sábado, setembro 19, 2009

Guidon, Celim ou Cabeça de touro?: O Mistério de Picasso




Pablo Picasso costumava dizer que , se por acaso, estivesse a caminhar por uma rua e se deparasse com um velho guidon de bicicleta e um celim, estaria diante da cabeça de um touro. Segundo ele, para o "homem comum", o guidon e o celim seriam e morriam sendo, apenas, o guidon e o celim.


Diante disto, a gente pode se perguntar, o que faz de Picasso um homem incomum? Em "O Mistério de Picasso" (França, 1955). Clouzot, o diretor, convence o amigo e artista espanhol a realizar um filme mostrando o que seria o seu "mistério". A saber, podemos pensar aqui: O mistério de sua arte. Convencido de que este seria um bom trabalho e um meio de se tornar cada vez mais popular - ele adorava mostrar-se grande, tal como realmente o foi - Picasso resolve então criar 20 trabalhos inéditos ali, em frente à câmera de Clouzot.


O resultado disto são pinturas e desenhos impressionantes que carregam a marca da genialidade de Picasso. O espectador, guiado pela mão e pelo pincel de Picasso, que mal aparece em toda a película, pensa estar a todo tempo invadindo um pedaço de papel, uma tela branca. Ele vai construindo e ao mesmo tempo cumprindo o papel de cúmplice na criação da arte de Picasso. Somos - e agora me coloco eu também como espectadora - raptados da nossa comum realidade pelas pinceladas rápidas e cheias de sentimento e levados para atmosferas diferentes daquela na qual estamos, de fato, inseridos.


Conhecemos cafés, entramos em arena de touradas, visitamos corpos perfeitos , tudo isto guiado pela mão do artista genial. Durante todo o filme temos a sensação de que estamos dentro da folha de papel, dentro da tela e somos , também com elas, pintados, oferecidos a uma outra realidade, uma realidade cheia de cor, de brilho, espânica por natureza e por direito.


O que chama atenção no filme de Clouzot, além da arte de Picasso, é a pretensão do diretor: O argumento para realização do filme é, logo de início, revelado ao espectador: era intenção de Clouzot demonstrar como a genialidade assalta o artista que, compelido pelas suas maiores e mais vigorosas paixões, empresta à obra de arte todo seu ser em busca de algo mais, alívio das tensões, talvez.


Clouzot abre o filme com uma voz narrando este objetivo maior que seria, demonstrar, através do movimento das mãos de Picasso , como a obra de arte é sentida e, posteriormente, concebida até se transformar na tela, no desenho acabados. Esta demonstração, contudo, de acordo com a opinião de Clouzot, só é possível nas artes plásticas, posto que não é possível acompanhar o desenrolar da genialidade na execução das obras primas da Músicas, como, por exemplo , nas sinfonias de Mozart, e tampouco na Literatura.


Por nos entregarmos à mão de Picasso, temos a impressão de que somos também pintados. No entanto, o argumento de Clouzot é discutível: Será que nos 75 minutos de filme estamos todos nós, espectadores, testemunhando o nascimento da genialidade? Não sei, acredito que estamos diante do nascimento das obras, estas que, após a realização do filme foram destruídas.


Não se pode dizer, porque vemos uma obra de arte nascer, que estamos perto de desvendar o mistério de Picasso, tampouco, o mistério de toda genialidade. Não seriam as artes plásticas, portanto, privilegiadas em relação à Literatura ou à Música, dito de outro modo: Será que acompanhar os movimentos passionais do pincel de Picasso nos faz realmente estar testemunhando e mais, desvendando o mistério da genialidade?


De acordo com Freud, todo artista tem em si o privilégio de ter livre acesso ao que chama de "reserva natural original", na qual todo homem guarda suas paixões e impulsos da vida infantil. Seria, pois , o artista aquele que tem um espécie de "passe livre" para adentrar nesta reserva. Reserva que, no homem comum, permanece inóspita, inabitada, quase perdida, porém existente - alhures, na vida inconsciente.


Disto podemos pensar que,não é por acompanharmos a mão de Picasso que teremos todos acesso à reserva natural original que faz nascer a arte, enquanto expressão da genialidade. O mistério, à despeito do que pensava Clouzot, está menos revelado do que se esperava. Aqui, mais uma vez cito Freud. O autor considera o exemplo de um escritor que, mesmo interrogado sobre sua arte e disposto à revelá-la, não consegue fazê-lo. Em suas palavras:


" Nosso interesse intensifica-se ainda mais pelo fato de que, ao ser interrogado, o escritor não nos oferece uma explicação, ou pelo menos nenhuma satisfatória; e de forma alguma ele é enfraquecido por sabermos que nem a mais clara compreensão interna dos determinantes de sua escolha de material e da natureza da arte da criação imaginativa em nada irá contribuir para nos tornar escritores criativos"


( Freud, 1908, em Escritores criativos e devaneios)


É fato: Não é porque testemunhamos o nascimento de vinte obras de arte que seremos capazes de entender as vinte razões diferentes que as originaram. Não, não é acompanhar o nascimento da obra que nos permite entendê-la, conhecê-la, tampouco nos oferece a capacidade também de realizá-la. Não tenhamos a pretensão de desvendar o mistério da genialidade, ela não nos deixa nenhuma pista, apesar de Clouzot.


A reserva natural, esta permanece perdida. Até a encontrarmos. Até aí, para a maioria de nós, o guidon e o celim serão sempre as partes de uma bicicleta. Contentemo-nos.

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