caso, dois.

Digo-lhes que não era de todo um indigno de reconhecimento, escrevia algumas coisas, não muitas, mas nada que soasse poético ou sensível, nada que apontasse o caminho do céu ou que indicasse os meandros dos acherontes, por isso morri como vivi, no mais completo e compreensível anonimato. me faltou interesse para ir além e para me tornar qualquer coisa de vulto.

O que escrevo agora, em tom de carta além túmulo a la Brás Cubas, é o meu direito inalienável de dar a versão dos fatos. Ei-los, sem as tintas coloridas do poeta, sem o rigor empírico do cientista. Apresento-lhes o meu relato, o meu Verganglichkeit!

Ouça quem quiser, não será depois de morto que irão me laurear com o Goethe, faço isso pelo simples direito de fazê-lo, visto que a morte não me impôs maior silêncio do que aquele que gozei por toda a minha existência. Serei breve, qualquer prolixidade me irrita.

Pois bem, disse-nos Freud que o jovem e já famoso poeta se compadecia com as flores que logo morreriam, em seus arroubos sensíveis pensava mesmo que de nada adiantaria a mais linda rosa florescer como as tantas que testemunhamos naquele dia se o seu destino seria a inevitável morte. 

Penso que Freud construiu sua argumentação lógica a partir daí, então toda a teorização acerca do luto e do que perdemos, tudo sobre a tendência da nossa psychê a se afastar da dor, tudo ali está, naquelas linhas em que o magnânimo cientista nos utilizou, a mim e ao meu amigo sofredor, como meras testemunhas complementares para aquele passeio. Não me diverti nesse papel, confesso.

A partir das lamúrias do poeta se construiu uma teoria sobre luto e sobre perda  - e quão conveniente! 

Mas, o que pensou o "amigo taciturno"? O amigo  não poderia pensar outra coisa, eu era calado, alguns poderiam dizer que carrancudo, sofria de uma espécie de tédio em relação a tudo que não fosse relacionado aos pequenos prazeres da vida: comer, beber e dormir. Eu não era taciturno por vocação.
Era  ocupado entre esses três deveres que vivia a vida, e confesso que somente depois de muito esforço da parte do eminente professor, que me dispus a calçar as botas e a ir ver borboletas e "pássaros gorjeando livremente". Assim me foi feito o convite, e foi num tom convocatório que Freud o fez: "Vamos aproveitar esse belo dia de verão!" - disse-me, com exclamação e tudo o mais que soasse convidativo.

Ao ouvir aquela frase ser proferida virei para o lado e recostei a cabeça no travesseiro, pensei em dispensar o meu amigo cientista, e entre um bocejo e outro, fui convencido de que o passeio seria curto e apenas um pretexto para conversarmos sobre questões importantes, como as que se provaram de fato urgentes - estávamos vivendo em um período estranho em que tudo soava bélico e ameaçador. 

Nem isso me animava, mas um pouco de socialização não me era de um todo  desagradável. 
Foi apenas no caminho para os bosques que Freud me disse que Rilke iria nos acompanhar - e eu, sabendo antecipadamente desse fato não iria me dignar a calçar as botas, sequer levantaria da cama, pois sabia que o que me aguardaria seria uma série de lamentações e soluços infindáveis, o que, de fato, ocorreu.

Se Freud a tudo analisava e rascunhava em seu caderno a que poucos podiam ter acesso - e eu não era um deles, Rilke se deixava comover pela mínima mariposa que cruzasse com seu olhar, o vento parecia exercer sobre aquela atormentada alma uma espécie de fascínio e tudo parecia caber em suas rimas e estrofes. Quanto a mim...eu estava cansado, mais "taciturno do que nunca", Freud diria, mas, na verdade, mais desejoso do que nunca que aquele dia terminasse. 

Da pena de Freud podemos ler:

 "O poeta admirava a beleza do cenário que nos rodeava, porém não se alegrava
com ela. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava condenada
à extinção, pois desapareceria no inverno, e assim também toda a beleza humana e tudo de belo e nobre que os homens criaram ou poderiam criar" (FREUD, 1916, p.186).

Chamo atenção ao jovem leitor para o fato de que Freud nunca foi merecedor de um prêmio científico por sua obra, embora tenha sido merecedor de uma prêmio por sua...Literatura! Daí não precisa ser um gênio para deduzir que a seara a qual pertencia herr professor era, na verdade, o domínio dos imortais, dos homens das letras, e eu não sei porque insistia em fazer ciência.

 Por algum motivo alheio a seus maiores desejos, Freud não convenceu por sua ciência, não convenceu o mundo acadêmico, mas nem por isso foi menos célebre.

Sobre o sensível poeta, todos já sabem, o que me faz pensar que eu sou a verdadeira sombra nesse passeio, dos três, o menos célebre, o menos capaz - talvez - mas uma coisa talvez não possam me tirar agora: a sinceridade e a objetividade com a qual narro os fatos - isso falta à pena dos meus amigos.

Já estando eu morto há muito tempo, não tenho interesse em reconhecimento póstumo, nem nisso acredito. Como alguém que nada tem a perder, tendo já perdido o fundamental, tenho o único compromisso com a realidade  e com a verdade dos fatos, sou um embaixador da Verdade. E  nela vou me fiar para que saibam um pouco sobre aquele dia, aquele passeio, meus amigos e, sobre mim.

A bem da verdade, o poeta não admirava a beleza no cenário de maneira inerte, ao contrário do que pensava Freud, ele se alegrava sim, apesar da transitoriedade das flores, das plantas, dos pássaros a nos visitar de quando em quando, o que Rilke mais fazia era se admirar e exaltar a natureza, numa alegria quase incontida, ouso dizer que uma alegria bizarra que logo se transformava em lamúria e em choro - sobre essas terríveis oscilações de humor do poeta não ficamos sabendo por meio do relato oficial.

Se àquela época já  houvesse tal coisa como uma Neurociência, diria que Rilke sofria de transtorno bipolar: seus arroubos de felicidade histérica me irritavam em elevado grau e eu já me sentia compelido a me tornar cada vez mais "taciturno", e , repito, não por uma disposição romântica qualquer, mas pela simples intenção de me retirar daquele lugar e não ouvir mais um ser tão volúvel como aquele a quem a mesma cotovia poderia fazer rolar na grama numa espécie de alegria pueril para, logo em seguida, provocar os maiores soluços que somente alguém que sofre em demasia poderia experimentar - era um louco, um delirante e estar em sua companhia seria a maior das torturas.

Demovê-lo da ideia de perseguir passarinhos e de cumprimentar o sol era impossível, tão impossível como conter suas lágrimas, o seu convulsionar diante do despetalar de uma margarida me provocou a mais profunda ira e isso foi a gota d'água. Vê-lo soluçar e a repetir blasfêmias diante da flor despetalada me fez saber que àquele lugar eu não pertencia, e foi assim que o passeio acabou: fui embora para não mais me atormentar diante de um patético ser infantil e de um inerte e frio cientista.

Agora sabemos que fidelidade aos fatos nunca fora o forte de Freud. O homem nasceu para a Literatura, mesmo que tenha insistido na Ciência.

Poderia lhes dar toda uma nova versão, mais objetiva e fiel aos fatos do que as do meu amigo cientista, mas por falta de interesse não o faço, quero me recolher logo ao sono sepulcral e, de fato, nada lucrarei com isso. Ou irão publicar a minha versão dos fatos ocorridos naquela paisagem de verão? Irão, por acaso, apagar dos registros o tal Vergänglichkeit freudiano para dar razão ao meu relato? Inocente não sou, e não me interesso em fazer de Freud meu rival, sem dúvida ele merece repousar em seu leito célebre, deixem-me aqui no esquecimento que sofro menos ataques - ninguém zomba de um defundo desconhecido.

Com isso, limito-me a dizer o meu lado, apenas. Estava eu taciturno pensando em tudo que deixara na cidade e que não poderia rever naquele dia, naquela ocasião?

O espetáculo patético de Rilke me irritava tanto ou mais do que o calor infernal que fazia naquele dia. Os rumores de guerra me tiravam o sono, apesar de  sono ser algo essencial em minha vida, pois nunca fugi ao encontro de Morfeu. 

Toda aquela ideia de passear, sob aquelas condições climáticas me tornavam cada vez mais impaciente e o único motivo disso era uma mistura de tédio, irritação (calor insuportável somado à histeria alheia) medo diante da ameaça da guerra que viria a destruir tudo que a civilização havia construído, enfim, aquele não seria um bom dia para passear. No entanto, esse turbilhão de sentimentos guardava para mim, pois nunca fui homem de transparecer os sentimentos através da face, isso deixo para Rilke.

Não estava taciturno por conta da flor que nascia para morrer, não estava encastelado em mim por conta de qualquer vocação para o Sturm und Drang,  tédio era meu nome, e eu não desejaria outra coisa do que fugir daquele lugar bucólico que me dava ânsia de vômito.

Da transitoriedade nada penso porque não me foi dado o direito de pensar, ao menos no texto de Freud. Se Rilke não se encantava totalmente com a flor que brotava e com o espetáculo do sol se pondo, eu de mim sei apenas que o que muitos julgavam como ensimesmamento eu julgava por preguiça, talvez a minha mais verdadeira vocação.

Cansado de não fazer nada eu estava, indisposto me tornei a cada vez que um raio de sol penetrava os poros da minha pele tão fustigada pelos pequenos prazeres aos quais me dedicava com afinco. A companhia de Freud já não me era agradável naquele dia, imaginem a de um bebê chorão a questionar sobre a beleza, sobre a efemeridade das coisas que nasceram para morrer. 

Se ainda tenho direito a algo dizer, digo que não tenho problemas com o luto e com a substituição de objetos libidinais - para usar o jargão do célebre professor. Acho bom que tudo que vive um dia morra, pois assim os mesmos pássaros não nos irritariam todos os dias, as mesmas flores nasceriam em nossos quintais, sem surpresa, sem novidade. Tudo que é vivo morre, e da morte só restará o pó. Se a guerra nos destruiu foi com o propósito de nos fazer deter, e se a ela não podemos resistir, melhor mesmo será sucumbir. Não, não tenho grandes questões com a morte, e a beleza sempre me soou enfadonha,a feiura, com seus espetáculos e bizarrices é genial por quase tocar  o impossível e é por isso que o feio sempre me atraiu mais do que a beleza que fazia meu amigo poeta suspirar e chorar, e chorar...

Não é necessário chorar porque o choro nada resolveu na História da humanidade, porque não foi chorando que o homem se viu na obrigação de inventar a roda, há a necessidade e isso basta para que se construa algo diante do que já morreu. Chorar o morto não o traz de volta; a flor que morre hoje já vai tarde.

Se Freud dizia que depois da guerra haveria de nascer uma nova nação mais forte, mais sólida, eu mesmo penso que se a destruição não fosse impulso suficiente para nos manter de pé, que nos deixasse viver entre as sombras, porque, certamente não seríamos um povo digno de viver, portanto, aos mais fortes, a vitória, ao vencedor, as batatas, meu amigo de além túmulo diria.

Sendo assim, encerro por aqui minhas considerações, sobre o episódio romanticamente narrado por Freud, dizendo-lhes uma única coisa: tudo que é vivo morre e ainda bem, pois a morte me parece muito mais interessante do que aqueles odiosos momentos que vivi entre dois amigos, um patético demais para ser capaz de narrar com clareza o que se passou, outro pretensioso demais para entender que a pérola das coisas mora na concha da objetividade e nada deve ao subjetivismo maldito.

Para mim, aquele foi apenas um dia terrivelmente quente em que tive a malograda ideia de aceitar um convite para passear.

segunda-feira, junho 29, 2015

12 provas inquestionáveis de que Los Hermanos foram influenciados pela Psicanálise

Quem é fã de Los Hermanos certamente se identifica muito com as letras da banda. Segundo Maria Ribeiro, diretora do documentário “Esse é só o começo do fim das nossas vidas” (2014), a banda foi responsável por espalhar um discurso amoroso entre as pessoas, há toda uma vibe “all you need is love” nas músicas dos quatro rapazes de...enfim, dos quatro rapazes barbudos e isso não poderia passar despercebido.

Há um fato desconhecido por muitos e aqui o revelo para quem não saiba: há uma grande inspiração por trás das letras de grande repercussão da banda -  e não estamos falando de Beatles.

Nesse momento alguém poderá se remeter à figura mítica de Anna Júlia, figura que se tornou conhecida em todo território nacional por volta dos já longínquos anos 2000. Engana-se, caro leitor e amante de Los Hermanos. Não é Anna Júlia, nem Aline, nem Bárbara, nem Melissa, não é nenhuma dessas.

A grande inspiração de Camelo e Amarante em suas composições é o discurso psicanalítico. Pasme você.

Se você ignorava o fato da dupla mais famosa da indie music brasileira ter compartilhado suas mazelas com analistas, jorrado lágrimas sofridas em tantos divãs por aí, acompanhe atento algumas provas cabais que não vão deixar dúvidas de que as letras da banda têm sim muito de Psicanálise, sobretudo no que tange aos desenvolvimentos freudianos e lacanianos.

As pistas estão em muitas das letras e talvez o querido leitor, tomado pelo arrebatamento típico de quem é fã, não tenha percebido o recado nas linhas e nas entrelinhas, pois muito tomado estava de um afeto indomável: A peste freudiana estava à solta e Camelo e Amarante foram responsáveis por traduzi-la em música, nos seus acordes chorosos, e até mesmo nas melodias mais bonitas, há um pouco de castração, sim, inevitalmente. Mas há um alento: somos todos falasser, somos seres de linguagem, e que bom que existe a música!

Se você não está convencido disso, duas palavras talvez te tragam alguma iluminação: Cara estranho. Não há retrato mais digno da castração do que nessa composição que narra uma pessoa desalojada em seu ser, desassossegada em seu corpo-carne à mercê do gozo alheio. Cara estranho é sujeito castrado, e Miller concordaria com isso (Vale dizer que também o tal “Cara valente” é tão castrado quanto, mas talvez, por encenar tão bem possuir o falo, possa parecer um homem mais viril, na verdade, o cara valente é o mesmo cara estranho).

Nesse momento talvez você esteja cantarolando as canções em sua mente, e quem sabe até concorde comigo. Não se tratando do caso, trago mais algumas evidências que esclarecem o argumento que venho sustentando até então: rolou muito divã e a indie music deve muito à Psicanálise.

Iniciemos pelo começo de tudo, com a famosa Traumdeutung lançada ao mundo em 1900. Poucos devem lembrar de algo anterior ao famigerado sétimo capítulo desta bíblia psicanalítica, mas cabe aqui uma alusão ao prólogo tirada de “A divina Comédia”: “Flectere si nequeo Superos, Acheronta movebo”, que nada mais significa do que “Se não posso comover os deuses de cima, moverei o Acheronte”.

À frente de tudo e de todos, Freud entendia que havia um sentido no sonho que precisava ser descoberto, e isso era polêmico, era necessária uma dose de coragem para falar de tal assunto devido ao zeitgest da época, Freud mexeu e remexeu o Acheronte e lá achou muita coisa que falava à alma e que hoje vemos musicada.

Tal como uma escrita hieroglífica, o sonho se mostra confuso e desconexo, cabendo ao analisante amarrar os fios que podem fazer da experiência onírica um relato inteligível. Como Freud já dizia que os poetas e artistas o precederam na descoberta do inconsciente, deixá-los-ei apenas com as sábias palavras “loshermânicas”. Seguem minhas provas, são apenas doze, e a leitura do que vem abaixo requer coragem e uma dose de empenho:

(1)

“[...]O que é um sonho ruim,
E o que é um sonho bom.
Que diferença? a vida é igual,
assim e eu não sei
Eu não sei...Quem bate aí?
Se é pra eu te ver então deixa eu dormir.”

Como se nota facilmente, “Os Pássaros” parece relatar a confusão do sonhado diante do sonhador, a pérola virgem na ostra do mar psicanalítico. A confusão, o pesadelo, a realização do desejo parecem tomar conta de Amarante – será que não podemos notar em sua voz esse mesmo tom perdido, angustiado?

Conte, amigo, conte as vezes em que se nota nas composições do autor o mesmo tom desconsolado - e frequentemente blasé – restos de imaginário não analisado?

Dificuldade em remexer o próprio Acheronte, Amarante? “Não sei mais e é um sonho bom ou ruim, sei apenas que isso fala de mim” – poderia complementar Amarante (inclusive, há rumores que essa parte da letra foi censurada, como uma espécie de censura onírica, jamais saberemos, mas já podemos antecipar aí um trabalhinho que sem dúvida foi executado com a ajuda dos nossos velhos conhecidos mecanismos “deslocamento” e “condensação”, não sejamos tolos, todos vocês já devem saber disso...)

Não sabemos de fato se a letra passou pela censura onírica, podemos imaginar, pelo tom de desencanto e dúvida que há uma elaboração nesse material, estamos diante do discurso manifesto que não lembra mais o sonho sonhado; eu poderia apostar que é fruto dos percalços que um analisante encontra em seu percurso...

O desencanto pela vida, o não saber, e, por fim, a certeza/clichê freudiana: que em sonhos poder-se-á realizar o desejo por tanto tempo acalentado: a musa de Amarante aparece em seus sonhos, então, o melhor momento será mesmo a hora de dormir.

Se isso não for uma licença poética da célebre frase freudiana “O sono é o guardião do sonho” eu não sei mais o que é.

Se você tem alguma dúvida, peço que prossiga nessa leitura:

(2)

“Como pode alguém sonhar
O que é impossível saber”

Diante de tão impactante lição que a canção psicanalítica “O vento” nos traz, precisei reparti-la em dois segmentos, para melhor fundamentar meus argumentos. Sinta o choque, e a presença viva de Freud no trecho acima referido:

 “Como alguém pode sonhar o que é impossível saber”.

Fico estupefata e creio que também o indie leitor ficará ao analisar essa frase com lentes de aumento. Veja se não há um quê de Traumdeutung novamente? Vejo, inclusive, menções à Lacan, nesse pequeno, porém tão profundo trecho poético.

Se estamos já tão acostumados com a virada cartesiana que Lacan faz ao promover o clichezão “sou aonde não me penso”, podemos também nos lembrar do tão famoso “o sujeito não é senhor em sua própria casa” – e Tania Rivera ainda diria não saber nem se o sujeito tem casa. 

Ora, se o sujeito tem casa ou não, não nos é importante nesse momento, pense apenas nessa pérola que  promove o antagonismo entre o que se sonha versus  o que se sabe.


Los Hermanos já parece deixar clara a influência psicanalítica ao fazer isso, ao nos colocar diante desse antagonismo que ilustra o que é a Psicanálise em geral.

Sonho aonde não me penso, portanto, sonho o impossível de ser sabido, estamos falando de lógicas diferentes, portanto, isso já nos levaria, de graça, à Lacan e toda a noção que está implicada na Psicanálise: há um saber inconsciente, um saber não sabido, disso Amarante já sabe há tempos.

Perceba a genialidade da banda ao trazer esses conceitos tão profundos para a simplicidade da canção. Lembre-se sempre que o sonho é a loucura do homem são.

* Bônus: “Eu sei que ainda vou voltar, mas eu quem será” (O velho e o moço)

(3)

“Não te dizer o que eu penso
Já é pensar em dizer”
[...]
Sinto que é como sonhar
Que o esforço pra lembrar
É a vontade de esquecer”

 Está ficando chato, não é verdade? Toda essa preocupação de Amarante com o conteúdo onírico, me parece claro como um dia de sol que essa canção foi pensada – e quem sabe até composta – em um divã. Amarante aqui faz novamente alusão à divergência entre desejo e o querer consciente, porém, se ainda não se tornou claro o suficiente, à guisa de compreensão, didaticamente explicarei:

 Esforça-se para lembrar (consciente), porém há algo que se opõe a isso: há uma vontade de esquecer (mecanismo inconsciente).

 Vejamos aí outra coisa ou vemos mesmo o Verdrängung freudiano? A vontade de esquecer, Amarante, diga logo, nada mais é do que o mecanismo de recalcamento, que sabemos que não é necessariamente o mesmo que esquecer.

Todo vivente que assistiu ao menos uma aula de Psicanálise na faculdade saberá que existe uma grande diferença entre recalcamento e esquecido. Amarante apenas nos revela que existe um jogo de opostos: ora se esforça para lembrar, ora se entrega ao recalcamento. Cena primária, lembranças infantis , o caso Emma e a loja de roupas (presente na carta 52 e no Projeto de 1895).

Todos nós já estamos cientes de que as lembranças encobridoras tomam o lugar de algo maior, infantil e de origem sexual que fora convenientemente recalcado. As lembranças foram postas aí porque há algo recalcado.

Em palavras mais rasteiras: a lembrança encobridora é o esforço para lembrar; a vontade de esquecer é o mecanismo do recalcamento operando sobre o material mais antigo e, portanto, mais revelador do inconsciente. Gostaria de saber o sexual traumático de Amarante, e por que tanto apelo ao mundo onírico...


 (4)

“De onde vem a calma daquele cara?
Ele não sabe ser melhor, viu?
Como não entende de ser valente?
Ele não sabe ser mais viril
Ele não sabe não, viu?”

Se não me engano esta letra é de Camelo, uma criatura que, por suas letras, podemos pensar que vive às voltas com a castração. Aceitá-la, negá-la, ignorá-la? Tudo isso parece ecoar na cabeça do exímio compositor que, perdido diante da barra originária, entrega-se às suas canções.

Vejamos em “De onde vem a calma” o sujeito castrado e barrado diante de seu gozo quimérico, detido em seu desejo. O que resta a esse cara cuja angústia de castração tomou conta, a calma?

Recomendo um retorno à Freud, tal como o fez Lacan, para que possamos analisar melhor essa canção. Um sujeito castrado diante de um mundo hostil; não lhe sobrou dignidade, não lhe sobrou muita coisa, porém, para aquele que irá agora ter acesso à música completa, lhe digo que há esperança no que Camelo escreve, pois apesar do mundo ser hostil, o sujeito parece não desistir, nem ceder.

Vemos aí uma esperança de reaver a Coisa freudiana, Das ding reencontrada? Gozo não mais interditado? Mamãe? Sim! O sujeito, que não é viril (Quer algo mais claro que isso para chamar de desfalicizado?) irá, um dia, ser coroado rei de si mesmo – Cai o pano, lembra uma tragédia, hein?

Recuperar o trono, se apossar de mamãe, é isso que você quer nos dizer, Camelo? Recuperar mamãe depois de ter matado papai?

Ser coroado rei de si não seria uma óbvia e ululante alusão à Oedipux rex? Deixo essa com você...

(5)

“Hoje estou tão sozinho
Não sei mas o que fazer
A minha vida se acabou
Você se foi e agora não sei mais”

(6)

Faz tanta falta o teu amor...
Te esperar...
Não sei viver
Sem te ter não dá mais pra ser...
Assim”

(7)

Deus por onde você foi?
Cansei de procurar
Não posso mais te dar o pouco que sobrou
Eu tinha algum amor
Eu era bem melhor
Mas tudo deu um nó
e a vida se perdeu
Se existe Deus em agonia
manda essa cavalaria
que hoje a fé me abandonou”


Estamos agora diante de três canções que querem nos dizer algo especial: o que “Tão Sozinho”, “O pouco que sobrou” e “Quem sabe” têm em comum? O leitor desavisado diria “Sofrência”. Porém quero que você vá além de modismos musicais.

Para acompanhar a genialidade de Amarante/Camelo eu só sugiro ao indie leitor que recorra à letra freudiana mais uma vez, pegue lá em seu armário o volume XIV da edição Standard e busque o texto de 1915 chamado “Luto e Melancolia”.

Seu esforço será recompensado, pois nas primeiras laudas encontrarás o que foi dito, de formas diversas, nas três músicas. Diz Freud: “Os traços mentais distintivos da melancolia são um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de autoestima” (Freud, 1996/1917[1915], p.250).

Sobre o luto, Freud nos ensina: “O luto profundo, a reação à perda de alguém – a mesma perda da capacidade de adotar um novo objeto de amor (o que significa substituí-lo) e o mesmo afastamento de toda e qualquer atividade que não seja ligada a pensamentos sobre ele” (Freud, 1996/1917[1915], p.250).

Se você ficou confuso e não sabe diferenciar se Amarante e Camelo estão falando de Luto ou Melancolia, dou-lhe novamente a palavra de Freud: “No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio ego” (Freud, 1996/1917[1915], p.251).

Quando alguém diz que não sabe viver, que a fé o abandonou, estamos tratando aqui de um desinteresse total pelo mundo, não porque o mundo é vazio, mas o ego que foi apequenado, esvaziado.

O trecho “eu era bem melhor” nada mais é do que a prova cabal de que há um sentimento forte de baixa autoestima e isso tudo está no ego, o mundo está lá, eu apenas não tenho força porque já fui bem melhor, num outro tempo, quando tinha um amor – diria o restante da letra, mas nós já sabemos do que se trata.

Canções melancólicas que envolvem egos fragilizados, isso é mais do que dizer “Sofrência”, não é verdade?

Nas canções de “sofrência” existe algo relacionado ao corpo como palco do sintoma; há um apelo ao álcool para fazer frente a um sofrimento ou a uma situação penosa - é puro Lacan do Real.

 Vemos aí a toxicomania e a pulsão de morte enlaçadas, basicamente o sujeito goza em seu corpo e busca aplacar o sofrimento se entregando a subterfúgios.


Em Los Hermanos é a frustração sóbria que está presente, é o aguentar a frustração e a ferida narcísica, sem álcool, sem nada. Haja divã, haja lencinho de papel.

(8)

“Pois eu, eu só penso em você
Já não sei mais por que
Em ti eu consigo encontrar
Um caminho, um motivo, um lugar
Pra eu poder repousar meu amor”

Aqui vemos uma bela oportunidade de anunciar como Los Hermanos fugiram do lugar comum, pois ao conceber “Fingi na hora rir”, os compositores foram muito além da letra “água-com açúcar”, a melodia aprazível, que agrada aos ouvidos e que deve ter sido tema de muitos romances, revela algo muito mais profundo e de inspiração psicanalítica. Vamos subir um degrau no nível de dificuldade agora.

Em Lacan, sabemos que há todo um jogo encenado entre as posições masculina e feminina, um jogo intermediado pelo falo, que não é o pênis, mas sim, esse objeto imponente e majestoso, revestido de grande poder social mas que é totalmente quimérico.

Camelo encontra "um caminho, um motivo, um lugar”, e poderíamos dizer...”Um falo”? Se você duvida, basta abrir em qualquer página de “O Seminário livro 20” e verá que tudo não passa de uma falácia, um engodo: a posição masculina acha estar na posição feminina o falo que lhe falta e que supõe completá-lo: O feminino É o falo.

(9)

“Ouvi dizer
Que o teu olhar ao ver a flor
Não sei por que
Achou ser de um outro rapaz
Foi capaz de se entregar
Eu fiz de tudo pra ganhar você pra mim
Mas mesmo assim”

Se está me acompanhando e já está quase convencido de que as letras de Los Hermanos foram escritas atrás das páginas dos seminários de Lacan, eu só tenho que tornar isso cada vez mais evidente, com esse belíssimo argumento em favor do que foi dito em relação ao falo e à posição masculina diante do feminino: “A flor”.

Digo mais: desafio o leitor a substituir a palavra “flor” por “falo”. Há fortes rumores que as palavras foram trocadas propositalmente, e como as duas palavras servem como significantes relacionados ao sexual, deixaram “flor” para parecer poético e menos polêmico. A flor é, descaradamente, uma ode ao falo sempre buscado e nunca encontrado por ambas as posições.

Também em "A flor" ingressamos no enigma feminino e sua busca pelo falo  que lhe fora negado pela mãe tão má que é a mãe da menininha castrada (e que achou ser de um outro rapaz!).

Em suma: masculino e feminino se relacionam como se num palco estivessem, uma comédia, diria Lacan em “Televisão”: uma busca incessante no Outro masculino detentor do falo (a flor) perdido; a mulher busca no masculino o falo que lhe falta. Sendo, que...SPOILER!



  • Ninguém tem ou é o falo que falta a ninguém...tudo é engodo. Desilusão!

Apesar dessa descoberta, lembremos que Camelo pensa um dia recuperar das Ding; é, portanto, mais do que um romântico incorrigível, é alguém que tem esperança em se tornar rei de si próprio (toda a onipotência da majestade o bebê aí presente, pense no alerta de Freud!).

Sendo assim, fica fácil entender que esse endereçamento ao Outro que seja “seu caminho, seu motivo e seu lugar” poderia ser, na verdade, seu falo. Será Malu? Fica aí a questão, se quiser saber, recorra  ao cego Tirésias, recorra à esfinge se não quiser ser devorado. 

QUEM ÉDIPO É NUNCA PERDE A MAJESTADE.

(10)

“De perto eu não quis ver
Que toda a anunciação era vã
Fui saber tão longe
Mesmo você viu antes de mim
Que eu te olhando via uma outra mulher”

 Talvez esta seja a prova que faltava para o cético entender que há Psicanálise em todo repertório de Los Hermanos. Veja com seus próprios olhos e pense, sem algum esforço, se você já não sabe quem é essa outra mulher - ideal - que Amarante diz ver na mulher atual.

Uma dica? Mulher atual imagem da mulher atemporal, das ding, não há ainda um terceiro ursupador...


Ficou fácil, né?

Vou dar mais uma dica, essa mais específica ainda: “Identificação anaclítica”. Mais fácil que isso só se eu dissesse que a primeira letra do nome dessa mulher é M – Evitarei dizer mais.

(11)

“Dei pra ti as estrelas os peixinhos e as aves
Todas as montanhas nas escalas dei as claves
Todas as cancões que eu fiz, eu fiz pra ti princesa
Tudo de mais belo que encontrei na natureza”

Essa canção profundíssima do primeiro álbum, você deve dela lembrar, chama-se “Lágrimas sofridas” é por muitos cantada com uma gota de ódio e decepção, um certo azedume (para voltarmos ainda mais no tempo...) e deve ser considerada como uma canção raivosa, muito diferente das canções do último álbum, considerado “maduro” pelos fãs.

Veja você que essa divisão entre o que é maduro e o que é pop não parece corresponder ao conhecimento intelectual que a banda já demonstrava ali, no começo de sua estrada, ao menos não é o que parece.

“Lágrimas sofridas” nos apresenta talvez o mais belo clichê lacaniano “Amar é dar o que não se tem”. É verdadeiramente isto que está em jogo nessa música que fala direto ao coração: um sujeito que deu a sua bem amada coisas materiais, tais como seu sapato, seu vestido, mas não esqueceu de lhe presentear com o intangível: "as estrelas, os peixinhos e as aves”.

“O dar o que não se tem” fica ainda mais claro na estrofe seguinte:

"TODAS as montanhas, nas escalas dei as claves; TODAS as canções que eu fiz [...] TUDO de mais belo que encontrei na natureza".

Vejamos que muito embora se trate de coisas conhecidas e apreciáveis, é evidente que o narrador/cantor não possui todas as montanhas, os peixinhos, as aves; é patético, inclusive, pensar que alguém seria dono das estrelas. No máximo, todas as canções que ele fez, porque na verdade, ele quis dizer TODAS as canções do mundo e toda a beleza da natureza – porque o amor é hiperbólico mesmo.

Ou seja, dar o que não se tem a alguém que não o pediu. O resultado disso é melancolia, já vimos aqui e parece coincidir com a ordem cronológica dos álbuns: primeiro o amor desmesurado, louco e infantil, e depois a melancolia (praticamente todo último álbum).

(12)

“Quem te vê passar assim por mim
Não sabe o que é sofrer
Ter que ver você, assim, sempre tão linda
Contemplar o sol do teu olhar, perder você no ar
Na certeza de um amor
Me achar um nada
Pois sem ter teu carinho
Eu me sinto sozinho
Eu me afogo em solidão”

Por último, mas não menos importante, eu não poderia deixar de citar a linda “Anna Julia” para trazer à baila aquela que foi considerada a única contribuição original de Lacan à teoria psicanalítica: ele mesmo, o brilhoso e comovente petit a. O objeto pequeno a ou simplesmente (a).

Lacan, em seu seminário da Angústia trata do objeto a como o que resta da relação entre sujeito e Outro (lê-se grande Outro), porém o conceito ganha vida e outras significações ao longo dos outros textos de Lacan e só podemos dizer que o objeto a é tudo aquilo que cai do Outro, sempre inacessível.

Como é muito provável que Camelo e Amarante andem por aí com os seminários de Lacan debaixo do braço, na fila do pão, eu sei que também devem ter lido Miller, Nasio, etc (nunca subestime a intelectualidade de uma banda indie).

Irei recorrer à Nasio, porque tenho certeza que as folhas de “Um psicanalista no divã” serviram de rascunho para as primeiras estrofes de Anna Julia, esse clássico contemporâneo.
Vamos à Nasio:
O amante apaixonado se sente subitamente arrancado de si mesmo, despojado de sua liberdade e submetido ao sortilégio do amado. Ora, como explicar o mistério do charme? Pois bem, somos incapazes disso. [...]O objeto a é portanto o nome dado à presença indizível e inebriante do amado, aquele que, em meu coração, o torna insubstituível (Nasio, 2003, p.138-139)

É, eu não tenho muito a dizer, mas quem quiser se certificar de que em Anna Júlia se trata do objeto a, volte à letra, parece pueril, infantilóide, cansativa, alguns dirão que não representa toda a sonoridade a  maturidade da banda, mas, aí onde pensas haver apenas um hit pop, encontrarás uma grande ode  à invenção lacaniana.

Anna Julia é o objeto a, é a mulher fetichizada na fantasia masculina, cantada e retalhada, eu seu olhar e em seu charme magnético. Isso é pura poesia e todo aquele que maldiz essa canção não sabe o que está fazendo.

Essas são apenas 12 provas que elenquei para que fique claro ao público que Los Hermanos não é apenas uma banda cujo compromisso foi espalhar sua melancolia e seus acordes nostálgicos aos nossos ouvidos. 

Há muito mais do que melodrama e corações partidos por Alines e Bárbaras em suas canções, há muito mais do que os significantes “mar”, “barco” e “morena” (os três valem uma análise); há muito édipo, muito Outro, muito objeto a, muita das Ding e quem disso ainda duvidar, aconselho ouvir a discografia completa com mais atenção, quem sabe em companhia de Freud e Lacan. 

Só lhe digo mais uma coisa: as barbas, estas não são por acaso (vide os judeus vitorianos...).