domingo, dezembro 27, 2009

Sobrevivendo a um papo-cabeça



Mal pude conter minha euforia quando encontrei um pequeno, porém curioso título numa prateleira despretensiosa de um supermercado, lá estava o Pequeno Manual de filosofia para sobreviver a um papo-cabeça (Editora Agir, 2008), olhando para mim, não pude evitar: levei-o.


O livro, escrito por Sven Ortoli e Michel Eltchaninoff, um físico, outro filósofo é um interessante manual, tal como está expresso no título, para que possamos sobreviver àquelas conversas intermináveis nas quais , muitas vezes, somos jogados, assim, de pára-quedas, e nos vemos perdidos, encrencados, no popular: metidos numa enrascada.


Dividido em capítulos que nos lembram todos os rituais típicos em que se constituem um jantar qualquer, tais como "O aperitivo" , " As entradas", " O prato principal", os autores discorrem sobre as trivialidades que fazem parte de um nem sempre agradável encontro entre pessoas que mais desejam aparentar uma cultura inexistente do que serem claros e objetivos. De Slavoj Zizek, a quem chamam de astro pop da Filosofia, à Simone de Beauvoir e seu segundo sexo, os autores nos dão divertidas dicas para entrarmos na onda e não nos sentirmos massas acéfalas diante de um caldeirão de intelectualidade. Não, com o nosso manual nas mãos jamais seremos chamados de frívolos, ignóbeis, tampouco obtusos.


Em "O aperitivo", no tópico chamado "Do bom uso da citação", os autores dão um show de humor e ironia, tudo escrito com a pena do sarcarmo, desmascarando aquelas pessoas que tão bem conhecemos por trás dos discursos pomposos e elegantes. Não podemos esquecer uma das preciosas lições que o manual nos ensina:


" Assim como os aperitivos, o emprego das citações exige equilíbrio e atenção incansáveis. Todos têm um pequeno arsenal cuidadosamente equipado, testado e, supõe-se, pronto a ser acionado. É mister, porém, saber utilizá-lo no momento certo". (p.27)


De acordo com Sven e Michel, desafiar as citações de alguém pode revelar-se perigoso: "você pode passar por pedante ou agressivo". No entanto, cabe questionarmos: será que o objetivo dessas reuniões da "massa pensante" , da "nata intelectualóide" não são, a rigor, justamente claras demonstrações de pedantismo regadas por uma agressividade velada? Sim. O são, e por isso mesmo, lançar mão de um manual como este soa apropriado e até mesmo necessário, isto constitui-se na mais genuína tática de guerrilha, autodefesa pura, acredite.


"Massa crítica", "Desconstrução", "Situacionistas", " Gênero" e "Hipermodernidade" são outros conceitos explorados pelos autores e que fazem o público leigo, a mesma massa acéfala da sociedade, aquele 1% da população mundial que não leu Dostoiévski e tão pouco já ouviu falar em Hegel, entender um pouco os maiores pensadores da Filosofia até hoje, e isto significa dizer que o livro vai de Sócrates, como dissemos, até Zizek.


Além de mergulhar o leitor numa verdadeira aula de filosofia bem descontraída, também podemos sempre nos deliciar com a ficção construída pelos autores, sobretudo no que diz respeito aos perfis psicológicos de alguns tipos com os quais podemos nos deparar quando estivermos inseridos numa reuniãozinha de egos desse tipo. Não raramente encontraremos certos tipos dos quais devemos nos proteger de alguma forma, como, por exemplo:



1 - Jornalósofo: [...] o sujeito não é, ou não é exclusivamente, filósofo; ad minima, fez estudos de filosofia, recusando energicamente o rótulo de 'jornalista', embora tenha pelo menos um programa de rádio, uma crônica num noticiário e artigos regulares publicados na impresa diária regional [...] É facilmente reconhecido pelo visual. Num jantar superchique, ele aparece de gola rolê, conciliador e sem afetação, exibindo extrema smplicidade, realçada por sandálias e dar inveja aos franciscanos". (p.24)



2- O antenado: "Ele não é desses intelectuais para quem a filosofia termina onde a vida começa, a verdadeira. Para ele, 'D & G' não evoca apenas o binômio Deleuze-Guatarri, mas também uma célebre grife de moda. [...]. Baixinho, olhar faiscante por trás dos óculos de aros de metal, lembra vagamente um John Lennon diretor de cinemateca". (p.31)


3- O musicólogo pirado: " Casaco de couro, blue suede shoes e mecha grisalha. (p.35)


4- O neo-hippie: " adepto de valores autênticos, apóstolo do trabalho em cooperativa e do estilo ethnic chic [...] expelindo superficialidades com uma voz meiga e um sorriso digno do buda alcançado o último degrau da verdade, ele vê filosofia em tudo.


5-O vilão: " Você fala das próximas férias? Ele anuncia com fleuma que está de partida para a Coréia do Norte [...]. O assunto é política? Opõe-se categoricamente à independência do Kosovo e improvisa uma homenagem póstuma a Milosevic. [...]" (p.74)



Sem dúvida, seja qual for a "cena" do momento, não poderemos nos desvencilhar deste tipo de reunião; acredite: cedo ou tarde você se verá enrascado, metido numa destas circunstâncias em que o que mais importa é arrotar eloquência e destilar um veneno pseudo-cultural. Filosofia pode não ser o prato principal sempre; é possível que você tenha que trazer na manga um manual específico sobre cinema novele vague, expressionismo alemão, vanguarda literária, estar a par do que se passa na cena cult berlinense, e , claro, saber quem está na capa da Bravo! do mês.


Devemos também saber nos portar, vestirmo-nos com acessórios vintage, utilizar maquiagem demais ou de menos (nunca o razoável), também devemos ter em mente, tal como dito no livro, uma ou duas citações, de cabeça, mesmo, isto é imprescindível.


As preferidas do momento são as que fazem referência ao Pequeno Príncipe, se você for mulher, digo, uma mulher no início da fase adulta, beirando os 25 anos, certamente terá que trazer no bolso uma citação de Clarice Lispector, algo que fale de "dor", "vazio" e "medo", não necessariamente nesta ordem.


Falar de Freud também pode ser interessante, mas acredito que os autores pós-modernos estejam mais em voga. Citar Debórd, Susan Sontag e Zizek fazem toda a diferença, isso demonstra que você é alguém extremamente sábio e antenado no que acontece atualmente. Não podemos esquecer também de citar em algum lugar, qualquer que seja, uma referência à Chico Buarque, Clara Nunes ou Cartola ( que ficou mais conhecido pela multidão quando do lançamento do filme Cazuza, verdade tem que ser dita).


Uma gafe? Citar poesia talvez não seja nada bom. É considerada uma arte menor, pois, qualquer obtuso é capaz de decorar um "Soneto da Fidelidade", quero ver mesmo é entender " Deus está morto", de Nietzsche. Outra coisa também que poderá prejudicar-lhe é não saber francês, sequer um "L'amour"? Vire-se com o que souber, nem que seja um Eau de parfum. Tudo vale a pena, se a alma não é pequena , acredite, tudo depende do sotaque, muitas vezes.



Bem, a despeito da minha vontade, a lista termina aqui; porém a cada dia que passa descubro novas artimanhas , novos interesses e trejeitos da população pseudo-cult com a qual convivo , mesmo contra vontade. Por ora, contento-me com meus próprios conselhos e com as pérolas graciosas do manual, que, com certeza, se não me fará mais culta, ao menos me oferece a oportunidade de rir muito dessas circunstâncias tão entediantes. Mais que recomendo.

quarta-feira, dezembro 23, 2009

A visão em Paralaxe aplicada à relacionamentos




Paralaxe significa, de acordo com o dicionário Houaiss, mudança ou deslocamento aparente de um objeto quando se muda o ponto de observação. Em 2009 , um dos mais atuantes pensadores do recente século XXI, Slavoj Zizek lançou, pela editora Boitempo "A visão em Paralaxe". Eu, que ainda não li o livro, mas pretendo, venho aqui achincalhar o conceito de Zizek e aplicá-lo, da maneira mais esdrúxula possível, a um dos temas mais interessantes e que sucita diversas questões: os relacionentos entre homens e mulheres.


Antes de tudo, digo que isto aqui não é nenhum manual de instruções e, direi logo também que é inevitável a paralaxe, de outro modo, não podemos jamais evitar que a paralaxe invada nossos relacionamentos e nos faça deslocarmos, tal como meros objetos, objetos de desejo.


Feito o preâmbulo, farei as considerações as quais acho necessárias, visto que não poderemos jamais impedir que a paralaxe se entranhe em nossas relações. Portanto, o que segue são algumas características do dado fenômeno associado aos relacionamentos:


1 - A visão em Paralaxe no relacionamento consiste nas constantes modificações que sofreremos enquanto pertencermos à classe de meros objetos do desejo do Outro. Logo, entendamos:


a) Se o objeto para você (namorado/marido/amante) inicialmente é visto como alguém rodeado de características positivas, extremamente interessantes, saiba, isto mudará: a paralaxe atuará da maneira mais cruel, destituindo o Outro de qualquer significado mágico/místico , a isto se chama: mudança de paralaxe. Em outros termos: desapaixonamento/abuso/desamor.


Lado negativo: você será destituído de todas as qualidades douradas e áureas através das quais você foi alçado à posição de objeto de desejo privilegiado. A você não caberá nenhum tipo de argumentação, não adianta vestir-se melhor, maquiar-se melhor, emagrecer, engordar, falar baixo ou falar alto: quem te olha, o observador, já terá mudado de posição e a partir deste novo lugar, você não é tão interessante mais.


Lado positivo: O observador também é observado pelo objeto, logo, ele não mais será essas coca-colas todas; a paralaxe atua para ambos os lados. Isso é legal.


SITUAÇÕES COMUNS PARA EXEMPLIFICAR A VISÃO EM PARALAXE:


a: Interesse imediato: " Fulana/o me ama?" "Droga, olhando direitinho, e por esse ângulo, fulana não me é mais interessante"


b: Pedido de atenção: " Fulana/o precisa de mim? " Droga, vendo por este lugar, fulana/o não me é mais interessante"


c: Acordo mútuo de Companheirismo: "Fulana/o finalmente me aceita como seu par? " "Droga, vendo aqui de mais pertinho, fulana/o não me é mais interessante"



CONSELHOS A SEGUIR DIANTE DA PARALAXE INEVITÁVEL:


1 - Ñão lute contra a paralaxe, você um dia será desinteressante

2- Um dia do objeto, outro do observador

3- Tal como dizia Woody Allen, a humanidade é hipócrita e certamente um homem sentir-se-ia decepcionado com o clube que o aceitasse como sócio ( isto vale para namorados e namoradas)

4- Quem tem o mel, dá o mel, quem tem o fel , dá o fel ( filosofia popular muito acertada)

5- A paralaxe não perdoa ninguém, o que devemos saber é nos adequar a ela

6 - Um dia você é a roupa nova; noutro, o trapo ( depende do ângulo do observador)

7 - Diante disto tudo, nos cabe apenas sublimar


terça-feira, dezembro 01, 2009

Nem Pasárgada nem Canaã: "As cidades de Freud"





" A psicanálise é projetada como uma cidade sem muros e sem fortificações, como uma ‘fábrica do pensamento’ , livre para a pesquisa e governada por uma única política, a da ética. É totalmente diversa da cidade utópica ou da cidade celeste que se fundamentam no princípio de uma harmonia necessária”.


Giancarlo Ricci



Em um livro que mais se parece um diário de viagem, Ricci guia o leitor pelas cidades maravilhosas que fizeram parte do itinerário de um viajante ilustre: Sigmund Freud. Suas constantes idas e vindas, seus trajetos por vezes labirínticos , tal como Ricci os avalia, outrora montanhosos contribuiram para a elaboração e desenvolvimento do arcabouço teórico da chamada "bruxa metapsicologia freudiana", a Psicanálise.


Em As cidades de Freud ( Zahar, 2005), Ricci nos apresenta a geografia, os sotaques diferentes, os hábitos e costumes de cidades pelas quais Freud perambulou e sem as quais seria mesmo difícil imaginar o desenvolver da história do movimento psicanalitico.


Assim o autor nos guia por Viena, Berlim, Frankfurt e mais outras 37 cidades as quais tiveram extrema importância para o pensamento freudiano. O mais interessante parece ser o artifício que Ricci utilizou: as próprias palavras do pai da psicanálise. Servidos de trechos retirados das correspondências de Freud para sua noiva, Martha Bernays, do amigo Fliess e do futuro desafeto Jung, Ricci nos leva a conhecer ainda mais o homem Freud por trás do criador da teoria psicanalítica.


Assim, somos levados em seis capítulos a mergulhar no relevo montanhoso de Karlsbad e quase enxergar suas águas termais as quais tão bem faziam à saúde de Freud, também conhecemos um pouco da impaciência de Freud diante da agitada Paris, pois, segundo confidencia à noiva o médico austríaco:


" A cidade e as pessoas eu as sinto estranhas, parecem de um tipo absolutamente diferente do nosso; acho que são todos possuídos por mil demônios... Tenho a impressão de que não são capazes nem de vergonha nem de horror, todos - homens e mulheres - aglomeram-se igualmente em torno da nudez da vida como dos cadávares da Morgue e dos cartazes horripilantes afixados pelas ruas..."

(Ricci, 2005, p. 64)


Ora, era o espanto de um homem que sempre se julgara, possuir , em essência " um coração alemão-provinciano" diante das aglomerações, dos cafés e da agitação da grande Paris que nada lembrava a natal Morávia. Freud também, como Ricci sustenta, não gostava de Viena; não seria exagero também dizer que Viena era odiada por Freud com a mesma força com que odiava o jovem médico das histéricas. De acordo com o autor de As cidades de Freud, Viena pode ser considerado o ponto mais baixo do itinerário da viagem de Freud rumo à cidade da Psicanálise.


Nesse momento, cabe perguntar: se Viena é o ponto mais baixo, qual seria, então, o clímax desta viagem pela qual o homem Freud percorre e transgride os próprios limites rumo à cidadania única, a cidadania da cidade psicanalítica?


Não seria puro acaso a nacionalidade italiana de Ricci: a cidade considerada o marco, o cume desta "viagem de uma vida", era Roma, a qual, segundo nos informa o autor, sempre fora protelada, como que deixada para depois no itinerário freudiano. Depois de ter percorrido Palermo, Veneza e Milão, Freud finalmente visita a cidade de seus sonhos e de seu herói Aníbal.


Um lugar simbólico, sem dúvida, que representa também um divisor de águas para a história da psicanálise: Em 1901 Freud chega à Roma e pela primeira vez pode-se dizer que já há um esboço de psicanálise, um mapa bem delimitado ( A Interpretação dos Sonhos tinha sido lançada um ano antes, marcando um novo início para a teoria).


O itinerário, depois de ultrapassar esta primeira fronteira, não se esgota: ainda há muito a percorrer, pessoas a conhecer e , sem dúvida, Freud foi um aventureiro viajante rumo a um lugar que nem mesmo ele sabia precisar ou localizar: a riqueza de sua própria invenção.


Assim, acompanhamos esta viagem e com o passaporte na mão chegamos ao Novo Mundo: A América do jovem Brill, a América que hoje denigre e pinta com cores outras o esboço que o precursor deixou-nos de herança.


De acordo com o que se sabe, através da biografia de Ernst Jones, Freud murmurou nos ouvidos de um amigo, logo ao avistar a Estátua da Liberdade: "Mal sabem eles que estamos a lhes trazer a peste". Honrado pela Universidade de Worcester, em Massachussets, querido por muitos acadêmicos como William James, Freud conhece Nova York, Worcester e nada do que vira ali, no Novo Mundo, lhe enche os olhos: continua achando tudo muito cansativo, comemorando a volta ao seu velho continente , como escreve para a filha Mathilde:


" Estou muito feliz por estar de volta e ainda mais feliz por não ter que viver na América". ( Ricci, 2005, p.144).


Parece que Freud já previa, podemos arriscar, os riscos que sua psicanálise sofria em nome da adequação ao american way of life. Sem dúvida o pragmatismo e o puritanismo americanos contribuiram para uma coisa outra que foi criada no lugar da teoria do inconsciente freudiano; a chamada Ego Psychology emerge no continente americano fazendo o inconsciente desaparecer e transformando o psicanalista em meros "espremedores de cérebro" ( Ricci, 2005, p. 142).


À despeito desta mediocrização que sofre a psicanálise em solo americano, Freud continua suas viagens, dá prosseguimento a seus novos empreendimentos, às vezes retornando à velhas questões que nunca pareciam saciadas, resolvidas ( vide o caso de Moisés e as várias vezes em que Freud retorna à mesma questão), noutras anunciando novos conceitos, novas inspirações, como se estivesse sempre vindo de Karlsbad , a cidade termal de que eu já falei.


As cidades de Freud nos mostra um viajante, um homem de seu tempo, preocupado com a ética da nova disciplina que criara, um judeu que não utilizava a origem para vitimizar a si e nem a seu povo, um homem cuja laicidade auxiliou o desenvolvimento de sua própria metapsicologia, que, se não pode hoje ser entendida como um percurso acabado, um projeto concluído, tampouco este fato torna , nós, psicanalistas, psicológos ou somente curiosos da área psi, menos aptos para fazermos nós mesmos os nossos próprios mapas, seguindo as nossas próprias rotas rumo à cidade psicanalítica a qual Freud alcançou, no fim de sua vida, ele mesmo um homem originalmente de fronteira, nos ensina a romper os limites e ir mais longe.


É a isto que Ricci nos convida neste instigante e belo livro.

terça-feira, novembro 24, 2009

O conto do derradeiro dia


Acordou. Eram sete horas de uma manhã que levantava cinzenta, sendo o cinza o prenúncio do que viria a ser o último dia de sua vida, vã em quase todos os momentos, mas com relances de interessantismo.


Estava decretado, por alguma ordem divina, que aquele seria o derradeiro dia de sua existência: preparou-se para levantar, posto que tudo que até agora turvava seus pensamentos apareciam em sua mente ainda sem a companhia dos olhos, estes estavam preguiçosamente fechados, à espera de algum comando, de um som qualquer, do bater de asas de uma andorinha. Eram olhos fechados que inauguravam aquele dia, dia em que tudo findaria.



Acordou-se, ou, dizendo de maneira mais correta, abriu a fina cortina que trazia diante dos olhos, oferecendo-os àquele cinza e aos raios de sol que não vinham. Tão logo registrava o mundo, as nuvens e o céu, sentiu a necessidade premente de alimentar-se: o estômago companheiro reclamava o de comer e era preciso atendê-lo para acabar com todo aquele protesto em forma de sons estranhos.


Preparou para si mesmo um copo de leite o qual, cuidadosamente, colocou numa bandeja, ao lado de uma manga: assim, pensou, seria mais fácil suportar a morte que inadiavelmente aconteceria.


Era preciso adiantar o processo, uma vez que do destino último nada ou pouco se sabe, e, por
questão de evitar fila, era necessário apressar de vez o último suspiro, era mesmo imprescindível abrir a porta à ceifadora antes que ouvisse as primeiras e temidas batidas na velha madeira.


Com desdém olhou para o copo de leite: era muito , certamente seria o suficiente para fazer a passagem deste para outro mundo de barriga cheia, sem reclamações ou protestos estomacais de qualquer espécie. A manga seria apenas para facilitar o acesso rumo ao desconhecido, pensou sem titubear: se é para ir, que seja de uma vez e sem delongas.

Depois de sorver o leite e chupar a manga que em nada lembrava as frutas maravilhosas que colhia no pomar de sua mãe, memórias de sua doce infância, repleta de igualmente doces jaboticabas e melancias, deu prosseguimento ao penoso processo de adiantar a vindura da morte.


Foi quando atentou para o fato de que somente se preocupou em tomar o leite e chupar a manga, mas esquecera do mais urgente: era preciso virar as chinelas, isto era de lei e não poderia faltar nos preparativos derradeiros.

Tirou as velhas chinelas e virou-as de sola para cima, imaginando ser este um gesto de mau agouro, e, se o mau agouro honrasse seu nome, certamente adiantaria em uma ou duas horas a morte inescapável. Era preciso, sim, virar as chinelas, como não pensara nisso antes?


Certamente deveria tê-lo feito ao levantar, antes mesmo de calçá-las, esse retardo, sem dúvida, retardaria também o início do seu fim.


De qualquer forma, fê-lo: virou as chinelas e já achava que tê-lo feito era melhor do que andar por aí, calçado, somente esperando morrer por ter tomado leite e chupado uma manga. Tudo parecia muito bem, todos os rituais estavam sendo seguidos e isto com certeza lhe daria algum respaldo quando qualquer um outro falasse destas conversas de deixar a vida, de ir para outro plano ou outra existência.

Porém, nada poderia ser tão perfeito se não fosse um esquecimento: Não ouvira um pio de coruja , nenhum, durante a madrugada. Isto o deixou perplexo: "Como pretendo antecipar a minha morte se não há sinal qualquer de coruja, nenhuma lembrança, mesmo que vaga, de ter ouvido nada, nem um piozinho sequer anunciando a chegada da indesejada das gentes?", constatou.


Não, isso não estava certo, urgia substituir o pio da coruja por algo que assegurasse a eficiência dos últimos momentos rumo à eternidade. Pensou no mais óbvio sinal de azar: o gato preto. Sim!


E porque não, se este não aparecia apenas à noite, se este era mesmo um animal doméstico e melhor, se era tão acessível?


Eis que surge a idéia: foi ao encalço de Benedito, um gato preto e tísico o qual sempre passou por maus bocados mas que, insistentemente, costumava posar diante da morte com um ar de escárnio, de superioridade, como se não a temesse. Benedito, sim! apesar de desafiar a ceifadora, seria ele o melhor substituto do pio da coruja. Acreditava que se o gato gastava seu tempo a se esquivar habilmente da própria morte, sem dúvida a desviaria de si mesmo ao colocá-la face a um outro inimigo, maior, humano, que era para se dar uma morte melhor.

Desejou ser ele mesmo o substituto do gato quando a morte viesse buscar alguém. Benedito, que já vinha fazendo uso da oitava vida, se não demonstrou repúdio à idéia, tampouco se fez de rogado em aparecer e dar umas voltinhas diante de seu dono. Continuou, então, todo faceiro, passando para lá e para cá, esperando ser ele uma espécie de coruja piando e trazendo todos os mau agouros possíveis em seus tímidos, porém expressivos miados.


Depois de achar o gato, virar as chinelas, tomar o leite e chupar a manga, pensou: " Agora é que ela vem mesmo, sem dó nem piedade, ceifar-me a vida como sempre tem feito por ofício, agora sim, é o momento e não haverá nada além disso, uma morte rápida e rasteira, uma espécie de suspiro e pronto...outro espaço, outra vida, nuvens? Fogo? Harpas? Não se sabe, a única certeza que se tem é que ela vem e que será lépida, ágil", empolgou-se.

Nada de alvoroço, nada de meses em unidades de tratamento intensivo. Ela virá como vem o vento minuano nas querências gaúchas, ela virá como uma estrela cadente que poucos conseguem acompanhar. Virá como um cometa, como um espirro, será eficiente e cumprirá seu papel com maestria. Nada de extrema-unção; não haverá tempo. Nada de último desejo, tampouco restará consciência para sequer imaginar um último pedido. Ela virá como um furacão e levará aquilo que sempre foi uma existência pacata, por vezes morna, mas nunca arrebatadora.


Diante de todos os preparativos percebeu-se plácido, calmo, como sempre fora em vida: sentou-se, leu as primeiras notícias de seu último dia e pensou: “ É, a bruxa está solta...”. Foi quando atentou para um dos mais simples rituais e que, porém, esquecera de seguir: Procurou a primeira escada que desse com as vistas para passar por debaixo dela, porém, seria preciso sair de casa, pois lá não havia sequer qualquer escadinha de três, quatro degraus, tudo isto parecia já cansativo, mas, pensou, o que seria mais um último cansaço diante daquela vida quase sempre entediante?
Por que não dar um derradeiro passeio, contemplar as últimas flores que insistirão em florescer mesmo quando seus olhos virarem comida de minhocas? Vá lá, a morte requer certos sacrifícios, e era preciso fazê-los, nem que fosse para morrer em paz.

O fato de andar pela rua já poderia adiantar em muito o processo, concluiu. Por isso, preparando-se para sair de casa, resolveu dar várias chances ao azar e com isto talvez chegasse a sua morada final com muitas horas de antecedência na frente de muitos outros que certamente estariam cansados, em fila, tendo passado por uma morte mais difícil.


Deixou todas as portas destrancadas, que era para pegar o ladrão desprevenido, procurou sair também com todo o dinheiro de que dispunha em mãos: não era uma soma alta, mas era alguma coisa para qualquer um que fosse menos privilegiado pela vida ou pelo destino. Saiu com notas de cinqüenta reais na mão esquerda, levando Benedito à coleira, sem chaves ou carteira. Seguiu seu caminho com passos calmos, como se não houvesse pressa alguma no mundo.

Não pôde deixar de notar os olhares curiosos: não era todo dia que se via um homem de ceroulas azuis, descalço, com um gato preto numa coleira e notas visivelmente esmagadas na mão. Todos olhavam-no e ele parecia trazer no peito um desejo tão bravio, uma coisa de herói destemido, não temia ladrão, queria mesmo que estes chegassem e lhe atacassem, levassem seu dinheiro e sua vida, isso estaria nos planos da ceifadora.
Também queria ser visto, mesmo que tivesse passado toda a vida se escondendo dos olhos de quem quer que fosse. Um exibicionismo último não lhe cairia mal, pensara enquanto formulava alguma frase engraçada para ser colocada em sua lápide.


Seguiu seu rumo e só parou quando avistou a escada e não hesitou: preparou-se, deu o último suspiro e seguiu, pronto para passar por baixo daquela estrutura de metal enferrujado. No entanto, como esta vida pode ser tudo, menos justa, nada acontecera e a escada não funcionou como um portal para outra vida, longe disso. Era apenas uma escada enferrujada, mas, se não morreria pelo simples trabalho do mau agouro, morreria de tétano se seus dedos dessem com alguma espécie de prego enferrujado, animou-se.

Passou algumas horas a passar por baixo da velha escada até que cansou e seguiu para sua casa. Lá voltando, encontrou tudo como antes: nenhum sinal de arrombamento, nenhum sinal de intruso, era ele, sozinho, se deparando com o espelho. Aquela figura já patética, praticamente nu, aparentava cansaço, mas, pelo que pôde observar nos próprios olhos, não aparentava tédio; aquele último dia fora bastante movimentado, diria certamente a quem quer que lhe interrogasse, nos lados de lá.


Deprimiu-se pela última vez com sua aparência, Foi até a cama e pensou que esperar pela morte deitado seria muito mais conveniente, uma vez que nunca viu ninguém ser enterrado em pé. Deitou-se para vê-la chegar e , quando ela chegasse, não poderia ter nenhum reflexo, nenhum ímpeto de lutar contra a voraz inimiga: até aí a preguiça já teria consumido todos os seus ímpetos ou impulsos, tudo isto que nunca usara em vida.

Deitou-se e lá ficou, a esperar a eternidade, que, face o adiantado da hora, certamente não viria mais. Resolvera dormir porque durante a noite a tal coruja piaria e estaria, enfim, completo o ciclo de uma vida lastimável. Se não fosse hoje, pensou, de amanhã não escaparia.

quinta-feira, novembro 12, 2009

Entre o noir, o desejo, a comédia e o masculino: Uma possibilidade de falar de Abraços Partidos




“Há que se terminar os filmes, mesmo que seja às cegas”


Com esta frase, encerra-se o mais recente filme de Almodóvar, Abraços partidos, ou, Los Abrazos rotos (Espanha, 2009). Com Penélope Cruz e Lluiz Homar nos papéis protagonistas da película, observamos um retorno do cineasta espanhol ao universo noir dos estúdios hollywoodianos tão bem explorado em Má Educação (2004), pois, apesar de haver, no meio crítico, freqüentes discussões a respeito do que seria um filme noir - ou seja, o filme que ficou conhecido por privilegiar locações luxuosas, narrativas densas a respeito, não raramente, dos psicologismos e desvios de caráter das personagens ( em sua maioria femininas) – não se pode negar a inspiração e a alusão a este estilo de filme em Almodóvar.


Abraços partidos trata da história de um escritor sobrevivente de um desastre que lhe provocara um tipo de cegueira irreversível. Mateo Blanco ou Harry Caine (impossível não pensar na sonoridade deste nome e a sua similaridade com a palavra inglesa Hurrycane, em português Furacão). Revelado ao espectador como uma narrativa não linear, o filme apresenta um flashback do passado de Mateo Blanco por ele mesmo editado, na forma de uma conversa com Diego, como diz a personagem de Mateo, antes de fazer cinema gostava muito de contar histórias, isto, de antemão, adverte o espectador que, nem tudo no relato pode ser verossímil, por via das dúvidas, estamos diante de uma história contada pelo narrador de quem a verossimilhança do relato depende e sobre a qual o espectador, tal como Diego, jamais terá garantias.


Tal como Diego, o espectador é levado à gaveta na qual Mateo ou Harry Caine, guarda as lembranças mais importantes de seu passado. Em meio a fotos rasgadas, cadernos e álbuns de fotografia, conhecemos um pouco da vida de Mateo, ou suas mais importantes passagens que levariam a compreensão da sua trajetória de vida, mais especialmente no período entre 1992 e 2008 – época atual em que se passa a conversa de Mateo/Harry e Diego.

Não se pode esquecer que a gaveta aberta por Diego e que dá mote à narrativa também guarda os segredos que serão revelados no decorrer do filme, dando-lhe todos os elementos e matizes de um bom filme noir.


Tal como Diego, bisbilhotamos a relação entre Mateo e Judit, agente de Mateo, através das fotos guardadas, bem como somos apresentados a personagens importantes que farão parte do enredo que conheceremos a seguir: o retrato de Madelena, interpretada por Penélope Cruz, a figura de Ernesto Martel filho, atualmente conhecido como Raio-X.

Assim como a gaveta, a folha de jornal impresso também apresenta ao espectador a figura de Ernesto Martel, uma espécie de vilão do filme, cuja morte noticiada torna vívidas as lembranças de quatorze anos as quais assombram as vidas tanto de Ernesto como de Judit e que motivam a narrativa.

Tendo, pois, cumprido a missão de revelar um pouco a trama do universo de Abraços partidos, cabe agora fazer menção ao homem que idealizou tudo isto, e, sobretudo, porquê este filme já tem sido considerado mais uma obra-prima deste cineasta.


Em “Conversas com Almodóvar” (Jorge Zahar, 2008), Fréderick Strauss, importante jornalista a quem o cineasta deu inúmeras entrevistas desde o início de sua carreira, no começo da década de 80 até a atualidade, sustenta que Almodóvar filmou “a linha reta do desejo com o que ele tem de espetacular quando é definido como alvo. Mas também, e ao mesmo tempo, a curva sinuosa que todas as histórias de desejo percorrem” (Strauss, 2008, p.10).

Um retorno ao masculino?


Com isto, é correto afirmarmos que, esquecendo o universo Kitsch, o melodrama, a comédia escrachada que atravessa tantas vezes a obra do cineasta – temos bons exemplos disso tanto em Kika (1993) como em Maus Hábitos (1983) – Almodóvar interessa-se pelas vicissitudes do desejo, nunca abandonando esta temática em seu discurso fílmico. Assim, se temos em Kika, o disparate, a relação sexual que teria tudo para ser traumática transformada surpreendentemente em comédia, temos em filmes como A lei do Desejo (1987), De salto alto (1991) , e mais recentemente Má Educação (2004) e Volver (2006) , a temática da ditadura do desejo, seus caminhos e descaminhos os quais, por vezes, levam às personagens a viverem vidas que apagam ou, possivelmente, atenuam os limites existentes entre comédia e tragédia.


Abraços Partidos não é diferente: percebemos como o desejo é subjacente a toda narrativa, seja na figura de Raio –X, Ernesto Matel filho, desejoso de tornar Mateo o escritor de um filme idealizado para denegrir a figura paterna autoritária e castradora, seja no desejo recôndito da personagem Judit, para quem o próprio desejar tornou-se motivo de amargura e angústia, ou mesmo no desejo de Madalena, representado não somente pela vontade de representar, de ser atriz, mas de viver com um homem cujo poder e obsessão não se tornasse moeda de troca no relacionamento.


Em recente crítica veiculada pela revista Bravo! deste mês, o jornalista Paulo Nogueira contempla o lançamento de Abraços partidos e o considera como o filme que reconcilia Almodóvar com as personagens masculinas densas e com maior carga dramática. Segundo o que sustenta o jornalista, em Abraços Partidos encontra-se um Almodóvar sempre magistral, mas, desta vez, mais brilhante, posto que retorna ao masculino depois de uma longa carreira focalizando o universo psicológico feminino, fazendo deste um ponto central de sua obra.

Pelo que percebe o leitor de Bravo!, Nogueira regozija-se deste retorno de Almodóvar ao masculino, porém, há algo que o crítico não menciona ou mesmo fez questão de não relacionar ao filme: a importância do feminino como o que promove a movimentação do desejo das personagens masculinas, mais especificamente: Diego, Mateo/Harry e Ernesto Matel.

Dizendo de outra forma, concordo com Nogueira quando este sustenta que nunca houve na filmografia de Almodóvar outra personagem masculina tão rica e densa como Mateo/Harry. No entanto, não falar da importância, muitas vezes velada, mas constante, do desejo feminino movendo a narrativa de maneira quase invisível , incorre, no mínimo, em desatenção: É a personagem de Judit que toma a cena e esclarece muitas questões que Mateo/Harry desconhecia sobre seu acidente, sobre o destino da verdadeira película Chicas y Maletas que escreveu e cujo protagonismo era de Madalena (Pina), culminando, também, com a revelação da paternidade de Diego, filho de Judit.

Assim como o aparente secundarismo da personagem de Judit, não se pode esquecer que o destino de Madalena foi selado pela obsessão e pelo amor psicopata de seu amante, Ernesto Matel, poderoso empresário cuja residência impressiona pelo simbolismo fálico – não se pode esquecer dos quadros de revólveres que aparecem a todo tempo nas cenas feitas neste cenário – parece não conhecer os desejos de sua amante, a cena dos dois em Ibiza após o coito demonstra a ignorância do homem poderoso face ao desejo de Madalena: será que ela ficara feliz por imaginar seu amante morto? Relacionado a essa ignorância sobre o desejo feminino, tem-se aparecimento da personagem que não tem nome, mas é paga por Martel para ler os lábios de Madalena nas cenas de um documentário das filmagens de Chicas y maletas, feitas por Raio-X.

A comédia em Abraços Partidos

Apesar das alusões ao estilo noir, do drama psicológico que aproxima Abraços Partidos do gênero do suspense, não se pode esquecer da comédia, também presente nos filmes de Almodóvar, Abraços Partidos não seria exceção.


Assim, Mateo/Harry, em 1994 produz Chicas y Maletas, uma comédia, inaugurando um novo estilo em sua filmografia: desejava tentar algo diferente. Seja nas cenas cômicas do universo do filme produzido por Matel e dirigido por Mateo/Harry que quebram um pouco o clima pesado e intrigante da película real, seja nos momentos finais de Abraços partidos em que o espectador adentra nas cenas verdadeiras de Chicas y Maletas – não se pode esquecer as claras referências das cenas do filme com Mulheres à beira de um ataque de nervos (1988), também de Almodóvar – está-se diante do inusitado, do cômico.


O desfecho do filme parece uma tentativa de um novo compromisso com o espectador que, se antes se sentia imerso numa atmosfera tensa e intrigante, agora era convidado para entrar noutro universo, o universo do cômico de Chicas y maletas: somos ejetados dessa realidade cômica a partir do retorno à ilha de edição , às personagens de Judit, Diego e Harry/Mateo, para, enfim, sabermos que estamos chegando ao término da película, pois, como prenuncia a personagem de Lluis Homar: “há que se terminar um filme, mesmo que seja às cegas”.

Tantas outras questões do universo almodovariano...

Sem dúvida poderíamos aqui falar de muitas outras questões, e com isso, acredito, estaria tornando este texto mais longo, mais cansativo, o que não se faz objetivo.


Poderia falar da presença do vermelho em todas as tomadas do filme (Segundo Almodóvar, o vermelho tanto representava a vida, a luz de sua terra natal, como também sangue, desejo), também da questão do metafilme, ou seja, o filme dentro do filme, a importância do registro cinematográfico para todas as personagens – a onipresença da câmera: ora cumprindo o propósito de filmar Chicas y Maletas, ora contribuindo para a feitura de um outro filme, do qual pouco se fala , porém, mas nem por isso menos importante: o documentário feito por Ernesto Martel filho sobre as filmagens do filme de Mateo/Harry: A câmera de Raio-X tanto denuncia o romance entre Madalena e Mateo/Harry, como testemunha o acidente envolvendo os dois amantes).


Sinto-me satisfeita por ter dito isso que disse e não mais, seja por falta de oportunidade, ou mesmo de foco. De acordo com o que dizia o próprio Almodóvar: “Todas as diferentes formas de ver o filme têm origem no próprio filme, e por essa razão são todas autênticas e válidas, incluindo as que menos me agradam” (Strauss, 2008, p. 56). Desse jeito, eu percebo que ainda há tanto mais para descobrir em Abraços Partidos, por hora é isto que vejo, e o bom é justamente isso, ou não seria cinema.

quarta-feira, outubro 28, 2009

A descoberta do mundo ou a descoberta de Clarice



"Sou tão misteriosa que não me entendo"


Clarice Lispector




Uma vez me falaram algo de que nunca me esqueci: Ler Clarice não é fácil, ler Clarice é angustiante. Eu, acreditando piamente das palavras de quem não parecia mentir, assumi então que era medrosa o suficiente para jamais, sob hipótese alguma, dar com os olhos em linhas assinadas por Clarice Lispector.


Acontece que, por esses mistérios que a vida prega, e , obviamente, seguindo o meu caminho, não pude evitar, um dia, ler Clarice. Mas, vejam bem: não comecei como todos, ainda não li um livro seu, romances, conheço Macabéa apenas do cinema e por ela nutro, em segredo, uma certa amizade, também não sei de onde isto veio, mas veio, e pareço me compadecer de Macabéa, mesmo sabendo dela apenas o que um livro didático de literatura me permitiu saber.


O caminho foi sendo feito até eu chegar nas Crônicas de Clarice; primeiro, "Clarice só para mulheres", dizia respeito às crônicas escritas para jornais brasileiros sob pseudônimos, feitas para divertir e informar as donas-de-casa, ciosas do dever do lar, ocupadas pelos cuidados maternos e envolvidas pelas obrigações conjugais. O livro é interessante e pude ver uma Clarice outra; lê-la, neste momento, não foi nada angustiante, sequer senti uma mísera fagulha de desespero, dor ou desolação; ler esta Clarice me fez entender um pouco mais de ser mulher, me fez saber segredos culinários, estéticos, enfim, nada que lembrasse dor me veio através da pluma de Clarice, talvez, porque com ela compartilhei algo que seria restrito à condição feminina: era isto, eu era mulher, Clarice era mulher, o livro era só para mulheres.


Acontece que nem tudo são rosas silvestres nesta descoberta. Descubro eu mesma outras crônicas, várias, escritas no período que vai de 1968 a 1973, em que vejo uma outra Clarice, uma Clarice, digamos assim, nem sempre leve, nem sempre didática, nem sempre só para mulheres, mas , prioritariamente, essencialmente mulher.


Acredito eu, agora, que Clarice é mais mulher neste, quando assina com seu nome e não mais sob pseudônimos, as crônicas nem sempre saborosas, nem sempre apetitosas, nem sempre feitas para a boa mulher do século XX.


A descoberta do mundo ( 1999, editora Rocco), me apresentou a Clarice de que alguns já falavam; a Clarice angustiada, triste e de uma tristeza ininteligível. Clarice, em suas crônicas, revela mais de si do que poderia supor o inocente leitor de "Clarice só para mulheres". Em crônicas como "Pertencer", " Ideal Burguês" e "Ritual", percebe-se o tom nem sempre fácil com que Clarice nos leva pela mão, ela, que a mim parece ter vivido como um ser acuado, com medo da própria existência e dos segredos que ela mesma gostava de ostentar.


Não, estavam certos os outros, Clarice não é fácil, tampouco agradável em todos os momentos; confesso que o prazer que retiro da leitura é originada justamente desta esperteza, dessa compreensão aguda que a autora possui da natureza humana, e não estou eu aqui falando mais uma vez de feminices. Clarice mesmo disse que não éramos seres segregados, tão diferentes dos outros. No entanto, o que percebo é que Clarice se mostrou muito mais mulher do que no outro livro que li, o outro, também interessantíssimo , me revelava a máscara social que eu, você e todas nós usamos; aqui e ali podemos notar uma pista de que há algo por trás de máscaras sociais feitas de pepino; algo além de bacias de sal grosso para pés cansados.


Este algo mais eu vi em A descoberta do Mundo. Ora, não seria diferente, e eu agora posso pensar, não seria nada cômodo, tampouco apaziguante, descobrir o mundo, posto que feito de lamentações, de perdas e de solidão. Solidão tão bem expressada na escrita sofrida e desejosa de companhia de Clarice Lispector.


Eu aceitei ser sua companhia, acredito que era isso que ela buscava, uma alma capaz de entendê-la, uns olhos para lê-la e que, com isso, dessem sentido a sua vida, tão arduamente vivida, aguentada. Eu emprestei meus olhos à leitura, mesmo contrariando meus primeiros ímpetos de não adentrar em um universo angustiante, aceitei o desafio: Ler Clarice não é fácil e seu constante apelo à companhia, à cumplicidade, me faz uma espécie de leitor-testemunha, o que nem sempre, ou quase nunca, é reconfortante.


Descobrir o mundo não é fácil. A leitura, esta ainda não acabou, posto que o mundo é vasto e o de Clarice me parece sem fim. No entanto, sigo, agora não mais ouvindo da boca dos outros o quão difícil é Clarice, mas sabendo de mim mesma que não, não é tarefa fácil esta que aceitei ao adquirir o livro, mas, justamente por isso, não canso de empreendê-la.


No fim de tudo ainda não acabei de descobrir o mundo e, caso um dia o faça, será uma decepção para mim.

segunda-feira, outubro 05, 2009

Budapeste: Metalinguagem e identidade


"A palavra metalinguagem, formada com o prefixo grego meta, que expressa as idéias de comunidade ou participação, mistura ou intermediação e sucessão, designa a linguagem que se debruça sobre si mesma. Por extensão, diz-se também: metadiscurso , metaliteratura, metapoema e metanarrativa . "


Em "E-dicionário de termos literários"


Se eu pudesse resumir o filme Budapeste em uma palavra, esta seria "Metalinguagem". Ao conhecermos a estória do escritor José Costa , iremos nos aventurar, em língua estrangeira , pelos caminhos que unem e separam duas cidades tão distintas: Rio de Janeiro e Budapeste.


A narrativa diz respeito a um escritor brasileiro que, vivendo uma vida apática e sem sentido, desloca-se por entre duas cidades numa tentativa de encontrar a sua identidade. No Rio, é José Costa, autor de best-sellers, porém, na condição de Ghost Writer, ou seja, escreve, mas não recebe os louros da obra; escreve para outrem , por outrem.


Em Budapeste, José Costa torna-se Kósta Zsozé, escritor, marido de Kriska (quem lhe ensina a língua húngara, a qual, segundo ela, é impossível de se aprender por livros) e também autor, não de prosa, mas de poesia, o que significa muito: Costa nunca escrevera em português nenhum verso, já em húngaro, viu-se diante do fascínio de uma outra língua, aquela, a única a qual o diabo respeitava, segundo Kriska, e, por isso, tinha que fazer algo, este algo foi: deixar as palavras surgirem assim, no papel pálido, tais como os "Fecse", as andorinhas, em húngaro, cujo bater de asas dava origem à obra.


Budapeste, baseado no romance homônimo de Chico Buarque, nos fala essencialmente de metalinguagem: o fim do filme deixa esta intenção muito clara em diversos momentos: seja no aparecimento na tela do autor da verdadeira obra, o próprio Chico, seja no olhar que, surpreendentemente José Costa ou Kósta Zsozé nos endereça, depois de nós, espectadores, nos depararmos com a capa do livro fictício escrito pelo Costa, igual à capa do livro de Chico, tudo culminando com a imagem da câmera que filma tudo e parece nos entregar a informação de que tudo é ficção, corroborado pelo apropriado "corta" do diretor que encerra a película.


Budapeste fala de entre-lugares, língua, metalinguagem. Melhor dizendo, podemos questionar: O que muda quando deixa-se de ser José Costa para ser Kósta Zsozé? Budapeste e Rio? Prosa ou Poesia? Autor ou Ghost Writer?


Trata-se da linguagem que fala sobre a própria linguagem, a poesia de quem só se aventurava em prosa é um caminho novo para Costa, tal como a prosa não deixa de ser um caminho novo para aquele que ficou famoso na Música. Mas, em que podemos mais pensar, ao nos surpreendermos com o Amarelo de Budapeste e o azul do Rio de Janeiro?


Pensamos, sobretudo, e não por acaso, no que somos, do mesmo modo que Costa era outro quando se travestia de Kósta e falava o idioma, e buscava entranhar-se naquela língua tão diferente do português. Por que a necessidade de outro país, outra língua, outra mulher? - Costa era casado com Vanda no Rio de Janeiro, jornalista de sucesso cujo principal papel era inferiorizá-lo, ele, que não tinha escrito um livro sequer ( Vanda ignorava a condição de Ghost Writer).


Temos a necessidade premente de nos reinventar, de buscar quem somos , e, mesmo assim, esta busca não incorre em certeza de descoberta, tampouco em sucesso. Nunca acharemos quem somos, sequer teremos a vaga noção do que somos, o que não é pouco angustiante. Costa ao se transformar em Kósta, busca a todo momento o seu reconhecimento, e nada mais simbólico do que a profissão que escolheu: escrever sem aparecer, porém, em alguns momentos esta necessidade irrompe e ele brada: "Sou eu, sou eu o autor do livro!".


A metalinguagem permeia toda a obra, assim como palavras, estruturadas assim, em sílabas e transformadas nos "tercetos secretos" escritos por Kósta, cuja poesia nunca será húngara porque irremediavelmente estrangeira, brasileira. Era o que Kósta não sabia: Não se podia abandonar a essência, traduzida em nacionalidade, o que não o impediu de tentar: A palavra para explicar a palavra, Fecse para Andorinha, assim como Costa para Kósta e Budapeste para Budapeste ( o do Chico).


No fim percebemos que em Budapeste ou no Rio , algumas coisas certamente não mudam. Costa será sempre Costa, mesmo que em outro cenário, e nós, nós nos depararemos com a nossa não menos angustiante condição de espectador a qual o filme bruscamente nos remete, esta é a função da câmera e do olhar inesperado do ator para nós, nós que estamos no cinema, uns estupefatos, outros não tanto.


sábado, setembro 19, 2009

Guidon, Celim ou Cabeça de touro?: O Mistério de Picasso




Pablo Picasso costumava dizer que , se por acaso, estivesse a caminhar por uma rua e se deparasse com um velho guidon de bicicleta e um celim, estaria diante da cabeça de um touro. Segundo ele, para o "homem comum", o guidon e o celim seriam e morriam sendo, apenas, o guidon e o celim.


Diante disto, a gente pode se perguntar, o que faz de Picasso um homem incomum? Em "O Mistério de Picasso" (França, 1955). Clouzot, o diretor, convence o amigo e artista espanhol a realizar um filme mostrando o que seria o seu "mistério". A saber, podemos pensar aqui: O mistério de sua arte. Convencido de que este seria um bom trabalho e um meio de se tornar cada vez mais popular - ele adorava mostrar-se grande, tal como realmente o foi - Picasso resolve então criar 20 trabalhos inéditos ali, em frente à câmera de Clouzot.


O resultado disto são pinturas e desenhos impressionantes que carregam a marca da genialidade de Picasso. O espectador, guiado pela mão e pelo pincel de Picasso, que mal aparece em toda a película, pensa estar a todo tempo invadindo um pedaço de papel, uma tela branca. Ele vai construindo e ao mesmo tempo cumprindo o papel de cúmplice na criação da arte de Picasso. Somos - e agora me coloco eu também como espectadora - raptados da nossa comum realidade pelas pinceladas rápidas e cheias de sentimento e levados para atmosferas diferentes daquela na qual estamos, de fato, inseridos.


Conhecemos cafés, entramos em arena de touradas, visitamos corpos perfeitos , tudo isto guiado pela mão do artista genial. Durante todo o filme temos a sensação de que estamos dentro da folha de papel, dentro da tela e somos , também com elas, pintados, oferecidos a uma outra realidade, uma realidade cheia de cor, de brilho, espânica por natureza e por direito.


O que chama atenção no filme de Clouzot, além da arte de Picasso, é a pretensão do diretor: O argumento para realização do filme é, logo de início, revelado ao espectador: era intenção de Clouzot demonstrar como a genialidade assalta o artista que, compelido pelas suas maiores e mais vigorosas paixões, empresta à obra de arte todo seu ser em busca de algo mais, alívio das tensões, talvez.


Clouzot abre o filme com uma voz narrando este objetivo maior que seria, demonstrar, através do movimento das mãos de Picasso , como a obra de arte é sentida e, posteriormente, concebida até se transformar na tela, no desenho acabados. Esta demonstração, contudo, de acordo com a opinião de Clouzot, só é possível nas artes plásticas, posto que não é possível acompanhar o desenrolar da genialidade na execução das obras primas da Músicas, como, por exemplo , nas sinfonias de Mozart, e tampouco na Literatura.


Por nos entregarmos à mão de Picasso, temos a impressão de que somos também pintados. No entanto, o argumento de Clouzot é discutível: Será que nos 75 minutos de filme estamos todos nós, espectadores, testemunhando o nascimento da genialidade? Não sei, acredito que estamos diante do nascimento das obras, estas que, após a realização do filme foram destruídas.


Não se pode dizer, porque vemos uma obra de arte nascer, que estamos perto de desvendar o mistério de Picasso, tampouco, o mistério de toda genialidade. Não seriam as artes plásticas, portanto, privilegiadas em relação à Literatura ou à Música, dito de outro modo: Será que acompanhar os movimentos passionais do pincel de Picasso nos faz realmente estar testemunhando e mais, desvendando o mistério da genialidade?


De acordo com Freud, todo artista tem em si o privilégio de ter livre acesso ao que chama de "reserva natural original", na qual todo homem guarda suas paixões e impulsos da vida infantil. Seria, pois , o artista aquele que tem um espécie de "passe livre" para adentrar nesta reserva. Reserva que, no homem comum, permanece inóspita, inabitada, quase perdida, porém existente - alhures, na vida inconsciente.


Disto podemos pensar que,não é por acompanharmos a mão de Picasso que teremos todos acesso à reserva natural original que faz nascer a arte, enquanto expressão da genialidade. O mistério, à despeito do que pensava Clouzot, está menos revelado do que se esperava. Aqui, mais uma vez cito Freud. O autor considera o exemplo de um escritor que, mesmo interrogado sobre sua arte e disposto à revelá-la, não consegue fazê-lo. Em suas palavras:


" Nosso interesse intensifica-se ainda mais pelo fato de que, ao ser interrogado, o escritor não nos oferece uma explicação, ou pelo menos nenhuma satisfatória; e de forma alguma ele é enfraquecido por sabermos que nem a mais clara compreensão interna dos determinantes de sua escolha de material e da natureza da arte da criação imaginativa em nada irá contribuir para nos tornar escritores criativos"


( Freud, 1908, em Escritores criativos e devaneios)


É fato: Não é porque testemunhamos o nascimento de vinte obras de arte que seremos capazes de entender as vinte razões diferentes que as originaram. Não, não é acompanhar o nascimento da obra que nos permite entendê-la, conhecê-la, tampouco nos oferece a capacidade também de realizá-la. Não tenhamos a pretensão de desvendar o mistério da genialidade, ela não nos deixa nenhuma pista, apesar de Clouzot.


A reserva natural, esta permanece perdida. Até a encontrarmos. Até aí, para a maioria de nós, o guidon e o celim serão sempre as partes de uma bicicleta. Contentemo-nos.

quarta-feira, setembro 16, 2009

Ciência e Poesia em tempos de guerra



O que será que toca um poeta e um cientista de tal maneira que os discursos de ambos acabem por se parecer, por realçar fatos que guardam certa semelhança entre si? Acertou quem apostou em “tragédia”. Não é preciso – há que se dizer – ser nem oficial de versos ou bastião do cientificismo para chegar à conclusão de que tragédias tornam os corações mais amolecidos, menos rígidos.
As primeira e segunda Guerras mundiais foram exemplos dessas tragédias que acabaram por unir corações e mentes em torno de uma só situação: a tragédia de vidas abreviadas por conta do egoísmo humano e do ufanismo quase imoral que dizia saber das coisas da vida e conhecer o bem de uma nação.
O poeta , da sua maneira, deixa suas angústias falarem e tomarem conta do papel; em forma de versos vão aparecendo palavras tristonhas que se ligam umas as outras para formar uma estrofe que acaba sempre muito mais bonita do que indicaria seu conteúdo:
Depois da guerra vão nascer lírios nas pedras, grandes lírios cor de sangue, belas rosas desmaiadas. Depois da guerra vai haver fertilidade, vai haver natalidade, vai haver felicidade [...] Depois da guerra não haverá mais tristeza: todo o mundo se abraçando num geral desarmamento”.
Vinícius de Moraes em “Para uma menina com uma flor (maio de 1944)
Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela. [...]. Quando o luto tiver terminado, verificar-se-á que o alto conceito que tínhamos das riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura que antes”.
Sigmund Freud, em “Sobre a Transitoriedade” (novembro de 1915)

É, há quem diga que Ciência e arte não se bicam; eu sou da opinião de que se complementam, se irmanam, se entendem. Caso não o fosse, Freud não falaria tão bem de flores efêmeras e Vinícius não entenderia de armistícios. O melhor que aprendemos nisso tudo é que o homem, seja seu ofício versar ou pesquisar, não perde a esperança, nem em tempos de guerra.



Ilustração: Guernica, Pablo Picasso

segunda-feira, setembro 07, 2009

Integrações



Depois de tudo te amarei

Como se fosse sempre antes

Como se de tanto esperar

Sem que te visses nem chegasses

Estivesses eternamente

Respirando perto de mim.

Perto de mim com teus hábitos,

Teu colorido e tua guitarra

Como estão juntos os países

Nas lições escolares

E duas comarcas se confundem

E há um rio perto de um rio

e crescem juntos dois vulcões.

Perto de ti é perto de mim

E longe de tudo é tua ausência

E é cor de argila a lua

Na noite do terremoto

Quando no terror da terra

juntam-se todas as raízes

e ouve-se soar o silêncio

com a música do espanto.

O medo é também um caminho.

E entre suas pedras pavorosas

Pode marchar com quatro pés

E quatro lábios, a ternura.

Porque sem sair do presente

Que é um anel delicado

Tocamos a areia de ontem

E no mar ensina o amor

Um arrebatamento repetido.



Pablo Neruda

sexta-feira, setembro 04, 2009

Perguntas que jogo para o Universo


Gostaria de fazer aqui algumas perguntas que sempre franziram meu cenho, martelaram meu juízo, criaram em minha mente pequeninas interrogações, queimaram meus neurônios, enfim...perguntas que eu não sei se serão respondidas, porém, uma vez feitas, estarão jogadas para o Universo, espero que este me dê alguma solução, resposta, luz ou o que seja.

Algumas podem parecer descabidas, outras, mais cabidas. No entanto, não deixam de ser pertinentes, ao menos para mim.


Dizem respeito, em sua maioria, à temas variados. Não tenho eu a pretensão aqui de esgotar uma questão, de fazer disso um problema de pesquisa e utilizar metodologias variadas de modo que obtenha uma resposta. Não, não , não, longe de mim. São perguntas variadas, descabidas ( a quem primeiro assim as entender) mas muito, muito intrigantes. Que seja o Universo, então, o que me dará as respostas que há tempos busco, sem sucesso.


1- Por que todo stand-up comediant é mau humorado?


Essa, sem dúvida, é a pergunta que mais assola meu cérebro questionador. Eu não consigo entender porquê diabos são esse tipo de comediantes tão mal humorados, de mal com a vida, mal amados e mal comidos. Como uma amante do gênero, comecei a perceber certas semelhanças no humor de cada comediante que se intitula como stand up comediant.

Vejam bem, se seguirmos as pistas e voltarmos no tempo, encontraremos Jerry Seinfeld, que, para mim, foi o precursor dessa onda do momento que vemos inundar nosso país.

É em todo canto: programas de talk-show, youtube, orkut, twitter... Esteja você aonde estiver, fatalmente irá encontrar um desses comediantes paulistas ( tou generalizando, calma, esse tipo já se espalhou Brasil à fora e à dentro), braquelos, que fazem questão de se intitular nerds, praticantes inveterados de esportes sedentários ( se é que existem) e que, sempre, mas sempre mesmo, estão reclamando da vida.

Se formos entender o que seria a comédia "em pé", podemos perceber que não raramente as temáticas são casos banais do cotidiano, questões irrelevantes que certamente não teriam a mínima graça para aquele comediante mais bonachão, mais risonho, alegre, leve. É isso: ao contrário dos tipos mais tradicionais, nós vemos praticamente todos os dias em todos os tipos de mídia brasileira esses tipinhos com sotaque paulista falarem mal de filas de banco, de assalto, de rua cheia, rua lotada, fila dupla, fila única, caixa eletrônico, pastel de padaria, leis anti-fumo, fumantes, lei seca, alcoolismo, programas de tevê, programas de rádio, programas de internet...

Enfim, a lista se alongaria deveras se eu tivesse a pretensão de citar todos os temas por estes comediantes abordados.

O que quero dizer é: será que para fazer stand up comedy você tem que ser um sujeito extremamente irritado, impaciente, de mal com a vida, de mal com o governo, prefeitura, vizinhança, esposa, gato, cachorro e papagaio? Será isso o objetivo do stand up comediant, perder toda a noção do significado da palavra "comediante"?

Por que diabos têm que reclamar de tudo: Será que só existe graça na reclamação? Sei lá, eu prefiro a época que comediante era um sujeito engraçado.



2- Por que ser nerd tá na moda?


Eu decididamente não entendo isso. Primeiro a mídia toda nos enche o saco para que sejamos mais jovens, mais magros, mais fortes, mais atléticos, mais bonitos, lipoaspirados, e, consequentemente mais desejáveis. Depois começa um certo movimento mundial de culto ao nerd, ou seja, ao exato oposto do cara que é mais forte, mais atlético, mais bonito, mais lipoaspirado? Por que agora está na moda ser loser se nossa sociedade sempre nos impôs os ideais de sucesso geralmente relacionados àquele mesmo tipinho que anda em academias?



3- Será paz e tranquilidade sinônimo de vagabundagem?


Não entendo. Sinceramente não entendo. Você tá lá, na sua vidinha 100%paz e amor, cultiva vegetais geneticamente inalterados em sua hortinha, surfa todos os dias , dá bom dia à arvores, girassóis e pardais mas, ainda assim, é tachado como sem noção, hippie, malandro ou vagabundo. Nossa sociedade e nós ( nós somos a sociedade) nos diz que um homem de sucesso é um homem realizado afetiva, financeira e profissionalmente (mais ou menos nessa ordem). Mas , se de repente alguém resolve fazer um caminho não tão tradicionalmente vinculado à esse "ideal de sucesso"...bem, aí é o caso daquele fulano mesmo, que nunca quis estudar e não deu valor a nada nessa vida...Nesse momento esquece-se se o fulano é feliz por não ter querido estudar para adequa-lo à classe dos vagabundos.

No fim, você tem que estudar, trabalhar muito, casar e procriar, porque assim, assim terá dinheiro, que te dará bens, que te dará felicidade, ou, pelo menos, te livrará de ser vagabundo, natureba, hippie, sem noção.


4- Se todo mundo diz que não quer se expor, porque tem orkut, twitter, msn, irc e o diabo à quatro?


Esse é certamente um enigma que assola a humanidade. Fulaninho vai e faz coisas que deveria fazer entre quatro paredes na areia das praias movimentadas e vai parar no orkut. Fulaninho e Fulaninha resolvem tomar todas e filmar suas peripércias e vai parar no youtube, Fulaninha é professora mas resolve mostrar que sabe dançar da maneira não tão infantil e vai parar no youtube. O que estas situações tem em comum? protagonistas que não, definitivamente não gostariam de se expor.

Eu não entendo porque você vai e sobe num palco com 450 celulares apontando diretamente para você (ou mais precisamente para a parte mais inferior localizada ao sul do osso do mucumbú) e se sente exposta, denegrida, enjuriada porque, no outro dia isso foi parar na rede. Não seria mais honesto dizer: é isso aí, eu faço loucuras na frente de todo mundo, eu danço obscenamente na frente de todo mundo, eu faço de tudo e aind por cima gravo, filmo e fotografo porque o que eu quero é aparecer.

Seria mais honesto.



5 - Por que as pessoas fazem perguntas que não querem ouvir ser respondidas?Ou, se querem ,já sabem a resposta que vão escutar?


Essa é a clássica situação entre namorados: "Amor, vocÊ me ama?" "Você vai me trair um dia?", "Você acha a vizinha bonita?". Geralmente essas questões saem de bocas femininas, mas também não estou dizendo que nenhum homem jamais tenha inquirido sua amada com tais questões...Será que você espera ouvir um "Ah, amor,vou sim, lógico te trair um dia, mas não será hoje né, benhê?" ou "Não amor, não amo, mas se você é capaz de amar por nós dois, que mal faz?".

Ninguém jamais chegará a esse nível de sinceridade o que invalida terminantemente a importância de tais perguntas. Ninguém nunca vai te dizer que vai te trair, que não te ama, que não pensa na vizinha. Isso é fato, você sabe que vai acontecer - e reze para não ter acontecido ainda- e não cabe a você fazer perguntas tão difíceis a seu par. Já diria uma letra de pagode "deixa acontecer naturalmente", não faz pergunta que piora.


6- Quem são essas pessoas que viram fãs súbitos de celebridades súbitas?


Eu gostaria muito de saber o que fazem, o que comem, quem são os tais fãs do Max e da Francine do BBB, os fãs da Mirela da Fazenda, o pessoal que torce para o novo ganhador de No Limite, que escreve faixas para a nova banda de pagode do momento. Sério mesmo, eu acho que essas pessoas são encontradas num depositário de gente carente, daquelas que vive a vida por um ídolo, que faria de tudo para ver aquele lugarzinho sombrio e inabitado de seu coração povoado pelo primeiro que aparecer na televisão, que rebolar um pouquinho, que for capaz de ganhar 1 milhão.

Sim , eu me dirijo à você agora, fã da Siri, do Diego Alemão, o mesmo que vai comprar o livro novo da Fani e se interessar pela sua biografia. Eu me pergunto que nível de carência é este que os fazem disponibilizar parte de seu tempo (e é muito tempo) na adoração de pessoas que vocês sabem que não vão durar, essas pessoas logo serão substituídas por outras. Mas, porque, por que você insiste em adorá-los, o que falta em sua vida?



Bem, com certeza essas questões agora foram liberadas da minha mente e eu espero que o Universo faça bom proveito delas. Se alguém quiser me responder, sinto-me, antecipadamente, grata pela atenção.

terça-feira, agosto 25, 2009

O Flamengo , a aposta e o bilhete





Aristides não era o que poderíamos chamar de um homem bem apessoado; quem o conhecia sabe que ele não tinha lá qualquer coisa que indicasse elegância ou a mais tênue camada do tal “verniz social”. Aristides era rude até na aparência, no alto da cabeça que vinha direita mas no cume se estreitava, habitavam cabelos crespos e já embranquecidos por ofício do tempo e dos problemas.




Tinha um nariz chato, próprio da sua cor. Era mulato o Aristides, e, como todos os mulatos, parecia-se com um. Não cheirava mal, também não cheirava bem. Possuía um cheiro característico de loções pós-barba compradas no mercado mais conveniente da vizinhança, não fazia questão de roupa bem passada e há quem diga que possuía limitado número de camisas devido à freqüência com a qual as repetia. Aristides não era , definitivamente, um modelo de beleza e charme, mas tinha seus encantos justamente em sua aspereza, em sua rudeza.




Se era simples na aparência, nada diverso poderia ser dito de seus hábitos. Costumava – quando estava de folga – ir a um bar localizado em seu bairro, tomar algumas doses de aguardente, assistir ao jogo de futebol que estivesse passando e voltar para sua casa, onde morava sozinho, o que bastante o incomodava, tinha medo da solidão.




Aristides trabalhava como pedreiro, sua função em uma obra era seguir à risca o que diziam os homens que estudaram mais que ele; ouvia atentamente, derrubava parede, construía parede, rebocava a parede, tudo de acordo com o gosto e a vontade de quem o ordenasse. Não costumava falar muito, algo que, em sua profissão, poderia ser até de grande serventia, dizia que um bom pedreiro era aquele que tinha bons ouvidos e mãos fortes para agüentar a labuta diária.




O nosso homem, como já dá para perceber, era o típico brasileiro mediano, possuía pouca instrução e trazia na alma uma espécie de apatia que transbordava pelos seus olhos e por toda sua face, que acompanhava a postura sempre submissa, derrengada. Aristides tinha os ombros largos e curvados para baixo. Tinha também orelhas de abano, fato que lhe rendera muitos traumas na infância durante os poucos anos em que freqüentou a escola.




Se tinha uma diversão, essa era às quartas-feiras, quando ia ao tal bar da esquina, beber e ver futebol, sozinho: Aristides não tinha muitos amigos e fazia questão de sentar numa mesa afastada das outras e da qual via os jogos de bola, munido sempre de uma cadernetinha vagabunda na qual anotava os resultados dos jogos de todos os times brasileiros que jogavam às quartas-feiras desde o ano de 1995.


Aristides era organizado, a mesma caderneta, quatorze anos depois: rascunhava, desenhava linhas pretas nas folhas brancas para criar tabelas nas quais constavam dia, mês, ano e gols marcados por todos os times brasileiros os quais via jogar pela televisão. A caderneta era a única alegria na vida de Aristides, pode-se dizer. Era como se naquele espaço, dentro das linhas daquelas tabelas ele pudesse controlar o mundo a seu redor, buscar explicações para o sucesso ou a derrota. Aristides com sua caderneta se sentia importante, pois sonhava um dia debater com os narradores dos jogos a queda e ascensão dos times ao longo dos quatorze anos.


Se não tinha muita imaginação, utilizou o pouco que tinha ao criar, em sua mente, um dia em que seria comentarista de futebol e falaria, sem papas na língua, sobre os técnicos e os jogadores de cada time brasileiro, sempre embasado nos dados estatísticos anotados detalhadamente em sua caderneta. Mais além seria pedir demais à escassa imaginação do pedreiro, achava feio sonhar e, mais feio ainda, acreditar no próprio sonho: não raramente caía com a barriga no chão toda vez que se prestava a devanear e a sonhar com o ofício de comentarista; logo que sua cabeça subia às alturas e a imaginação parecia pegar no tranco, Aristides atrapalhava fazendo-a estancar, prontamente pensava: - Ora homem, isto nunca acontecerá, volta pro teu mundo que teu sonho acaba é nesta mesa de bar.


– Moço, me dá mais uma dessa branquinha.

E lá se iam os primeiros quarenta e cinco minutos e com ele a página em que Aristides copiava as impressões gerais dos times adversários. Sempre que se pegava escrever, pensava em si mesmo engravatado, em um paletó de brim escuro, comentando os jogos com preparo e astúcia.
Foi numa dessas quartas-feiras que Aristides ouviu um bafafá nas mesas ao lado, logo se sentou, tirou do bolso a carteira surrada e o chaveiro enferrujado em que pendurava a única chave de sua casa. Mal se sentou e foi logo colocar as suas orelhas de abano à serviço da informação:



- Vai ser empate, rapaz!E digo mais, vai ser 2 a 2 porque o time é novo e não pegou confiança no técnico ainda, sem pensar que em casa, a coisa muda...


A discussão começava na mesa ao lado da de Aristides e era protagonizada por quatro homens que não conseguiam se entender toda vez que o assunto era futebol. Aristides escutava com cuidado tudo que diziam e comparava as opiniões alheias com as suas, quando então ouviu a aposta:


- Certo, então eu aposto o meu bilhete da mega-sena, esse aqui ó, do meu bolso. E olha que eu tenho sorte, já ganhei dois liquidificadores e uma moto numa festa de formatura. Minha mulher sempre que sonha com água me diz os números que ficaram na sua cabeça e eu faço a minha fezinha. Aposto esse bilhete, esse mesmo que esse jogo vai ser 2 a 2, quem arrisca o resultado? Quem acertar o que der ganha o meu bilhete.


O que se seguiu foi um bate-boca desordenado, um murmurinho incontrolável que agitava e animava a noite. Os amigos do tal apostador não sabiam se decidir, e também não achavam que o tal bilhete valesse alguma coisa. Foi tanto que um deles disse:


– Ah, mas veja, eu prefiro apostar coisas reais, mesmo, de carne e osso, ou melhor, de álcool e cana. Pra mim tava de bom tamanho você me pagar 4 doses da branquinha e fim de papo. Pra quê eu quero este bilhete, vou saber lá se tua mulher sonhou direito, se te deu os números certos? Eu gosto de aposta mais simples e que a gente veja logo o prêmio!Se der 2 a 2 eu te dou este boné, mas se for 1 a 0 você me paga uma caninha e pode ficar com teu bilhete que não quero isso.


Aristides continuava atento à discussão dos dois amigos que rapidamente tomava o bar inteiro, posto que até o garçon viera palpitar, aconselhar que o outro não aceitasse o bilhete nem nada disso. Subitamente espalhou-se o clima de polêmica o qual foi alimentado pela valentia do apostador:


– Quero ver quem é o homem nesse bar para apostar comigo este bilhete, o bilhete que foi cantado pela minha santa mulher , o bilhete premiado da mega-sena. Eu quero ver é mesmo se tem homem nessa espelunca,que queira apostar comigo, porque eu tenho coragem de apostar isso aqui , mesmo sabendo que está premiado.”


Ao ouvir que o apostador não avistara nenhum homem no bar, Aristides logo pensou em se apresentar, iria lá, chegaria à mesa do valente com sua cadernetinha em mãos e explicaria para ele, de acordo com o retrospecto do time do Flamengo quando jogava em casa, que o jogo não poderia ser empate, ele, Aristides, que não era flamenguista, acreditava que o jogo seria 3 a 0 para o Flamengo.

Pensou em peitar o corajoso e dizer: “Ei, espere aí, eu sou homem e lhe digo que o Flamengo não empata em casa faz tempo, os jogadores demonstram empolgação e entusiasmo, tudo isso renovado pela confiança que já depositam no novo técnico, isso só pode dar em uma vitória daquelas!”


Pensou, mas não disse. E lá ficou calado. O intervalo passou, o jogo continuou e , para a felicidade dos amigos incrédulos, o Flamengo fizera o primeiro gol. Seria o prenúncio da convincente vitória.


O tempo passava, e com ele o time do Flamengo parecia triturar o adversário, vários gols perdidos por falta de uma pontaria precisa ou por astúcia maior do goleiro. Foi contando com um momento de vacilo do zagueiro que o Flamengo marcou mais uma vez.


– Viu só? Agora é a hora da virada, o Fluminense jamais vai aceitar isso, eles vão é correr atrás do prejuízo, vai ser agora!


Se as palavras do dono do bilhete servissem de algo, certamente serviriam de estímulo para os jogadores do Fluminense cujas pernas ou não agüentavam percorrer o campo inteiro ou sofriam com as câimbras causadas por exaustão. Porém, de nada serviria o estímulo, a confiança do dono do bilhete: O time do Fluminense se entregava lentamente, reconhecendo a superioridade do adversário ou contribuindo diretamente para a ampliação do placar.
O terceiro gol veio justo num momento de descuido do zagueiro que, achando que o escanteio cobrado tinha como endereço certo a meta do goleiro, não se fez de rogado e adiantou a cabeçada, contribuindo tragicamente para o terceiro gol do time do Flamengo.


O murmurinho foi geral. Naquele bar não havia homem, não havia quem quisesse entrar na aposta e, por isso, ficou o dono do bilhete a sorrir e a desmerecer os seus amigos.


"- Seus burros, esse bilhete poderia ser de alguém aqui, e agora ele volta pro meu bolso! Haha, quando eu ficar rico, não piso mais aqui , ou melhor, se pisar, eu vou é descer do meu carrão e gritar: Nesse bar não tem homem não!”.



A brabeza logo se desfez e os amigos passaram a brincar juntos e num espaço de cinco minutos já se esqueceram do Flamengo, da aposta e do bilhete. Esqueceram até que não eram homens, de acordo com a lógica do dono do bilhete. Beberam até não se agüentarem nas próprias pernas.


Aristides se levantou, alcançou a carteira de couro preto e tirou os quatro reais para pagar as quatro caninhas que tomara. Foi ao balcão, deu um último gole no copinho que não tinha secado e seguiu caminhando, cambaleando , pensando no que poderia ter feito.


Devia ter chegado lá, mostrado sua caderneta e levado o bilhete do valentão. Ainda diria a ele que era muito homem, mais do que um homem, um comentarista nato, um cara responsável pelas estatíticas, desses que tem na tevê.


Pensou, mas não disse, não apostou e não levou o bilhete. Abriu a porta de casa, deixou o corpo cair no sofá estragado e por falta de força nas pernas já cansadas e embriagadas, dormiu por lá mesmo esquecendo, ele também, do Flamengo, da aposta e do bilhete.


Passaram-se umas muitas quartas-feiras até Aristides voltar ao bar. Tinha se resfriado e pensara ser o sereno da noite o responsável por sua moléstia, decidira então, numa tacada só, evitar o bar e com isto evitar as caninhas; seria melhor para ele, arrumaria uma mulher agora, porque mulher nenhuma gostava de boca com bafo de cana, pensava.
Ao tempo que pensava, imaginava que gostava do bar, que se não bebesse tanto poderia ir tranquilamente. Era sua única diversão, não iria abandoná-la por mulher alguma. “ Ah, as mulheres que apareçam nos outros dias da semana, a quarta-feira é minha”, pensou revoltado consigo mesmo o Aristides.


Foi logo ao entrar no bar que percebeu mais um murmurinho. Olhou para o relógio, olhou para a tevê e o jogo ainda não tinha começado, não entendera o barulho. Foi quando sua curiosidade, mesmo tímida, resolveu abrir a boca:



- O que tá acontecendo? Nem começou ainda. – Perguntou ao garçon.


- O que aconteceu? Meu amigo, o que aconteceu é que o Alves ganhou na mega-sena, com aquele mesmo bilhete que ele tava outro dia aqui, não sei se você viu, mas o Alves apostou o bilhete premiado, como ele mesmo dizia. Acontece , meu amigo, que o homem agora é milionário e com certeza vai chegar aqui com o carrão e cuspir na nossa cara, e ainda mais, dizer que a gente não é homem nem nada. Mas tem uma sorte aquele Alves!
Aristides ficou uns segundos sem acreditar, balançava a cabeça para ver se as idéias se sacudiam um pouco e formavam de volta o seu juízo. Imaginou como tudo poderia ter sido diferente, imaginou ele mesmo descendo do carrão, dando ordens aos arquitetos na construção e cuspindo na cara do Alves e de todo o mundo as palavras “ Eu sou homem, tá vendo? E ainda sou um homem rico!”.


O pedreiro sorriu levemente com o que imaginara, viu-se rico, de carrão e esnobando a turma do
Alves. O sorriso que brotou em seus lábios por entre seus dentes cariados foi verdadeiro, mas o que tinha de verdadeiro tinha também de efêmero: A imaginação era mesmo frágil e ele não era homem, nem muito menos rico. Ficou ali, a anotar os resultados de mais um jogo, na mesa de sempre, bebendo as quatro caninhas.
No caminho para casa pensou no Alves, no carro do Alves e tomou algumas resoluções em sua vida, as quais listou em casa, na mesma caderneta:


Número 1: Começar a apostar.
Número 2: Arranjar uma mulher que sonhe com água.