terça-feira, maio 04, 2010

A lealdade de Hachiko



Quando me deparei com o filme "Sempre ao seu lado" (Hachiko, 2009), protagonizado por Richard Gere e um cão akita, torci o nariz, não queria ver mais um filme de cachorros falantes e de aventuras extraordinárias à la K-9, um cão da pesada. Decididamente, não iria assistir. Até que tive acesso a uma crítica da revista Bravo! a qual elogiava o tal "filme de cachorro", justamente por tirar-lhe este aposto, Hachiko não era mais uma história de cachorro: Hachiko não fala, não saltita, não persegue bandidos, não trabalha para o FBI e não faz grandes truques a mando de seu dedicado dono.


Hachiko é a história de um cão que existiu, de fato, nos anos 20, no Japão. Um Akita que não costumava obedecer ao simples comando de "vá buscar a bolinha" , uma vez que só fazia o que realmente lhe agradava, e por carinho a alguém. A história, na verdade, mostra com sensibilidade o que é a lealdade, algo tão em desuso atualmente.


Adaptada em uma pequena cidade americana, a história de Hachiko centraliza-se nos "sentimentos" do próprio cão, fazendo de Richard Gere um mero coadjuvante. Trata-se da história de um cão que, por costume, todos os dias acompanhava seu dono à estação de trem, via-o ir ao trabalho e, pontualmente, voltava ao lugar no fim do dia para esperar seu dono retornar. Acontece que em um trágico dia, a personagem de Richard Gere não retorna: morre repentinamente no local de trabalho e assim Hachiko nunca vê seu dono regressar.


O tempo passa, Hachiko, no entanto, não esquece do afeto que seu dono lhe dirigiu por dois anos, e, durante toda a sua vida retorna todos os dias à mesma estação, à espera do dono que teimava em não voltar. Isso aconteceu por nove anos, até a morte do cão, em 1934.


Mais do que um "filme de cachorro", uma espécie de Rintintim ou Lessie, Hachiko é uma história que fala de lealdade e de como não devemos esquecer aqueles que amamos. Nos dias de hoje, somente a fidelidade canina é capaz de atos deste nível. Feito com extrema sensibilidade e sutileza, o filme é sim, triste, horrível, mas, por isso mesmo, percebemos sua beleza, em sua singeleza, numa história sem pretensão que se torna uma bela forma de falar de lealdade, companheirismo, apesar da transitoriedade da vida.


Nos anos que seguem a morte do professor, dono de Hachiko, tudo muda, sua viúva desfaz-se da bela casa em que viviam, Hachiko vai morar com uma nova família, com a filha de seu dono verdadeiro e convive com uma criança. Em uma rápida, mas primorosa cena em que não existem falas nem personagens humanos, acompanhamos o passar das estações, a partir da desfolhagem e folhagem das árvores que abrigam Hachiko: primoroso, porque singelo. Podemos notar que este é um recurso muito utilizado em cinema para demonstrar a passagem do tempo: a mudança da natureza, mas em Hachiko isto ganha um tom poético somente possível graças à sensibilidade de um diretor perspicaz e sutil.


Apesar de Hachiko, o tempo passa, as pessoas mudam, os arredores da estação transitam apressados, porém alguns são os mesmos de sempre, cumprindo a rotina diária: o dono do carrinho de cachorro-quente, a senhora que pega seu trem todos os dias, o homem encarregado da administração da estação, todos continuam seu ritmo de vida , o trem sempre vai e vem, e , à sua espera está Hachiko, esperançoso de receber seu dono, sempre, todos os dias, com o que poderíamos dizer "fé inabalável" no retorno, se não estivéssemos falando de um cachorro.


Cachorro ou não, o que estamos tratando aqui é de transitoriedade, também. Se percebemos que o tempo não pára, os trens não abandonam as estações, o sol não deixa de nascer e morrer todos os dias, acreditamos que tudo, neste mundo que insiste em girar, passa, à exceção de uma coisa: o afeto.


O afeto não morrem como as folhas das laranjeiras, como as flores das cerejeiras tão vistosas em certa época do ano no Japão. O afeto permanece em nós, imemoriável, sujeito à nuvens e trovoadas mas , sobretudo, não sujeito ao recalcamento. Não esquecemos e o tempo não amarela os sentimentos e afeto que temos por algo, alguém.


Assim, uma casa vive em nós, deixa de reduzir-se a seus limites geométricos e geográficos e passa a ser reconstruida com o cimento da nostalgia, mobiliado com os móveis os quais nossa memória projeta e inventa. Hachiko envelhece , o tempo inevitavelmente passa, mas até quando viveu guardou em algo que poderíamos chamar de "lembrança", os momentos de afeto vividos e compartilhados com seu dono, isso, sim, não é passível ao emboloramento, não obedece às leis que transforma tudo que é vivo em pó e em ruínas.


A inevitável verdade não é negada: seremos nós, um dia, reduzidos à pó, seremos história tal como o sol que nasceu ontem e já não se encontra radiante no alto, posto que em seu lugar existe outro. A lua cheia de ontem pode até retornar, mas não será mais a mesma lua, e nós, crescemos e vivemos esse tempo que passa, passamos tal como os ponteiros de um relógio, mas algo, algo fica.


Hachiko nunca cansou de esperar seu dono. A lealdade é o que lhe fez carinho e o sustentou, todos os dias, no mesmo lugar. Atualmente Hachiko está representado por uma estátua de bronze colocada no lugar no qual costumava deitar-se à espera de seu dono. O filme é belo, simples e, como a maioria dos filmes belos e simples, tem um quê de libertador. Vale a pena.