quarta-feira, fevereiro 11, 2009

Das letras e dos números



Tem gente que gosta de número
Logaritmo , fatorial, expoente
Eu gosto de letra, palavra e fonema
Por que nem tenho em mente
Por que sempre foram mais belos
Os versos de um poema
Do que mesmo um pequenino problema
Por que sempre fui das letras
Porém
Será que gosto delas
Por que junto todas no papel
Para não enchê-las de saliva
E da boca não vê-las surgirem assim
tão menos belas?

segunda-feira, fevereiro 09, 2009

Um intrigante caso do mundo animal


Boa noite meus senhores e senhoras:
Hoje a estória que venho lhes contar não é nada muito rebuscado, também carece de uma aventura ou outra pra tornar o presente enredo mais atraente. Na verdade eu nem ia lhes contar, mas, por força do hábito e por gostar deveras de ver uma platéia como vocês, vou lhes falar de uma pata.


Uma pata. Isso mesmo, eu poderia fazer uso deste palco para lhes falar de Shakespeare, para lhes falar de um grande amor, mas eu, que poeta não sou, falarei da pata, porque os temas de natureza sempre me encantaram. Eu, no entanto, sou menos pretensioso que sonhador, por isso nem creio que esta conversa toda vá trazer algum sorriso no rosto de tão ilustres companheiros; já ensinamentos, acredito que sim, vão vendo.


Bem, vou contar, que é para não me alongar nesses entretantos e chegar vivo aos finalmentes. Vá, pintem aí em suas mentes um cenário azul marinho, cercado de cinza por todos os lados. Grandes prédios, grandes salas, coloque também umas quatro ou cinco paredes e dentro disso tudo pinte uma pata.


Uma pata, sabe, aquela que é esposa do pato por vocação ou por imperativo da natureza mesmo, só que esta pata, como bem vocês irão saber, sempre esteve muito mais pra leão do que para si mesma. Por quê? Ora, agora vejo um certo pingo de curiosidade nos olhos de alguns de vocês desta tão ilustre platéia.


A pata aprendeu a ser leão, não se sabe por que, e também ninguém sabe como começou. A verdade é que se via no espelho em todas as suas penas e bicos, achava-se sem graça e perdida, no entanto, forte e ágil. Era dada a escrever umas linhas tortas, posto que desde muito jovem aprendeu a equilibrar entre os pequeninos dedos das patinhas amareladas um lápis e pelejou muitíssimas vezes com uma borracha até conseguir usá-la. A pata aprendeu a escrever, passou a viver entre folhas de papel muito mais do que vivia em vida, essa que cada um de nós possui o direito de tê-la e dar-lhe bom encaminhamento.


Gostava de poesias e de escritos técnicos que falassem de todas as patologias existentes no mundo animal; se houvesse um resfriado ao seu lado, punha os óculos da razão na cara branca, revestia-se toda de intelecto e falava a origem da praga, fosse esta qual fosse. Quase sempre o diagnóstico era de confiança, o que enchia de respeito o nome da tal pata.


O problema, meus senhores, não é quando a pata usa seus óculos e brinca de doutora, diagnostica com precisão qualquer espirro ou soluço. O problema era mesmo de ordem da natureza. Ora, uma pata que se achava leão? Sim, vão vendo o problema todo se desenrolar, e depois, somente depois de finda a estória, me digam vocês o que acham e o que entendem, agora se faz essencial o acompanhamento minucioso do relato, por isso encherei de detalhes e de exageros, que é pra salpicar pimenta no enredo todo que eu mesmo acho insosso.


Era assim: aonde tinha penas via juba, aonde tinha delicadeza teimava em expor uma força quase bruta, uma coisa de altivez. Sempre admirou os leões por achá-los fortes e imbatíveis; reis da natureza, era assim que toda a classe leonina era classificada. Essa majestade, como vocês podem perceber, exercia peculiar fascínio em todo ser daquela patinha esperta. Por isso então não raramente penteava-se como se tivesse uma juba imaginária, como se já trouxesse em si uma altivez meticulosamente pensada, tudo para ser leão.


Ah! Mas quão sábia é a natureza animal, caros amigos, não há isso de nascermos uma coisa e virarmos outra, já disse algum homem famoso, disto eu tenho certeza, mesmo sem lembrar da autoria neste instante. Se uma criatura nasce pato, muito provavelmente morrerá pato e viverá a vida a ser pato, em sua essência. Portanto, a possibilidade da nossa patinha transformar-se, por força de hábito ou de vontade, em espécie qualquer de leão é alguma coisa muito remota, eu diria mesmo que impossível, mesmo sem ser homem de ciência.


Pena, uma pena, mas a nossa pata não sabia desse empecilho; acreditava tudo poder desde que se empenhasse na causa; pensava que por ter dominado o mundo das patologias e das homeopatias seria alguém mais inteligente e, deste modo, poderia viver a vida que quisesse, fosse ela de tigre ou leão. Escolheu a de leão.


Com este intuito de falsificar a essência e também de se proteger, andava cercada de animais carnívoros muito maiores que ela; gostava dos leões brancos, queria ser um deles e geralmente era vista em companhia dos mesmos. Quem quer que a visse em reunião com a classe leonina diria que fazia parte do grupo; sabia disfarçar as penas como ninguém e o bico, o bico justificava sendo um defeito de nascença. Não sei bem se os leões de fato acreditavam, mas era o que ela costumava contar.


Os mais atentos membros desta incrível platéia perceberão que uma mentira nem sempre tem pernas muito alongadas e no caso da nossa pata eram patas muito curtas. A lei da natureza não é coisa muito justa e o menor sempre há de sair chamuscado de uma briga qualquer. Sempre. Explicarei: a pata sempre se envolvia com os corações errados; teimava em ser leão e, com este pensamento, com leões andava. Convivia com alguns, apaixonou-se duas ou três vezes, mas , como se poderia supor, penas e patas não são nada perto de garras e unhas afiadas. Ai de ti, patinha frágil!


Davam-se tragédias, mas vocês podem indagar: o que pode alguém querer com leões tão ferozes? Certamente a nossa querida pata, tão astuta para algumas coisas, não anteviu as tragédias que marcariam para sempre seu coração de ave. Foi fechando-se cada vez mais, crescendo a imaginária juba cada vez mais, esquecendo a poesia, esquecendo os sonetos de que tanto gostava antes de teimar em ser mamífero.


Muitas vezes se perdeu achando-se apenas nos compêndios médicos ou nas bulas de remédios; era seu território, nada, de fato, a fazia tão feliz como as folhas de cadernos e suas apostilas sobre infecções. Não havia ganso ou macaco que não tivesse precisado dos acertados conselhos da pata médica, mas o que conto a vocês nada tem a ver com medicina ou com a esperteza desta ave.


Deixou-se mesmo definhar entre aqueles livros e óculos, sempre a esconder as penas e o bico, sempre a fingir ser leão. Ensaiava morder, ensaiava ter garras nas patas. Não as tinha de natureza, o que não necessariamente tornava impossível o disfarce: Diversas vezes penteava as peninhas da cabeça como se juba fossem, achava-se mais atraente se altiva, pensava que se sua personalidade transparecesse fortaleza, suas fragilidades seriam para sempre ocultadas, escondidas até de si mesma.


Vejam vocês o que é uma crise de identidade: uma pata querendo ser leão. Fosse isso acontecer a um humano estaríamos aqui falando de internação, de camisa de forças, até. Mas... uma pata querendo ser leão. Certamente boa coisa não daria, pois digo a vocês que muitas unhadas levou, feriu-se umas dezenas de vezes e ferida continuou até aos poucos se desfazer da juba que teimava circundar sua face. A vida, que é a mesma para humanos ou animais, deu as suas voltas, vão ouvindo.


Tal como uma roda gigante, a vida teima em mudar de paisagem de acordo com a posição que estivermos. Uma hora é mar, noutra montanha; tudo depende mesmo é do ângulo de visão e da própria visão.


Sem querer e nem saber, a pata, entre uma unhada e outra, entre um escrito e outro foi saindo deste mundo de concreto armado em que habitava; a selva cinza que tanto a fascinava foi, aos poucos, dando lugar à natureza selvagem, com seus cheiros, árvores e fauna muito vária.


A curiosidade , se não for mãe da inteligência, certamente é parente mui próxima desta. Atentem: a pata foi andando por entre toda aquela beleza e toda aquela magnitude natural parecia atraí-la de forma única, mais até do que a selva cinza. O lago, penas outras a dançar na água, raios de sol, tudo parecia lembrar-lhe muito da própria essência e não foi outra coisa que não curiosidade que fez a nossa pata ir adentrando muito mais na própria natureza.


No campo tudo era mais belo, cheirava a poesia e lembrava muito os sonetos de autoria da mesma patinha que um dia se perdeu entre leões e patologias. Pois então, munida de uma curiosidade que sempre fez parte de sua personalidade, pôs-se a andar, em suas patinhas curtas, a explorar todo aquele ambiente que logo cedo abandonou.


Por entre flores roxas e árvores centenárias passeou, comeu frutos de cor vermelha e amarela e por fim parou às margens do belo lago. Tal como o grego Narciso, viu surgir nas águas sua cara branca, seu bico amarelado e suas penas um tanto quanto malcuidadas. Pela primeira vez enxergou-se pata, via-se limpidamente e a própria imagem parecia fazê-la entender mais sobre si, sobre seu mundo , muito mais do que qualquer livro ou receita médica.


Foi quando lhe apareceu um pato. Igualzinho. Era mesmo igualzinho a ela aquele pato, em seu bico fino, em suas penas malcuidadas, até nas patas curtas. Não mentirei a vocês se não disser que também fazia uma espécie de som como “quên-quên” ao mover o corpo para lá e para cá. Se algo tinham de diferente aquelas duas aves eram os olhos. Ele tinha um olho grande, como se fosse gavião, um olho que transbordava alma por todos os cantos.


Entre quên-quêns e bicadas deixaram- se conhecer, cantar poesias e comer outros tantos frutos, não só amarelos, não só vermelhos. A pata que vivia na redoma acinzentada e entre leões , pela primeira vez sentiu-se querida pelas penas que trazia, pelo bico que ostentava e pelos olhos que lhe enfeitavam a cara.


Lentamente a juba se desfez e sua natureza de ave fez-se aparecer. Eu acho que foi por causa do pato de olho de gavião que se deu toda a transformação. Outros a quem contei esta estória dizem que foi por questão de inteligência, posto que ninguém nasce pato e vira leão ; dizem que uma hora a pata cairia em si, por entre penas e alvéolos, e saber-se-ia que não há chance alguma de virar leão por gosto ou desejo.


Eu tenho para mim que nem sempre a natureza nos dota de todos os tipos de inteligência. Vejam vocês o caso da pata: tão brilhante em diagnosticar um espirro, mas tão cega por não enxergar-se como era verdadeiramente. Uma hora entenderia que não teria garras nem natureza leonina e correria para os seus, abdicando da selva cinza.


Eu acho mesmo que à nossa pata faltava um espelho, não só um espelho de água, mas um espelho outro, o espelho dos olhos do pato com jeito de gavião para fazê-la entender que pode mostrar-se em sua essência, que pode mostrar-se em sua delicadeza, posto que não é pecado e nem crime ser tão frágil. Eu tenho mesmo cá comigo a impressão que a pata ainda teima , de vez em quando em ser leão, porque, como sabem vocês, mais fácil é encontrar agulha em palheiro, chifre em cabeça de cavalo do que livrar uma criatura de uma idéia fixa. De vez em quando, eu acho, que ela tem uns arroubos de leão, quer rugir no lugar de fazer quên-quên.


No entanto, sábia é a natureza e o destino que trouxeram o pato de olho de gavião para junto da pata médica; penso que quando ela teima em rugir ele é quem, em sua poesia e seu amor, lembra-lhe de sua essência de ave e coloca um quên-quên em sua boca.


É, sagaz é mesmo a natureza que fez os leões para os leões, os tigres para os tigres e os patos para as patas. E vocês, o que acham?