sábado, março 19, 2011

Sob a nuvem da fumaça com Clarices Lispector



A princípio achei que o documentário De corpo inteiro (2009, direção de Nicole Algranti) seria apenas uma tentativa de fazer a ficção tomar conta da realidade ao adentrar no universo íntimo de uma das mulheres mais representativas do nosso país. Ledo engano: enganei-me redondamente com De corpo inteiro, pois achei que o que se seguiria era a interpretação de atrizes que, por sua semelhança física e por seu talento artístico, emprestariam à personagem célebre o mistério de Clarice, envolta sempre, nas nuvens de fumaça e - penso eu - de elocubrações.


Em vez disto, deparei-me com o que a própria Clarice entendia por ela mesma: em seu universo não habitava apenas uma, mulher, do mundo e de todos, com seu sotaque único constituído tal e qual uma colcha de retalhos, mezzo ucraniano, mezzo recifense. Clarices me foram apresentadas nas figuras de Louise Cardoso, Letícia Spiller, Aracy Balabanian ( a Clarice que estrela o documentário-ficção e chama atenção pela impressionante semelhança física com a escritora), Beth Goulart, entre outras que interpretaram a escritora em diversas fases da sua vida, mas sempre, no difícil papel de entrevistar e de se colocar tão verdadeiramente em cada pergunta que dirigia a seus interlocutores.


Vimos passear diante de nossos olhos uma Clarice voluptuosa tal como a interpretada por Letícia Spiller, em cenário baiano que, de saída, já convida a qualquer coisa de sensualidade, ao entrevistar Carybé. Antes, porém, conhecemos uma Clarice quase brejeira, fanfarrona pela interpretação de Louise Cardoso, que, se não reproduzia Clarice guiada pela imitação dos gestos e expressão, emprestava-lhe outra faceta, alegre em demasia, quase afetada, a faceta quase caipira , na tentativa de fazer-lhe um sotaque que a evocasse. Assim, conhecemos Clarices tantas, Clarices-homem, Clarice em todas e em todos aqueles que bem poderiam ser homens também. Arnaldo Block, ao entrevistar Ferreira Goulart, por exemplo, dá-nos uma amostra do que é Clarice e sua postura diante do entrevistado, uma postura que se esconde na aparente calmaria, quando, na verdade, tudo que arde dentro é revolução.


O documentário realizado por Nicole, que era sobrinha-neta de Clarice, nos oferece a oportunidade de entender o que Clarice pensava, sobretudo, do ato de entrevistar. Não era fácil, já destacamos - vide, e , para quem não viu ainda, a entrevista feita por Clarice com Carlinhos Oliveira, ela, gripada, ele, contestando tudo ou quase tudo: o mundo, a vida e a Academia Brasileira de Letras.
De corpo inteiro foi baseado no livro homônimo da escritora ucraniana e agora virou filme nos dando a chance de conhecer para além da Clarice que escreve, mas a Clarice que entrevista, que respeita a diferença de opinião (tal como nos faz lembrar a entrevista de Carlinhos Oliveira), que reverencia a quem admira ( trecho em que Letícia Spiller, vivendo a escritora, entrevista Jorge Amado), que enche suas perguntas das suas próprias inquietações ( vide o trecho em que é entrevistada a artista Djanira).


Clarice é dúvida. Nada mais natural, quase automático, para aquele que é feito de dúvida do que questionar, questionar sobre os mistérios da vida, sobre os mistérios da morte, sobre o que é, enfim, o amor. Sobre o amor, a escritora em todas as suas mais variadas faces, sempre o lembra, sempre o interroga, e, uma vez não chegando a conclusão alguma, pergunta, em quase todas as suas entrevistas as quais foram documentadas no filme, ao modo de uma criança curiosa: O que é o amor.


Quanto mais se perguntava , mais ainda indagaria, mais ainda questionaria a quem se deixou entrevistar: Na entrevista com Clarice, Nelson Rodrigues dá sua opinião: Amor é eterno, senão é eterno , é porque não era amor. Já Hélio Pelegrini, psicanalista e amigo do controvertido autor pernambucano, diz que o amor é o afeto pura e simplesmente. Djanira, a artista que alça o trabalho acima de qualquer outra atividade humana, confessa a Clarice que, sim, amor é tudo aquilo que se pode dar.


As Clarices mudavam, rostos se alteravam, vozes, umas com sotaque, outras sem, umas semelhantes outras distoantes , Clarice continuava a mesma. Ao passo que o documentário vai gastando seus 66 minutos de duração, não percebemos outra atmosfera que não a de Clarice, esta sempre a mesma, inalterada , mesmo que colorida por outros olhos nem sempre esverdeados, por outras bocas. O cigarro indefectível , a aura de mistério e esse não sei o quê de angústia prevalece em quase todas as Clarices do filme, seja ela brejeira, voluptuosa, gripada, quase irritada...

As Clarices eram únicas e várias e isto era a opinião da própria sobre si mesmo.


Entendido isto, pude me desapegar da minha necessidade quase metodológica-científica de verossimilhança e de fidedignidade e me acostumar à idéia que a intenção da diretora fugia ao que eu entendi primeiramente: a intenção era mostrar nas várias a única.


Além disto, cabe ressaltar as entrevistas com outras personalidades das mais variadas áreas: Vimos de Ferreira Gullar à Elke Maravilha, passando pela escritora Nélida Piñon, pelo arquiteto Oscar Niemayer uma maneira de deixar mais uma vez uma porta aberta para se conhecer Clarice, agora na voz e no corpo de jornalistas. As perguntas, muitas vezes, pareciam sair da boca de Clarice : O que é o amor, Por que você escreve? Por que você pinta?


Os grandes mistérios da vida e da escritora mais uma vez transformados em enigmas e oferecidos a figuras como as citadas. Chamo atenção para a entrevista com Elke Maravilha que, citando de Sófocles a Nietzsche, nos faz lembrar o que é a vida, o que é o ser humano e até nos faz lembrar Brigitte Bardot em sua defesa dos animais.

De corpo inteiro ensina. Mostra-nos o que é a vida, o que é a morte, a poesia, a escrita e a arte, ao menos na visão dos que estavam presentes nos momentos em que se podia refletir sobre todas essas coisas, momentos estes sempre envoltos pelo cigarro e pelo mistério de Clarice e das Clarices.