sexta-feira, dezembro 23, 2011

Poeminha quase casado*





Porque você é um menino com uma flor, e tem uma voz tão doce e bela, eu lhe prometo amor mais que eterno, pois é amor que não se contenta com a eternidade de um mundo só, pois quer outras para ser bem mais eterna.

Porque você é um menino com uma flor, e tem esta voz tão doce que dá certinho com estes olhos teus que são tão profundos, é que eu te prometo o amor mais belo, mais de uma beleza tão vistosa que a própria beleza se esconde de tão feia que é, perto da beleza deste amor que tenho.
Porque você é um menino com uma flor, que tem uns cabelos brilhosos e usa um shampoo que eu escolhi e que cheira tão bem como você.


Porque você é um menino com uma flor, porque constrói carro de lata e faz dela nascer arte, e se admira com a própria criação.

Porque você é um menino com uma flor, que sabe cantar bossa nova até com os olhos, os que já disse serem tão profundos, porque choram bem raramente, mas quando choram é um choro assim muito sincero que eu quero logo enxugar.
Porque você é um menino com uma flor e diz coisas tão sérias, e sabe coisas tão sérias, é que bendigo todo este amor.
Porque você faz o bem mesmo que não goste de ser chamado de bom, porque se importa com os outros, porque me escuta e me diz somente para me acalmar.
Porque você é um menino com uma flor e transborda lucidez e serenidade, porque você preza o equilíbrio e porque é libriano.
Porque você é um menino com uma flor e tudo que faz é perfeito: com arte, música e amor.
Porque você é um menino com uma flor e me ama como ninguém jamais me amou.
Porque você é um menino com uma flor, e me prometeu um livro, uma máquina de fazer poesia, e me escreveu " a face pintada" é que você é um menino com uma flor.
Porque você é um gênio dentro de um menino, mas com uma flor, é que adoro sempre este amor e por mais que muitas vezes não saiba compreender o tamanho deste amor, eu nunca o digo menor, porque isso seria mentira.
Porque você é um menino com uma flor eu me torno, a cada dia, uma menina, com outra flor.
E por estas e outras eu te amo calma, linda e profundamente.


















*Poema descaradamente inspirado em Vinícius de Moraes (Para uma menina com uma flor)

sexta-feira, novembro 18, 2011

O que aprendi com Lévi Strauss sobre o meu país




Foi nos idos de 2009 que entrei em contato com Lévi Strauss. Acidentalmente, devo dizer. Foi quando ministrava uma disciplina chamada "Antropologia empresarial". Parecia que havia um desinteresse geral pela temática o que ocasiou o tal acidente: Lévi Strauss surgiu para mim. Como o nome já diz, seria uma disciplina em que haveria a aplicação da Antropologia, campo de estudos no qual o pensador de origem belga se destacou, à Administração.




Depois de um certo tempo, tive outro encontro intelectual com o autor de origem belga. Foi assim então que, apesar de não ter lido seu famosíssimo Tristes Tópicos, resolvi ler Longe do Brasil (UNESP, 2011). Trata-se de uma entrevista concedida à Véronique Moraigne em 2005 e publicada no jornal francês Le Monde.




Neste pequeno livro que se lê literalmente em duas horas, encontra-se um prefácio tão interessante quanto o seu conteúdo restante. Escrito pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, o prefácio a que me refiro anuncia o que vai se constatar na leitura da entrevista: Um Lévi Strauss lúcido, apesar de seus quase 100 anos, relatando como sua experiência no interior do Brasil foi fundamental para sua carreira de teórico. Digo mais, Lévi Strauss, com a lucidez e a coragem que só a idade e a proximidade da morte permitem, consegue definir sua experiência brasileira como algo fundamental em sua vida, em geral.

Sabe-se que o pensador em questão esteve no Brasil e aqui embrenhou-se pelas bandas do interior do país buscando conhecer as comunidades e os hábitos dos brasileiros situados nos mais longínquos cantos desse país de dimensões continentais. Vale dizer que na década de 30 a condição de precariedade em que se encontrava o país não se compara ao que vemos atualmente.

Lévi Strauss, foi, portanto, um desbravador, alguém que, não sabendo bem o que de fato fazer, foi capturado pelos povos que visava estudar. Por isso fez anotações, publicações, fotografias no intento de conhecer melhor todas as peculiaridades que esses povos apresentavam aos seus olhos europeus.

Lévi Strauss, em sua experiência brasileira, não gostava muito de fotografias, acredita que estas tinham alguma importância, mas, do mesmo modo, poderiam distraí-lo e afastá-lo do seu real objetivo que seria entrar em contato com o que se apresenta diante da lente da objetiva. Ao observarmos o relato desta experiência que marcou a juventude do teórico e o alçou a uma popularidade sem precedentes na França e resultou na inauguração do que hoje chamamos de "etnografia" ou relatos etnográficos, percebemos que o pensador hoje cultuado por uma série bem variada de intelectuais, estudantes de várias áreas do conhecimento, se encantou com o povo brasileiro, foi capturado, por assim dizer, pelo encanto do Outro: eis uma bela lição de contato com a alteridade.

Se para alguns o Outro ameaça, para Lévi Strauss, o Outro ensina, promove desterritorialização, a qual tantas vezes já citei aqui. Como perceber o contato, o diálogo e a convivência entre um teórico europeu e os povos erroneamente chamados de primitivos? Melhor dizendo: existem culturas inferiores?

A estes questionamentos certamente não poderemos responder sem aludir à Lévi Strauss e sua experiência marcante nos anos 30. Interessante é que Longe do Brasil também relembra o fato de que o pensador francês retornou ao Brasil, em 1985, fazendo parte de uma comitiva do governo francês.

Nesta última ocasião, neste último encontro ou (des) encontro com o Brasil, percebeu que muita coisa mudou; que o país que outrora conheceu já não é do jeito que o encontrou, pela primeira vez. E continuou pensando sobre isso, o que, inevitavelmente, nos faz pensar também, não seria este o papel fundamental de todo pensador, a produção do insight?

Longe do Brasil é um livro tocante que nos revela a importância do nosso país para a construção de um campo de conhecimento; o livro também nos mostra quem somos, assim como os outros livros do autor sobre o tema. Livre de qualquer exagero, acredito que somente um olhar distanciado e ao mesmo tempo implicado poderia nos oferecer uma visão tão apurada de nós mesmos, nós, como povo e nação.

Eis uma das variadas lições que lévi-straussianas. O teórico, com a paciência que é uma dádida velhice, responde sobre o futuro:



"Estamos num mundo ao qual já não pertenço. o que conheci, o que amei, tinha 2,5 bilhões de habitantes. O mundo atual conta com 6 bilhões de seres humanos. Ele não é mais o meu. E o do amanhã, povoado por 9 bilhões de homens e mulheres - mesmo se for o pico de população, como nos asseguram para nos consolar - , proibe-me qualquer previsão..."




Se ao menos Lévi Strauss imaginasse que apenas em seis anos aumentaríamos nossa população em mais 1 bilhão... A velhice nos permite certos privilégios, um deles é a sensatez e , sobretudo, a licença de não termos respostas para tudo que nos perguntarem.
















sábado, outubro 29, 2011

Feminino: arte & revolução: um aporte psicanalítico










Se eu for pensar em quantos posts já dediquei a livros e a filmes que me marcaram, que trouxeram algum conhecimento, que, enfim, me mobilizaram e inspiraram, certamente perderia as contas. Por este motivo, pensei em adicionar à coleção o meu próprio livro, aquele que mobilizou, inspirou e inspira minha vida, ao menos minha vida como pesquisadora.

Penso que não há ninguém melhor, e ao mesmo tempo, ninguém pior do que o próprio autor para analisar sua obra, dizer algo sobre. Sendo assim, não pretendo aqui fazer uma defesa apaixonada do meu projeto que durou, ao todo, quase cinco anos para se materializar, tampouco espero estar imune a algum sentimento de orgulho que de fato sinto, por ter conseguido realizar este desejo.

Para Lacan, em seu seminário sobre a Ética, não existe nada mais perigoso do que realizar o seu desejo. Para este autor, parece que realizar um sonho ou um desejo significaria, necessariamente, realizá-lo no fim de tudo, ao apagar das luzes. Por isso, então, "realizar um desejo" seria o mesmo que "realizar , no final". Ainda sobre o desejo, lembro de Zizek - um filósofo que dialoga com a Psicanálise lacaniana - falando sobre o caráter paradoxal que envolve desejo/sonho e felicidade. Para o autor esloveno, realizar um desejo seria, de saída, abrir mão da felicidade.

Sendo assim, das duas uma: ou você é feliz, ou realiza seu desejo. Esse caráter perigoso do desejo está tanto em Zizek como em Lacan, e perpassa, em geral, toda a ideia psicanalítica de subjetividade. Aí entra o mote para o meu livro: Feminino, arte & revolução: um aporte psicanalítico (Edufal, 2011) que fala sobre esses desejos que , via de regra, nos mobilizam e geram inquietações, construindo nossa identidade. Este livro, cabe dizer, foi o resultado de minha dissertação de mestrado realizado em São Leopoldo-RS.

Busquei aliar meu interesse pela subjetividade feminina ao diálogo com as artes, porque sempre acreditei no que Freud dizia a respeito do pioneirismo da arte nas questões do inconsciente. Porém, não necessariamente poderia fazer esta relação livremente, por exigências acadêmicas as quais, não retiraram todas as minhas esperanças deste intento.

Entendendo a subjetividade feminina como uma invenção, tal como Lacan desenvolveu, percebi o conceito de mascarada como uma possibilidade criativa diante da falta de referência na construção da identidade feminina e me coloquei à disposição do tema para que ele demolisse meus próprios paradigmas, me levando ao meu desejo, e não a minha felicidade. Estranho? Sendo um livro acadêmico, nascido de exigências igualmente acadêmicas, a ideia que norteou o projeto foi falar, mesmo que de maneira indireta, da arte feminina em fazer-se mulher e para tanto é necessário revisitar os autores, os teóricos que respaldaram o projeto.

No entanto, em poucas palavras, o que busquei entender - e por isso, me senti mobilizada - foi como esta construção de identidade se dá no contexto cultural atual, como as mulheres se tornam mulheres? Além da ultrapassagem do Édipo, da constituição da feminilidade através de amigas e de outras mulheres, como a mulher, hoje, se torna um sujeito, apesar da ausência do significante da feminilidade?

Leituras sexistas à parte, meu interesse foi me sustentar em quem primeiro falou sobre o tema, Joan Riviére e Lacan, para que, de fato, fosse possível pensar nas reconstruções que a mulher faz diante das exigências dos tempos atuais, a saber, a obediência irrestrita e geradora de ansiedade ao tripé " beleza-juventude-magreza", aos novos ideiais que apregoam a liberdade, a livre disposição dos sujeitos, toda a parafernalha científica-midiática que torna a mulher uma outra mulher, porque se reinventa hoje não mais como se reiventava ontem, seguindo referências outras.

No fim dessa discussão teórica surge o discurso das próprias mulheres que hoje tentam e criam a sua verdadeira "arte e revolução" diante dos ideiais contemporâneos. É preciso dar-lhes fala, tal como o fez Freud, desde as suas histéricas.

Até este ponto, talvez não saibamos o que isto tem a ver com o desejo, com o desejo feminino, mas, acredito que há uma relação quando começo esse texto falando do meu desejo que foi realizado, no fim. Desejo de pesquisadora de entender como se dão todas essas questões que, invariavelmente, também são minhas. No fim , realizei um desejo?Não sei, mas desconfio da face mortífera deste: pois só me vieram mais perguntas ao invés de conclusões sobre tudo isso que tem relação com a mulher e com sua subjetividade.

Realizar um desejo no fim, é saber que não há fim para um desejo, pois este continua nos guiando, por onde bem entender, assim é o papel do pesquisador que deve abandonar as ideias ingênuas que poderia ter sobre neutralidade. Esta não existe. Gosto muito de um trecho que escrevi neste livro, justamente falando da minha incapacidade de ouvir tudo isso incólume:

" [...] escutar é, necessariamente, dar forma aos próprios fantasmas; aquele que escuta não está imune ao que se lhe apresenta como queixa do outro e é neste ponto que se faz a dificuldade e também o motor, a mola propulsora desta empreitada"

Quer saber? No fundo, no fundo, pesquisar é nunca realizar o seu desejo. Porque isso nunca termina.

segunda-feira, agosto 29, 2011

Um conto chinês ou até onde a alteridade nos conduz



Um argentino ermitão, um chinês perdido e uma mulher apaixonada. Essas são as personagens centrais de Un cuento chino (Argentina, 2011). A trama busca lançar luz sobre um relacionamento insólito mantido por acidente entre Roberto (Ricardo Darín, de O segredo de seus olhos, Abutres e O filho da noiva) e Jun (Ignacio Huang).

Darín, que consegue ser unânime em críticas quanto a sua vibrante e precisa atuação, vive uma personagem solitária, imersa em um mundo obsessivo em que não se come os miolos dos pães. Roberto é dono de uma pequena loja de ferragens a qual, herdada de seu velho pai, serve de palco para muitas atitudes típicas de um verdadeiro rabugento, como, por exemplo, maltratar clientes que buscam parafusos.

Roberto, apesar de suas próprias manias, herdou outras de seus pais: costuma colecionar notícias de jornal que guardam em comum o fato de serem estranhas: a prova da hipótese de Roberto de que a vida não faria o menor sentido. É com esta certeza que Roberto coleciona recortes de jornal que comprovam a veracidade de sua hípótese, mas o estranho hábito vai além: é através do mergulho nas vidas alheias, desconhecidas, que Roberto consegue dar um sentido a sua própria vida: aí está o paradoxo: é tentando obsessivamente provar que a vida não tem o mínimo sentido que Roberto vai reunindo e colecionando sentidos para sua , uma motivação que o faz acordar todos os dias e apagar a luz de seu quarto, indefectivelmente, às 23 horas da noite.

Tão sem sentido como as notícias bizarras colecionadas por Roberto é a vida do chinês Jun, perdido na Argentina desde a tragédia que matou sua noiva: um desastre insólito, um fato considerado por muitos improvável, bizarro: eis que surge, do alto do céu, uma vaca a mugir que acaba atrapalhando o pedido de casamento que Jun faria à noiva, que não resiste à pesada vaca. Assim a história começa e também começa a relação estranha mantida entre Roberto e Jun.

Apesar da incompreensão entre os idiomas, os hábitos e culturas tão diferentes entre Argentina e China, Ún cuento chino vai além do óbvio: o que está claro no filme - e esta deve ter sido a verdadeira intenção de seu realizador Sebastián Borensztein - é que para além dos idiomas é a própria subjetividade que afasta e ao mesmo tempo une as pessoas.

O atrapalhado chinês que não consegue pronunciar sequer o nome de Roberto , estranha não só a sisudez do anfitrião argentino: estranha-lhe os hábitos, o gosto pela comida, a casa, os recortes. O belo e simples filme nos mostra nada de novo e, ao mesmo tempo, nos coloca à frente uma verdade que parece sempre inédita: o Outro nos constitui e nos dá um lugar em seu discurso, e por isso existimos, é através do olhar do Outro, representado pelo chinês que "é limpo, calado e colaborador", que Roberto consegue encontrar um sentido em sua vida tão perpassada pela própria incapacidade típica dos obsessivos de lidar com os sentimentos.

O pobre e inadequado chinês ensina a Roberto coisas sobre sua cultura, sua gente, sua língua , mas ensina, sobretudo, lições sobre os sentimentos e como estes podem ser acessados: solidariedade, compaixão e agradecimento estão presentes neste sensível filme como se fossem lições das quais Roberto deveria entender. Apesar das confusões entre as línguas e da necessidade de tradutores, Jun e Roberto se entendem pelo fio mais tênue que os liga à vida: o insólito e trágico acidente com a vaca e sua consequência, o não menos insólito encontro entre o argentino solitário e rabugento e o chinês sensível e observador.

A pista sobre o que de fato está em jogo neste filme é-nos jogada pela personagem de Muriel de Santa ana, Mari, de quem Roberto não consegue se aproximar da maneira como deveria segundo os próprios sentimentos. Mari insiste, convida e oferece afeto à Roberto que, diante disto, não consegue expressar nada além do que uma cansativa e obsessiva educação. Enquanto isto, Jun consegue comprender bem o vínculo afetivo que existe entre o novo amigo e a moça romântica, mesmo sem falar uma palavra em espanhol.

O filme gasta seus quase noventa e quatro minutos falando, inclusive nas entrelinhas, de como precisamos do olhar do Outro, esse mesmo outro que nos constitui à medida que nos desaloja, nos desterritorializa em nosso próprio espaço, em nossa própria subjetividade.

Era preciso que Roberto encontrasse Jun, e este filme, sincero, convicente e coeso mostra todo esse desencontro diante do Outro, tão bem representado pelo estrangeiro, pela "cultura estranha", o encontro como o novo, como o diferente faz com que ambos ultrapassem os próprios limites e, com isto, encontrem o verdadeiro sentido das suas vidas, mesmo que isso tenha sido determinado no fatídico dia em que uma vaca caiu do céu.

sexta-feira, agosto 19, 2011

"Eu queria ser médico, mas fiz Psicologia"








Desde que surgiu no horizonte do pensamento humano, a Psicologia vem superando obstáculos com a mesma rapidez com que cria as mesmas barreiras que dificultam o real entendimento sobre sua função e especifidades. Ao buscar apoio nas teorias pré-psicológicas de origem filosófica estruturalistas e funcionalistas, a nova ciência apareceu como uma aposta daqueles que buscavam conhecer os processos mentais e, de quebra, elucidar os mistérios do comportamento humano. Em suma: era hora do homem conhecer as motivações que agiam no interior de si mesmo.

A partir disto, o que se viu foi uma proliferação de teorias, hipóteses, um mundo colorido de variáveis idealizadas somente para delícia e desespero de qualquer pesquisador. Vimos passar por nós teorias deterministas, teorias que pretendiam entender o cerne do comportamento - para manipulá-lo e prevê-lo, até o surgimento de uma abordagem que se situa para além da psicologia , uma metapsicologia na qual o comportamento não é sinônimo de personalidade.

Entre comportamentalismos e freudismos há mais coisas do que ousa sonhar nossa vã Psicologia - aqui me aposso de Shakespeare. Assim, para entendermos o lugar que a Psicologia ocupa no discurso contemporâneo é preciso de certos pré-requisitos. Dentre eles, cito:

1- Contexto sócio-histórico: Pois toda ideia nasce em um determinado cenário, revestido de contrasensos e peculiaridades. Skinner não pensou em modelar o comportamento humano sem considerar as exigências sociais as quais se impunham ao homem moderno. Tampouco as ideias de Freud foram alheias ao trajeto Viena-Paris-Alemanha fin de siécle em que se constituiram. Cada povo tem uma história e essa história é dinâmica, transformável a medida que é de autoria do próprio povo , quisera eu ser inédita neste ponto.

2 - Status de ciência: Apesar do que supôs Immanuel Kant, a Psicologia poderia se tornar uma ciência, apesar de não se fazer valer de proposições matemáticas. Contrariando o pessimismo do alemão, a Psicologia deu largos passos diferenciando-se da concepção positivista reinante que lh e pariu para buscar outras searas. Essa é a grande virada psicológica: a ruptura com o paradigma positivista que nos faz entender a velha máxima cartesiana do "Penso, logo existo", como uma piadinha ingênua e sem graça perto do que já descobrimos no mundo Psi.

É interessante que o discurso social seja tão importante para a validação de uma ciência tanto quanto o é o grau de fidedignidade alcançado por um experimento que se pretenda científico. Testamos tudo, mensuramos todas as variáveis possíveis e imagináveis e ainda assim, dependemos inescapavelmente do aval social para respaldar nosso direito de existir. Era assim na época de Freud, era assim na época de Skinner, por que agora seria diferente?

Continuamos lutando por um lugar nesse vistoso campo das Ciências e - pasmem - como diria Figueiredo, ainda sentimos a necessidade de prestar contas a qualquer tribunal epistemológico que se revista com a pompa da Verdade absoluta para sermos autorizados a dizer: Sim, existimos, somos ciência e temos um lugar.

Dentro dessas questões acima citadas, talvez uma das mais interessantes esteja relacionada a este afã que muitos psicólogos têm no que tange ao respaldo ao seu saber. Por que precisamos de tal aval social, epistemológico, positivista para, simplesmente, existirmos? Responder a esta questão é, no mínimo, uma empreitada árdua, sem garantias de sucesso.

Buscamos incessantemente fazer-nos respeitar, não que isto seja errado, equivocada é a forma pela qual exigimos este respeito, quase rasteijando.

Existe uma espécie de complexo de inferioridade que perpassa a alma psicológica de tal maneira que nos faz submeter aos horrores positivistas: queremos usar branco , queremos ser objetivos, queremos, finalmente, existir, por a mais b. É este desejo que nos leva, algumas vezes, a falsificarmos nosso discurso em nome de uma adesão ao determinismo, a lógica médica, retirando da Psicologia o que ela tem de mais especial - sua subjetividade.

Desse modo, pisamos, xingamos qualquer coisa que esteja relacionada a uma subjetividade que nem de longe se explica pela química hormonal. Não somos um feixe de glândulas e neurônios a espera de um comportamento. Somos isso também, não só isso. Compreender a personalidade humana é uma tarefa que não se esgota na compreensão das estruturas mentais - caso assim fosse Titchener e seus companheiros estruturalistas não teriam perdido seus postos.

É preciso - e a história nos confrontou com isto - que vamos além da descoberta dos arquivos mentais, que vamos além para acharmos o que diabos existe dentro dessas tais gavetas e de que forma esse conteúdo altera o modo de ser, de pensar, de sentir de alguém.

Todas essas opiniões não precisariam ser defendidas, mas o faço porque ainda me contorço diante de afirmações anacrônicas que sugerem um retorno a essa necessidade positivista, a essa ânsia de reconhecimento a partir da semelhança com tudo que produziu o engessamento paulatino da subjetividade - o principal objeto de estudo do psicólogo, a meu ver.

Tal como uma criança carente de afeto, ainda buscamos o olhar dos superiores, fazemos uma palhaçada ou outra, uma traquinagem aqui outra ali esperando o sorriso nos lábios daqueles aos quais devemos respeito e consideração, simplesmente pelo fato de que somos menores.

Deveríamos lutar contra tudo isso, contra essa necessidade de se apresentar no banco dos reús desse tribunal da Epistemologia, deveríamos ter coragem de esfregar nossa subjetividade por aí, bem indecentemente, e pagar o preço das conseqüências. O único alento diante de tudo isto é que não podemos generalizar esse complexo. Ainda existem revolucionários românticos que acreditam que não precisamos do branco gélido.

Porém, Enquanto pairar sobre nossas cabeças qualquer espécie de complexo de inferioridade , qualquer desejo de estar à altura do discurso médico-positivista, o psicólogo adorará usar um jaleco branco e se regozijará somente por ser chamado de "Doutor".





















segunda-feira, agosto 01, 2011

Um entre cem sonetos de amor





Em Outubro de 1959 , Neruda, poeta chileno conhecido por ser amigo do amor e exaltá-lo de tantas formas, escreve um pequeno compêndio de uma centena de sonetos dedicados a sua esposa, Matilde Urrutia. Os sonetos são precedidos por uma pequena dedicatória na qual Pablo esclarece suas "razões de amor" , as únicas razões pelas quais se justificam os cem sonetos de amor de madeira que só se levantaram porque a amada Matilde deu-lhes vida.


Em homenagem a todo ser que ama e é amado, trago aqui o soneto número XVII, que faz parte do singelo livrinho de bolso "Cem sonetos de amor" que a editora L &PM lançou este ano. Um poema que cheira a madeira, a sal e nos faz lembrar que o amor, embora quisesse o poeta fazê-lo, não se justifica.



XVII



NÃO TE AMO como se fosses rosa de sal, topázio


ou flecha de cravos que propagam o fogo:


te amo como se amam certas coisas obscuras,


secretamente, entre a sombra e a alma.


Te amo como a planta que não floresce e leva


dentro de si, oculta, a luz daquelas flores,


e graças a teu amor vive escuro em meu corpo


o apertado aroma que ascedeu da terra.


Te amo sem saber como, nem quando, nem onde,


te amo diretamente sem problemas nem orgulho:


assim te amo porque não sei amar de outra maneira,


senão assim deste modo em que não sou nem és


tão perto que tua mão sobre meu peito é minha


tão perto que se fecham teus olhos com meu sonho.


Pablo Neruda

domingo, julho 24, 2011

Por uma nostalgia salvadora











Eu sei que há tempos se critica - e sempre irão criticar - esse tipo rançoso que vive como se vivesse atravessado por um tempo outro, um tempo melhor, em que não se matava, em que não se morria - não pelo que se mata e pelo que se morre hoje, ah, estes eram os meus tempos.


Por todos os campos do conhecimento sempre existirá lugar para o teórico nostálgico - e eu não estou falando de Psicanálise apenas, estou incluindo aí, nesta mesma seara, os sociólogos, os linguistas, os filósofos. Sempre há uma legião de defensores dos dias de outrora. Eu também os defendo. Na cara dura. E direi por que.


O passado parece ser o lugar das realizações, o lugar do conforto. O passado é sempre uma casa mobiliada como nos tempos das avós - cristaleiras, móveis de imbuia, e porta-retratos bem antigos estampando outros tempos. Assim é o passado, uma casa de vó, bem mobiliada, cheirando a pitanga e a genipapo. É a este lugar , situado em algum lugar da história dos homens, que muitos dedicam suas vidas, suas trajetórias.


A contrário do que alguns possam pensar, ao contrário de toda a ladainha modernosa, o passado não é feito de naftalina: é lugar de reflexão por excelência - lugar para repensar o presente e de idealizar o futuro, o qual, nunca, mas nunca será tão colorido como o passado em preto e branco. Bem já disse Janis Joplin ao dizer que trocaria vários dias no futuro por apenas um dia no passado, e, o mais irônico de tudo é que a cantora de voz singular era considerada tão avant gard tão prafrentex em sua época. É. Até os moderninhos têm saudade de um não sei o quê que nem viveram.


Recentemente, o último filme de Woody Allen, "Meia-noite em Paris" revelou o que todos já sabiam, seja através de biografias do cineasta americano, seja por perspicaz observação: Allen é frequentador assíduo das confeitarias do passado, e mesmo na pele do ótimo Owen Wilson, Allen consegue nos deixar entender o porquê da nostalgia ser válida , ou melhor dizendo: porque o passado é alento.


A esta altura alguém poderia perguntar: o que tem isso de novo? Realmente, nada há de novo em nostalgia a não ser a exaltação desta como nunca antes em outros tempos: roupas retrô, brechós, móveis vintage, tudo isto surge como uma novidade da sociedade pós-moderna que cansou - ou não resistiu - aos constantes apelos que bradavam: "inovem!inovem!". O passado, a casa e as receitas da vó - além de seus vestidos e coques - voltaram a ser valorizados e ostentados por cabecinhas tão modernas. Só que a onda nostálgica para aí na área do design, da estética.


Como sabemos, ou podemos suspeitar, não parece nada bonito assumir-se um nostálgico convicto. Retrô é apenas moda pós-moderna, de uma contemporaneidade ímpar, mas não vá sair por aí ostentando o que viveu - ou o que não viveu, mas que gostaria. O idealismo nostálgico - cunho o termo agora - não é bem vindo, está roto, é tão anacrônico como a palavra anacrônico.


Desse modo, aquele teórico que , porventura, deixar sua alma saudosa dos tempos da brilhantina falar mais alto e denunciar que bons mesmo eram os velhos tempos será execrado, chamado de antigo, ultrapassado, intransigente, até mesmo de "defensor de uma visão de futuro apocalíptica". Pois é na carona desses que vou.


Não peço desculpas por continuar ostentando o velho discurso de que sou do tempo em que as pessoas temiam os professores, não pelo autoritarismo destes, mas pela simples existência daquele sentimento misto de afeto e medo que um dia Piaget chamou de respeito. Sou do tempo de agora, mas bem que me agradaria esperar por um antigo Peugeot à meia-noite em Paris.


Por isso não peço desculpas por realmente constatar que o passado, sim, nem precisa ser aquele de Dali ou de Picasso, ali sim é que eram os tempos. Afinal, uma hora teremos que tomar partido, apesar desta sociedade politicamente correta que escorrega em tantas cascas de banana por amor à contemporaneidade.


Assistir a juventude aclamar Charlie Sheen como ídolo não por seu talento como artista, mas por sua vida desregrada, presenciar os supostos fãs de uma celebridade que vivia no terrível mundo das drogas deixarem bebidas álcoolicas em sua porta como uma bizarra homenagem não me deixa animada com os dias que virão e, provavelmente, todos estes fatos que assistimos diariamente me deixam mais saudosas do tempo não vivido, mas por mim internalizado, seja por sorte, seja por neurose.


Diante de tudo isto que vemos por aí é que não devemos nos encolher com medo dos olhos da crítica: a nostalgia é benéfica, talvez seja ela a única coisa que nos faz suportar o mundo. Bradem aos tempos da vóvó, estes sim!




quinta-feira, junho 09, 2011

Entre Plumas, paetês e lacanês










É certo que toda disciplina, todo campo de estudo deve promover eventos para que as ideias referentes a este circulem, ecoem por todos os lados e façam despertar em todos o desejo de prosseguir com a empresa dos pioneiros, daqueles que primeiro desbravaram o campo científico destinado à determinada área do conhecimento. Com a Psicanálise não é diferente: todos os anos pipocam eventos durante todos os meses com os mesmos objetivos: propagar a invenção freudiana, desenvolver temáticas que partam do pressuposto de que insistimos em algo que ainda faz sentido, apesar do centenário da ciência psicanalítica.

O engraçado é que existe toda uma ciência oculta que envolve um evento científico do porte de um congresso ou seminário. Como minha experiência decorre de muita freqüencia nestes ambientes em que se propaga a Psicanálise - ou algo parecido com isto - foi interessante para mim, ao longo destes quase dez anos de trânsito nestes eventos, reunir alguns conhecimentos informais que me ajudaram a sobreviver em tais situações; isto é, procurei desenvolver determinadas capacidades para poder fazer parte do seleto grupo de conferecistas e ouvintes destes congressos que, se não logram êxito em propagar a invenção freudiana, são bem sucedidos em promover risos, gargalhadas e um texto irônico como este, ou que pelo menos pretende sê-lo.

Eis os motivos para tanto:

Em toda a história dos congressos e seminários acadêmicos uma figura específica teima em aparecer, faça chuva ou faça sol, sempre existirá espaço , na plateia, para aquele ser que atrapalha o curso normal de uma palestra, de uma fala, geralmente de um palestrante-estrela, do qual falarei mais tarde. Esta figura, tal como um rato sorrateiro, chega antecipadamente ao evento, procura sentar-se nas primeiras cadeiras, frente ao conferecista (para que assim possa debater melhor com este a temática apresentada) e, não raramente, desperta ódio, desprezo e/ou raiva nos demais integrantes da plateia.

Pelo andar da carruagem, certamente o leitor deve ter adivinhado quem seria essa pessoa: o louco da palestra.

O louco da palestra abusa da boa vontade ou da educação do conferencista, usualmente não se constrange em utilizar todo o tempo destinado às perguntas e reflexões para fazer uma espécie de "mini conferência", que, se não traz nenhuma contribuição para a temática ali proposta, também não pode ser vista como uma dúvida real: ninguém se engane: o louco da palestra gostaria mesmo é de estar ali, por entre arranjos florais, copos d´água e microfones, à frente, conferindo a palestra, e não na plateia, lugar do qual, incessamente, visa escapar com seus comentários equivocados, prolixos e desprezíveis os quais, muitas vezes devem ser entendidos como críticas agressivas diante do brilho do palestrante.

O louco da palestra, apesar de sua agressividade nem sempre velada, faz irromper a criatividade do conferencista em dar-lhe uma espécie de "fora politicamente correto"; pois é notável que o louco visa tão somente o espetáculo, as luzes da ribalta; ele não visa saber, conhecer, inferir, ele visa mesmo é aquele tempinho em que fantasia rivalizar com o palestrante.

Geralmente o louco da palestra recebe respostas politicamente corretas dos palestrantes. Algo do tipo: "Agradeço sua atenção, de fato não tinha pensado neste tema desta maneira" ou "Agradeço sua contribuição, anotarei para que em outras oportunidades possa falar sobre isto".

Uma ou outra a resposta politicamente correta poderia ser traduzida, em termos menos formais com um: "não me interessa o que você tem a dizer, certamente é uma besteira, mas para não ser mal educado, vou fingir que o que você falou tem alguma importância para mim". Este é o mundo: cruel e frio, não se engane, puro leitor (ui, minha veia machadiana agora grita).

Como a idiotice não é privilégio do louco, cabe falar também do conferencista, ele mesmo idiota, tachado como a estrela do evento que muitas vezes confia tanto no seu próprio taco que não se dá ao trabalho de preparar, de fato, sua fala: recorre frequentemente a anotações esparsas, de cadernos amarelados e sai pinçando um trecho ou outro que foi capaz de produzir há cerca de 10 anos ou mais.

O conferencista-estrela muitas vezes não se julga ao alcance da simplória plateia; não raramente começa sua fala com um: "Não sei se serei claro, mas se vocês não conseguirem alcançar, digam-me que eu tento falar de outra forma". Àquele que não é habitué destes eventos, certamente concordará com o conferencista-estrela; devido também à inexperiência, realmente pode pensar que está muito aquém daquele ser que surge à mesa e toma de assalto toda a plateia, uma mente brilhante que sequer consegue ser compreendida devido ao seu brilhantismo.

Quase sempre o palestrante-estrela usa de subterfúgios conhecidos do mais baixo idiota: começa sua fala com uma frase de efeito que pouco ou nada tem a ver com a temática que propõe. É prolixo, arrogante e isto se pode notar pelo número de bocejos por segundo observados na plateia.

Quando era estudante, não conto as vezes em que me rebaixei, com toda a neurose que Deus me deu, diante daqueles semi-deuses que para mim falavam tão mais bonito à medida que usam termos do tipo "o significante barrado" " a borda de Moebius", "lalangue", e tantas outras palavras deste idioma tão estranho que é o lacanês (uso inapropriado dos termos desenvolvidos pela teoria lacaniana pelo sujeito que, perversamente, não se contenta com o seu suposto saber e nega a possibilidade de, um dia, vir a tornar-se dejeto).

É um tal de "sujeito barrado" "letra", "significante Outro" "banda de Moebius", "cross cap", "lalangue", sem falar no uso inadvertido de termos em língua francesa para dar mais veracidade à encenação do suposto saber. Se você não é da área, não entende bulhufas de Psicanálise ou algo que a valha, ao menos entenderá que , no mundo acadêmico, para que você seja respeitado, muitas vezes é necessário recorrer a um jogo sedutor o qual se vence quanto mais palavras e termos estranhos usar: simples assim, quanto mais eloquente parecer, quanto mais ambíguo e obscuro for, maior a possibilidade de não entenderem, logo, serei o palestrante o qual a plateia não conseguirá alcançar. Este é o mundo: cruel e frio, inocente leitor.

Neste mundo imagético o qual habitamos, uma imagem e um lacanês vale mais do que qualquer entendimento real sobre o assunto.


Há, entre a seara dos palestrantes, um tipo muito interessante, além do pedante que insiste no lacanês: o palestrante louco. Geralmente apresenta-se como um ser estranho, possivelmente mal amanhado (mal vestido e desgrenhado) como se isto fosse garantia de que, se aquele ser não tem tempo para pentear as madeixas, certamente isso se deve ao fato de estudar muito, mas muito mesmo, a ponto de desconhecer o objetivo de um pente.

Estes seres surgem e se proliferam nas palestras e seminários de Psicanálise; é o famoso estranho que mais parece perdido, como se um ser mítico, fosse, talvez advindo do distante mundo neozelandês dos hobbits (analogia que devo a uma querida professora) que veio ao seminário obrigado por deveres acadêmicos, pois é notória sua vontade de estar em casa, sem banho e sem pente, ensandecido diante de tantos compêndios, dicionários e livros técnicos.

O palestrante louco não fala coisa com coisa; costuma apresentar-se de maneira histriônica e visa tamponar a própria vacuidade com termos em outras línguas para mostrar erudição. O ser mítico, como será perceptível ao longo de sua fala, não sabe mais do que ninguém da plateia, não sabe mais do que qualquer rato; seus textos são marcadamente desorganizados e não chegam a lugar algum. Não concluem o que não desenvolveram e nem sequer introduziram.

Neste ponto, alguém poderia perguntar: é fácil distinguir um palestrante de verdade de um engodo? Não, a resposta é não; é somente com muita experiência nestes ambientes e, sobretudo, com o crescente conhecimento que adquirimos ao longo da formação acadêmica que começamos a descobrir quem de fato sabe e quem de fato enrola, inventa, alucina.

Aqui cabe o conhecimento popular e um trechinho de "Canto de Ossanha", de Vinícius de Moraes: "O homem que diz sou, não é, porque quem é mesmo diz , não sou". Ou seja, em poucas palavras: humildade e sabedoria caminham juntos, e estes seres advindos de florestas longínquas, além de demonstrarem profundo mal gosto em sua apresentação pessoal, também demonstram que , não necessariamente você precisa se desgrenhar para ser, de fato, estudioso. Muitas vezes estas pessoas são apenas falácias, discurso vazio recoberto de uma arrogância sem limites.

Por último, mas não menos importante, não poderia encerrar este textículo sem mencionar uma das figuras das quais mais gosto, não pela eloquência e sabedoria, mas pelo que ela me suscita em sua essência. É o famoso palestrante-psicografista. Com frequência este palestrante surge e inicia sua fala com uma revelação: tem mantido contato com seres que passaram desta para melhor, tem conversado com grandes nomes da Psicanálise, como Freud, Lacan, Winnicott, Melanie Klein, enfim, todos os grandes nomes, numa espécie de mesa branca ou coisa que o valha e trazem os resultados disto na palestra.

É comum que o palestrante-psicografista apresente textos conhecidos como "colcha de retalhos", nos quais não se sabe quem está falando, se o próprio ou a entidade invocada. Como se trata de Psicanálise lacaniana, sabe-se da importância da oralidade no discurso lacaniano, mas há gente que abusa, usam expressões como "Eu tenho pensado essa questão com Lacan" , "É o que penso com Freud", etc. Além destas citações que explicitam um contato íntimo com a entidade psicanalítica que parece estar sempre acessível ao mundo terreno.

Sempre que ouço alguém proferir algo do tipo: "Eu penso com Freud", ou "Venho desenvolvendo essa questão com Lacan", me vem à mente a situação de um bando de psicanalistas brincando da famigerada "brincadeira do copo" ou "tabuleiro ouija". Queria saber aonde acontece o tal encontro, como entrar em contato. Venho observando que Lacan vem se tornando uma entidade do porte de um Emmanuel e que os palestrantes não economizam em citações que indicam que existe, de fato, um contato íntimo com o pensador, muito disto se deve ao fato dos textos nem sempre obedecerem às mais simples regras metodológicas: se você vai citar alguém, anuncie-o antes, ou, invariavelmente, a plateia ficará confusa sem saber se tal trecho é seu, se é psicografado, se é do autor renomado, enfim, muitas questões que ultrapassam nossa vã filosofia, ultrapassam o entendimento que temos neste nosso pequeno mundo.

Só não vou me admirar quando psicografarem uma obra de Lacan e se apresentarem como uma espécie de Doutor Fritz da Psicanálise. Há louco para tudo, mas há espertos para tudo também.

Ao longo deste texto também lembrei de outras situações, tais como o momento do coffee break em que as pessoas costumam se engalfinhar por um suco de cajá, ou mesmo o palestrante humilde que tudo que tem deve à Freud ou Lacan, aquele que inicia sua fala com expressões do tipo "estou aqui, na verdade, macaqueando Lacan, porque tudo ele já disse". Estes parecem ser os mais humildes, mas de uma humildade que beira à ignorância: Se Lacan disse tudo, porque você ainda está aqui? Vá embora, vá a piscina do hotel, deixe essa sala fria e vá descansar, porque Lacan já disse o que você diria, então, esqueça a possibilidade de falar algo novo, já o fizeram, a você cabe a cadeira do deck da piscina.

São tantas as situações vividas em um congresso, certamente não abordei nem metade do que minha observação tem encontrado por aí, independente do estado, da região do país em que esteja. Apesar de tudo isto, dos loucos, dos hobbits, das estrelas, dos humildes, da plateia, eu gosto, não vou negar, gosto de observar, pois o que seria da Ciência se não fosse o compromisso de continuar o empreendimento ao qual tantos homens célebres dedicaram suas vidas?



Mentira, vou mesmo é para garantir meus pontos no currículo lattes e rir.









Ilustração: esta imagem foi buscada aleatoriamente através do Google images; achei que deveria manter no anonimato as figuras reais que inspiraram este texto.

quinta-feira, maio 05, 2011

Ato de saudade.






Do doce amor agora me restam uns olhos



Esses olhos tão profundos que Deus te deu



Agora, quis a vida, que passassem dois dias assim, longe dos meus






Do doce amor agora me restam uns olhos e uma boca



Do doce amor, agora, é a saudade



que invade e atesta



que, de fato, só o que resta



a uma namorada bem modesta



é uma meia dúzia de rimas



é ser um tanto quanto brega






e chorar a ausencia de quem



somente por dois dias



se ausenta






Doces olhos, voltem



que dois dias é muita coisa



pra quem te quer a vida inteira.

Transferência: O difícil lugar por trás do véu rendado





Em 1912, em um texto chamado "A dinâmica da transferência", Freud já evidenciava o caráter perigoso da transferência, talvez o conceito psicanalítico que mais suscita polêmicas nos mais variados âmbitos em que a invenção freudiana penetrou.








No referido texto Freud indica, de saída, que a transferência é a arma mais forte de resistência, justamente por sua intensidade e por sua persistência. Em outras palavras, o autor chega a afirmar que a transferência consiste numa luta entre o racional e o instintual, entre a compreensão e a procura da ação entre médico ( na época não existia a função do psicanalista) e paciente.



De tudo isto, podemos dizer que, em palavras menos rebuscadas, transferir é próprio do neurótico e, se aceitamos a assunção de Freud de que todos somos neuróticos - uns em alto nível, outros ainda engatinhando rumo à neurose - e a transferência, essa arma quase letal está presente em tantas outras situações que não necessariamente clínicas, entre médico- paciente.



Existe transferência porque existe o bom neurótico que, devido a sua ambivalência típica, dirige sentimentos afetuosos positivos e negativos a uma figura que assume um lugar em seu desejo. Além de Freud, é interessante lembrar também de Racker , que vem nos ensinar que a transferência não se justifica pela pessoa do médico, nem por sua conduta. Ou seja, mais uma vez, simplificando:






O lugar da transferência é um lugar de suplência: o sujeito alvo de transferência , seja ele médico, analista, psicólogo, professor e até amigo, nunca é ele mesmo quando revestido pelo belo véu da transferência aos olhos do outro, que fantasia, que o pinta com as cores mais bonitas, que tece o véu com as rendas mais esmeradas. O grande problema é que o véu é - e deve ser - rasgado, para que o sujeito volte a ser ele mesmo.


Existe a ambivalência típica do neurótico embasando e dando forma ao véu da transferência, véu este do qual o sujeito nada sabe, posto que se situa por trás desta fina camada revestida de fantasias, tecida pela via do imaginário do Outro.



Assim, entramos, não mais na discussão teórica acerca do conceito "Transferência", mas começamos a abordar os efeitos desta, efeitos do olhar do Outro, que me torna um Outro para ele também. Assim, somos alçados a um lugar de suplência, um lugar que o o Outro nos dá. Aos olhos do Outro não somos nós, somos Outro: mais belos, mais fortes, mais seguros e, também, menos belos, menos fortes, menos seguros.






Da tranferência, desta que acontece em todas as situações em que existam mais de um sujeito, só se sabe seus reflexos. Ninguém supõe o que representa para um Outro, mesmo que esse Outro nos coloque naquele lugar privilegiado para, depois , nos retirar a fantasia, nos desvelar.






Pelo que se nota, ocupar esse lugar requer sensibilidade e, diria eu, até humildade - claro que não estou falando aqui de um lugar teórico - estou falando, em geral, da humildade que se deve ter em se saber que se é tudo diante do Outro, menos si mesmo. Ao passo que um sujeito pode ser alçado às alturas por alguém, pode ser também destituído deste lugar, posto no lugar de dejeto ( não resisti e me remeti à Lacan) .






O dejeto, este sim é um lugar que não desejamos ocupar. Mas ocupamos. Na situação clínica, já nos ensina Lacan, que este lugar é previsível, deve acontecer. Mas , e o narcisismo? Como fica diante de tudo isto, desta queda súbida das nuvens rumo ao chão? Resposta: Analise-se.



Estou aqui pensando em transferência e escrevendo intento elaborar esse lugar de dejeto, coisa pouco confortável com a qual teremos que lidar. Professor, por natureza, é um sujeito que se coloca - e é colocado - em lugar de transferência. Não se pode saber o que um aluno pensa do professor, por sua didática, por sua técnica e por seu conhecimento, você poderá ser reconhecido, mas, repito o que já disse noutro momento, nem tudo é cognição neste mundo de meu Deus.






A palavra aluno tem uma significação tão pejorativa mas deve ser trazido aqui à guisa de justificativa da temática escolhida. Aluno - A-luno, aquele que é desprovido de luz. Não concordo, mas , vejamos. Se é desprovido de luz, consegue, misteriosamente iluminar, por seus olhos, os olhos do Outro, este Outro que vem em suplência.





Aluno não é sem luz, mas , talvez pelo fato da transferência estar relacionada à saber - e este saber não quer dizer um saber intelectual, apenas - é importante que veja a luz no Outro, o professor. É aí que reside a luz do aluno: quando ele é capaz de dirigi-la ao professor, que, coitado dele, nada ou pouco sabe diante do desejo do outro, tal como o analista. Assim chegamos aos céus. Mas o tombo, o tombo é feio e previsível.






O tombo vem no momento em que o sujeito assume suas cores reais, ele é aquilo e não mais é recoberto pelo véu imaginário repleto das rendas mais belas e feito no tecido mais delicado. Somos xingados, expurgados, criticados, imitados ( e se algum professor acha que nunca foi imitado, sinto dizer, não existe professor que não tenha sido, uma vez na vida, imitado por seus alunos, seus trejeitos são meticulosamente estudados, talvez mais até do que a teoria que você tente trabalhar) ejetados da cadeira do suposto saber. Eis o tombo.





Alguém poderia perguntar se é possível escapar desse lugar tão instável, escapar desse movimento que, ora lhe condecora, ora lhe condena. Não. A resposta é não. Porque um sujeito será um Outro para outro sujeito ( mesmo que eu tente, é difícil deixar Lacan) e este Outro é repleto de todos os materiais possiveis à sua construção, menos os reais). Não se escapa à transferência, e a ela se deve, no mínimo, a aprendizagem da humildade, na aceitação da função-dejeto.






Nesse momento, lembro de Machado de Assis, que, se não nega a inevitabilidade do tombo, o minimiza em seu célebre aforismo: "Antes cair das nuvens, do que de um terceiro andar".









terça-feira, abril 05, 2011

Movendo-se com Marc Augé


Pensar a mobilidade. É este o convite que Marc Augé faz ao leitor. O antropólogo francês que andou transitando - quem diria - pelo campus da Ufal Maceió no ano passado, traz o essencial de seu pensamento acerca da mobilidade e do que chama de tempos sobremodernos em seu Por uma antropologia da mobilidade (Unesp/Edufal, 2010). O livro é um reflexo do que Augé pensa sobre esse ir e vir que caracteriza a contemporaneidade, mas vai além disto: articula as noções de cidades mundo e mundo cidades com a perenidade do presente, passando, sem sombra de dúvidas, por temas já trabalhados por outros teóricos como Gilles Lipovesky, Zygmunt Bauman, Sebastien Charles e claro, Guy Debord, sobre a consumação do tempo e a sociedade de consumo calcada em imagens e mensagens.


Por uma antropologia da mobilidade é um livro de leitura agradável, dividido em seis capítulos nos quais o autor nos apresenta a sua visão sobre as perspectivas futuras da humanidade, para tanto, resolve analisar os percalços presentes na subjetivação sobremoderna que nos caracteriza: somos sujeitos do presente, um presente que passa rápido mas que nem todos entendem seu movimento.


Augé também adverte o leitor desavisado sobre o uso de certas palavras que ocasionam, na verdade, o engessamento de determinadas noções pensadas justamente para serem engessadas. É o caso das expressões "marginalidade", "clandestino", "exclusão", que, se não colaboram para o pensar acerca do que visam significar, contribuem para a naturalização de algo nítido: a fronteira. O autor inclusive alerta para o fato de que caracterizar alguém como "clandestino"não quer dizer que uma cultura não o reconhece, ao contrário, o conhece, só não faz sentido incluí-lo.



Para pensar a mobilidade é interessante pensar no que a obstaculiza: a fronteira. Fronteira seria o que tradicionalmente demarca o dentro e o fora, o interior e o exterior. Para o autor, essas fronteiras são de variadas espécies: há fronteiras culturais, fronteiras de linguagem, fronteiras geográficas, mas, seja qual for a fronteira, esta serve para delimitar ao marcar o que está dentro e , consequentemente deixar o espaço da exclusão para o externo.


De acordo com o autor de Por uma antropologia da mobilidade, o problema das fronteiras está justamente no fato de que elas não se desfazem jamais, mesmo em eras de globalização e de superconexões entre cidades, as fronteiras jamais deixam de existir, apenas adquirem novos contornos, um novo desenho.


Ora, podemos pensar, se a fronteira é o invariável, ela continua, mesmo em tempos sobremodernos a delimitar o que é o exterior e o que é o interior. Acabei de lembrar , inclusive da mensagem publicitária que anuncia um produto sem fronteiras; o mundo move-se e você é convidado pela publicidade a mover-se com ele, caso contrário você estará fora. Quando mantemos isto em mente, chegamos a outro conceito explorado por Augé: o conceito de periferia.


Periferia, como o bom e sábio senso comum já instituiu, significa todo aquele "outro lado" da cidade que se agrupa e se integra num determinado espaço que não o centro: espaço de exclusão, uma vez que essa exclusão e essa periferia só podem ser pensados se imaginamos seu contraponto: o centro. Desse modo, tudo que se localiza na periferia encontra-se ex-cêntrico. Semelhante pensamento pode ser associado ao termo "marginalidade" que serve para caracterizar o indivíduo que se encontra à margem da sociedade, sem contudo, esqueçamos que este existe, ele existe em sua invisibilidade. Não é de se espantar que esses sujeitos, em determinadas circunstâncias apelem para a violência para serem enxergados.


Toda essa discussão acerca de termos que passamos a utilizar como que mecanicamente faz saltar aos nossos olhos os paradoxos nos quais nossa sociedade midiática se sustenta: É preciso viver o hoje como se não houvesse amanhã; mas é necessário entender a história, entender a humanidade que nos antecedeu, não através de um processo interno, mas sim, através do consumo do passado, consumo de história, o qual, por sua, vez , se baseia num consumo de mensagens e imagens que fazem alusão a um passado.


Neste ponto chegamos a uma das mais interessantes discussões do livro em questão, refiro-me em especial ao capítulo intitulado "O escândalo do turismo". Antes de tudo creio que o que, de saída se impõe é na verdade o impacto causado pelo título da seção: o escândalo, a meu ver, lembra a noção de espetáculo que nos foi apresentada por Debord. Mas em quê consiste esse escândalo?


O escândalo do turismo relaciona-se, para Augé, com a atividade do turista-consumidor que, diante de paisagens que lhe são virtualmente apresentadas por agências de turismo, pode mover-se espacialmente, buscando consumir a cultura de um determinado local tal como consumiria uma coca-cola no deserto do Saara.


Assim opera o escândalo: a partir da lógica de que o turista contemporâneo é aquele que , em férias, decide adquirir um pouco de cultura, visitando as ruínas que testemunharam a queda de nossos ascendentes, e mais, que testemunharam a queda do modelo de História do qual temos notícia. Para Augé, e seu ponto de vista não pode ser confundido com uma percepção apocaliptica da contemporaneidade, nosso tempo atual não nos deixará ruínas; não há espaço para elas, há, de fato , registros, imagens, fotografias, tudo que nos mostrará o passado como imitação , tal como um álbum de fotografias , mas não nos deixa evocar um tempo qualquer, "puro", como sustenta ao autor.


Ao defender essas concepções acerca da figura do turista sedento por conhecimento, consumidor de cultura, Augé o contrapõe a outra figura, diferente do turista em muitos aspectos mas que se aparenta com este em um determinado ponto: estamos falando da figura do etnólogo, do estudioso que se imbui de um objetivo e destina-se a vivenciar a realidade de uma outra cultura, ao colocar-se em campo e em suspenso diante de uma experiência que, inevitavelmente, o modificará, além de modificar o campo em questão.


Etnólogos não são turistas, mas há turistas que desejam aprender, estudar, conhecer como se etnólogos fossem. Etnólogos vão ao campo e diferenciam-se do turista pelo simples fato de utilizarem um método. A semelhança entre ambos talvez estivesse no fato - e isto Augé sustenta - de ambos apresentarem o mesmo fascínio pelo que veio a chamar de charme de encontrar indivíduos e paisagens.


Certamente não há espaço para buscarmos clarificar todos os importantes conceitos que nos são apresentados por Augé, mas resta algo da leitura de sua Antropologia: o fato de que, por mais que nos aproximemos do tal fenômeno, jamais chegamos a conhecê-lo profundamente, totalmente. É nesse momento que o autor nos interroga: É possível nos conhecermos? É possível conhecer esse outro que se impõe como diferente de mim?


Em outras palavras, vamos a campo, viramos antropólogos, etnólogos - e por que não, psicólogos sociais, não com a pretensão de dominar o objeto de nosso estudo, mas, sobretudo, com a intenção de nos desenraizarmos de nós mesmos, de sairmos do posicionamento concêntrico, e assumirmos o difícil lugar do estrangeiro, lugar de falta, por excelência.


Ampliando esta questão para termos gerais, encontramo-nos, todos, em uma sociedade que, apesar de nós - tal como enfatiza Augé- caminha, segue um rumo que nós, inevitavelmente, seguimos. A última lição que o autor nos oferece é a de que necessitamos da mobilidade para fazermos o penoso exercício de nos afastarmos de nós mesmos e sairmos de nossos contornos. Precisamos repensar a mobilidade para podermos pensar em novos modelos de nos relacionarmos uns com os outros.


Assim, em sua antropologia Augé nos mostra de uma forma honesta o que significar mover-se atualmente, levando-se em consideração a necessidade urgente de descentrar-se no mundo, nas cidades, nas moradas, descentrar-se na História, e, por que não, descentrar-se de si mesmo.

quarta-feira, março 30, 2011

Reflexões para docentes, discentes e para os que duvidam


Docente: Palavra de origem latina que significa "aquele que ensina".


Docente é um substantivo adjetivado que vem sendo empregado a torto e a direito, de frente e pelo avesso por aí. Eis que surge algo fruto da minha reflexão sobre a própria profissão. Aqui vão as minhas reflexões, inquietações, desabafos e a minha definição de docência a qual, sem dúvida, sinto-me capaz de explicar, de ensinar, pois sou aquela que ensina e nada mais natural do que isso para mim.


Aquele que ensina recebe o título de docente. Quanto mais o docente estuda, mais o seu substantivo ganha companhias: é mestre, é doutor, é pós-doutor, mas nunca deixa de ser docente, caso ainda insista na difícil arte de ensinar. Arte sim, porque nem tudo é cognição nesta vida de meu Deus.


Segundo nos ensina Freud, existem três profissões impossíveis: governar, psicanalisar e ensinar. Eu, por ora, fico no ensinar. Talvez eu venha, em outro momento, a falar das outras duas, mas, agora falo do ensinar. Não foi à toa que Freud começou a nos advertir sobre a impossibilidade da docência.


Endosso a opinião do pai da psicanálise porque , como não sou nem governante nem psicanalista, cabe-me apenas a terceira, fico então na minha seara, buscando meios de falar do impossível. Vejamos os argumentos para enfatizar tamanha impossibilidade.


1. Acredito que a impossibilidade reside num simples fato: Analogamente àquele que casa, o docente quer casa, e, não se engane ingênuo leitor, (voltei ao meu lado machadiano mais oculto, agora fui descarada) a casa do docente é a Academia. É lá que investe todos os recursos os quais amealhou durante a vida, esse duro processo do amadurecimento, e de lá pretende nunca sair. O docente sabe-se docente desde o primeiro dia em que pisa na Academia; fascina-se pelas aulas, pelo quadro negro, pela eloquência ou pela falta dela nos professores, os primeiros agentes do fascínio, modelos para aquele que , mesmo verde, sabe: Serei docente.

De lá para cá o que se vê é um sujeito que entende que a biblioteca é uma ilha - e disso ele sabe porque já deve ter lido Saramago , um acervo sem fim (mesmo aquelas mais limitadas) de conhecimento e cultura. O docente ainda engatinha com a docência latente em seu espírito. Gosta de ler, passa horas na companhia dos livros e muitas vezes recorre a eles por gosto e não obrigação. De poucas coisas tem certeza, costuma duvidar das falas dos professores, duvida de Foucault, de Freud, de Piaget, duvida de Hegel, duvida de Sócrates e - valha-me Deus - duvida até de Descartes.


O pequenino docente não duvida de apenas uma coisa: ele não duvida da gestação lenta daquele embriãozinho da docência. Quer ensinar, quer saber, saber muito, saber além e depois disso tudo, entender que o que vale mesmo é o que não se sabe. Ele sabe que quer ser docente, quer ser é professor, apesar de todos os comentários que invariavelmente neste processo de gestação irá ouvir.


O docente sai da Academia para nunca sair dela, pois um lugar aspira em meio a tanto conhecimento. Busca incessantemente tudo saber: especializa-se, torna-se mestre, termina um doutorado tudo para nunca deixar a Academia e poder, um dia, ser um daqueles que fizeram tudo isso acontecer. Quer ser professor, e , além do simples querer, desejou e fez por onde: Habilita-se para tal.


O problema está prestes a aparecer no horizonte daquele esperançoso docente. Aquele recém chegado à Academia da qual nunca saiu e que deve ocupar , agora, uma outra posição: É professor. Fato. Tudo poderia ser explicado assim , porém, sabe-se que nem sempre os dias que seguem uns aos outros costumam se imitar; são sempre diferentes, uns mais coloridos, outros nevoentos, uns quentes, outros gélidos. Não se espante se aquilo que pareceu um céu de brigadeiro tornar-se, em seguida, uma noite escura, refletida num céu de mistérios sem nenhuma estrelinha para animá-lo. Surge a maturidade no ingênuo docente, e com ela os problemas da casa. Ou foram os problemas da casa que trouxeram a maturidade de presente para o docente?


É que docente que é docente ama a Academia e, para a infelicidade de muitos, esta Academia da qual falamos facilmente é confundida com outra academia, aquele lugar de exercitar os músculos, músculos que talvez nem soubéssemos que possuíamos, devido ao total desuso destes. Academia vira assim a outra academia e os docentes passam a se portar como se narcisistas fossem, uns ostentando mais do que outros os músculos torneados, a beleza dos cérebros e egos inflados.


Nessa confusão entre academia e Academia, entre músculos e cérebro, entre exibir-se e ensinar perde-se o objetivo da docência em si. Perde-se o porquê, perde-se a razão de ter buscado com afinco usar o tal substantivo adjetivado. É que tem docente que se acostuma tanto em adjetivar-se que esquece do essencial, esquece o substantivo ali, largado na esquina, pedindo um trocado.


Perde-se tempo e inocência com egos e cérebros inflados. Perde-se o sentido da docência, perde-se a decência da docência que deveria ser o norte da profissão. Eis que surgem os docentes indecentes, os que, nesta academia são os mais fortes, os mais esbeltos e torneados. O objetivo do "ser aquele que ensina" se perde em discussões teóricas que têm a profundidade de uma colher de chá, em alusões desrespeitosas ao trabalho do outro, perde-se, enfim, na luta de egos bombados o desejo mobilizador de tudo isso, a alegria de descobrir algo e de continuar s espantando com isto, perde-se o desejo de aprender e ao mesmo tempo ensinar.


Apesar de tanto ter falado do problema em questão, não mencionei o maior deles: Toda essa confusão entre livros e halteres entre egos e sabedoria deixa rastros, e quem perde é o lado mais fraco de tudo isso: os discentes, aqueles outros que personificam esse outro substantivo adjetivado que deveria ser o objetivo daquele que ensina. Na luta de egos e halteres o mais ferido é o discente, aquele que guarda consigo o maior dos tesouros: o desejo de aprender.


Não sei aonde poderíamos chegar falando das feridas que respingam dessa luta de egos , mas sei o que cada um deveria fazer. Ao docente, lutar, sempre, mesmo que pareça clichê, lutar pela disciplina, pela ordem, por todas essas coisas chatas que hoje em dia muita gente despreza.

Lutar pelos alunos, lutar pela função crítica, lutar contra a preguiça e não se preocupe em saber responder todas as perguntas porque você jamais terá todas as respostas. Lutar para ficar na memória daqueles que um dia lembrarão do que aprenderam e certamente não estou falando apenas de teorias e métodos. Lutar todos os dias para se empolgar e se deixar fascinar todos os dias, todas as vezes em que você começar uma aula, porque naquilo você acredita. Duvide dos livros e deles faça nascer a sua crítica, a sua interpretação. Brigue com os livros, mas saiba também afagá-los porque você os tirou daquela mesma ilha perdida e maravilhosa e ele lhe deu tesouros os quais você jamais esperava encontrar.

Lute pelo ensino, pelos livros, pelas boas salas de aula, pelo quadro branco, por melhores salários, por respeito, por Freud, por Skinner, por Marx, por Hegel, por qualquer um em que acredite, mas essa luta só deve ser travada se o docente de fato acreditar em algo. Se a resposta for positiva, que vista a melhor indumentária e faça uso dos melhores escudos, pois há que se preparar para a batalha de egos.


Se a resposta depois disso tudo for negativa, desista, desista da disciplina da ordem, da lista de frequencia, desista do quadro branco porque , uma vez desistindo de tudo isso o docente desiludido estará provando para si mesmo que não acredita nem em Freud, nem em Skinner, nem em Marx, nem em Hegel e com isso, prova-se o pior: não acredita nem em si mesmo.


Ao discente cabe uma tarefa talvez mais fácil: duvide sempre. Da teoria, da prática, da técnica, dos egos. Duvide.


Quanto a mim? A resposta que eu dei a mim mesma foi positiva. Vou continuar lutando, defendendo tudo aquilo em que acredito, e isso provavelmente vai manter acesa uma pequenina chama de ingenuidade que fará de mim sempre, a esperançosa docente.

sábado, março 19, 2011

Sob a nuvem da fumaça com Clarices Lispector



A princípio achei que o documentário De corpo inteiro (2009, direção de Nicole Algranti) seria apenas uma tentativa de fazer a ficção tomar conta da realidade ao adentrar no universo íntimo de uma das mulheres mais representativas do nosso país. Ledo engano: enganei-me redondamente com De corpo inteiro, pois achei que o que se seguiria era a interpretação de atrizes que, por sua semelhança física e por seu talento artístico, emprestariam à personagem célebre o mistério de Clarice, envolta sempre, nas nuvens de fumaça e - penso eu - de elocubrações.


Em vez disto, deparei-me com o que a própria Clarice entendia por ela mesma: em seu universo não habitava apenas uma, mulher, do mundo e de todos, com seu sotaque único constituído tal e qual uma colcha de retalhos, mezzo ucraniano, mezzo recifense. Clarices me foram apresentadas nas figuras de Louise Cardoso, Letícia Spiller, Aracy Balabanian ( a Clarice que estrela o documentário-ficção e chama atenção pela impressionante semelhança física com a escritora), Beth Goulart, entre outras que interpretaram a escritora em diversas fases da sua vida, mas sempre, no difícil papel de entrevistar e de se colocar tão verdadeiramente em cada pergunta que dirigia a seus interlocutores.


Vimos passear diante de nossos olhos uma Clarice voluptuosa tal como a interpretada por Letícia Spiller, em cenário baiano que, de saída, já convida a qualquer coisa de sensualidade, ao entrevistar Carybé. Antes, porém, conhecemos uma Clarice quase brejeira, fanfarrona pela interpretação de Louise Cardoso, que, se não reproduzia Clarice guiada pela imitação dos gestos e expressão, emprestava-lhe outra faceta, alegre em demasia, quase afetada, a faceta quase caipira , na tentativa de fazer-lhe um sotaque que a evocasse. Assim, conhecemos Clarices tantas, Clarices-homem, Clarice em todas e em todos aqueles que bem poderiam ser homens também. Arnaldo Block, ao entrevistar Ferreira Goulart, por exemplo, dá-nos uma amostra do que é Clarice e sua postura diante do entrevistado, uma postura que se esconde na aparente calmaria, quando, na verdade, tudo que arde dentro é revolução.


O documentário realizado por Nicole, que era sobrinha-neta de Clarice, nos oferece a oportunidade de entender o que Clarice pensava, sobretudo, do ato de entrevistar. Não era fácil, já destacamos - vide, e , para quem não viu ainda, a entrevista feita por Clarice com Carlinhos Oliveira, ela, gripada, ele, contestando tudo ou quase tudo: o mundo, a vida e a Academia Brasileira de Letras.
De corpo inteiro foi baseado no livro homônimo da escritora ucraniana e agora virou filme nos dando a chance de conhecer para além da Clarice que escreve, mas a Clarice que entrevista, que respeita a diferença de opinião (tal como nos faz lembrar a entrevista de Carlinhos Oliveira), que reverencia a quem admira ( trecho em que Letícia Spiller, vivendo a escritora, entrevista Jorge Amado), que enche suas perguntas das suas próprias inquietações ( vide o trecho em que é entrevistada a artista Djanira).


Clarice é dúvida. Nada mais natural, quase automático, para aquele que é feito de dúvida do que questionar, questionar sobre os mistérios da vida, sobre os mistérios da morte, sobre o que é, enfim, o amor. Sobre o amor, a escritora em todas as suas mais variadas faces, sempre o lembra, sempre o interroga, e, uma vez não chegando a conclusão alguma, pergunta, em quase todas as suas entrevistas as quais foram documentadas no filme, ao modo de uma criança curiosa: O que é o amor.


Quanto mais se perguntava , mais ainda indagaria, mais ainda questionaria a quem se deixou entrevistar: Na entrevista com Clarice, Nelson Rodrigues dá sua opinião: Amor é eterno, senão é eterno , é porque não era amor. Já Hélio Pelegrini, psicanalista e amigo do controvertido autor pernambucano, diz que o amor é o afeto pura e simplesmente. Djanira, a artista que alça o trabalho acima de qualquer outra atividade humana, confessa a Clarice que, sim, amor é tudo aquilo que se pode dar.


As Clarices mudavam, rostos se alteravam, vozes, umas com sotaque, outras sem, umas semelhantes outras distoantes , Clarice continuava a mesma. Ao passo que o documentário vai gastando seus 66 minutos de duração, não percebemos outra atmosfera que não a de Clarice, esta sempre a mesma, inalterada , mesmo que colorida por outros olhos nem sempre esverdeados, por outras bocas. O cigarro indefectível , a aura de mistério e esse não sei o quê de angústia prevalece em quase todas as Clarices do filme, seja ela brejeira, voluptuosa, gripada, quase irritada...

As Clarices eram únicas e várias e isto era a opinião da própria sobre si mesmo.


Entendido isto, pude me desapegar da minha necessidade quase metodológica-científica de verossimilhança e de fidedignidade e me acostumar à idéia que a intenção da diretora fugia ao que eu entendi primeiramente: a intenção era mostrar nas várias a única.


Além disto, cabe ressaltar as entrevistas com outras personalidades das mais variadas áreas: Vimos de Ferreira Gullar à Elke Maravilha, passando pela escritora Nélida Piñon, pelo arquiteto Oscar Niemayer uma maneira de deixar mais uma vez uma porta aberta para se conhecer Clarice, agora na voz e no corpo de jornalistas. As perguntas, muitas vezes, pareciam sair da boca de Clarice : O que é o amor, Por que você escreve? Por que você pinta?


Os grandes mistérios da vida e da escritora mais uma vez transformados em enigmas e oferecidos a figuras como as citadas. Chamo atenção para a entrevista com Elke Maravilha que, citando de Sófocles a Nietzsche, nos faz lembrar o que é a vida, o que é o ser humano e até nos faz lembrar Brigitte Bardot em sua defesa dos animais.

De corpo inteiro ensina. Mostra-nos o que é a vida, o que é a morte, a poesia, a escrita e a arte, ao menos na visão dos que estavam presentes nos momentos em que se podia refletir sobre todas essas coisas, momentos estes sempre envoltos pelo cigarro e pelo mistério de Clarice e das Clarices.

quinta-feira, fevereiro 24, 2011

A melancolia, o tempo e o cão


(...)

Eu sou feito de estrelas derretidas,

e sangue do infinito.

Com meu toque descubro as várias cores

dos âmagos dormidos.

Vou ferido de místicas miradas,

e carrego os suspiros

efervescendo em sangues invisíveis

até o sereno triunfo

do imorredouro amor pleno de Noite.

Conhecem-me as crianças.

e me coalho em tristezas.

Em contos de castelos e rainhas

sou corola de luz. Sou incensário

de cantos desprendidos

que caíram envoltos em azuis

transparências de ritmo.

Em minh'alma perderam-se solenes

carne a alma de Cristo,

e finjo entardeceres de tristeza,

melancólico e frio.

O bosque inumerável.




Ritmo de Outono - Federico García Lorca




Melancolia. Algo que muitos confundem com os contemporâneos estados depressivos. Pela pena do poeta fica mais fácil entendermos esse estado diverso da depressão que nos põe diante da angústia ante o objeto que já se perdeu. Perdeu-se e cabe a nós, tal como ao poeta, evocá-lo. Conhecendo o ótimo "O tempo e o cão" (Boitempo, 2009), dei-me conta de que o poeta muito tem a ensinar a respeito desse estado tão interessante que se encontra a meio caminho da solidão. A melancolia, sustenta Maria Rita Kehl, é pensada de maneiras distintas ao longo dos tempos.


Aos estudiosos da escolástica o estado melancólico advinha do fato de que era necessário ceder às pulsões da carne para que o acesso ao gozo do Outro nos fosse permitido, sendo este Outro, Deus. É pois, dessa forma, entre a exigência da disciplina perante o ser supremo e a fuga das tentações demoníacas que se estabelece a melancolia na tradição cristã.


Do melancólico disciplinado passamos a investigar o melancólico romântico, ilustrado pela figura de Baudelaire: o estado melancólico se estabelece como o estado flaneur do sujeito que nada encontra senão ilusões nas supostas benesses que deveriam vir de carona com as outras promessas feitas por um capitalismo que se insinua através das primeiras cartadas da sociedade industrial. Baudelaire voava com suas asas melancólicas acima da cidade industrial que tanto lhe prometera; voava sobre as revoluções que nenhuma certeza lhe deu que não a incerteza e o preço a pagar por toda a autonomia do sujeito, um preço diante da certeza do não-saber, de nunca ter de volta o objeto para sempre perdido.


O melancólico freudiano, fruto da sociedade a qual se insinuava aos olhos de Baudelaire continua sendo aquele ameaçado por tantas possibilidades de escolha e por, ao mesmo tempo, nenhuma possibilidade de escolha. A melancolia, assim, para Freud, torna-se a testemunha de que algo na sociedade moderna vitoriana não estava dando certo; o sofrimento e o desejo de partilhar de um tempo em que ja não há certeza acerca do quem é o Outro se faz presente e nos faz, ainda, poetas.


É por esse motivo que trago Garcia Lorca no início deste post. Poderia ser Rilke, o poeta que se entristecia por perceber a transitoriedade das coisas da natureza ( de acordo com o texto Sobre a Transitoriedade, de Freud) e o qual nos advertia sobre a utilidade da solidão para a criação e compreensão do mundo.


Poderia ser Fernando Pessoa, poderia ser Byron, Álvares de Azevedo, nosso representante mal-du-siècle. Todos , em algum ponto de sua obra, nos revelaram a angústia de estarmos perdidos e separados desse Outro de quem tanto demandamos um olhar. Poderia ser Byron, poderia ser eu ou você.


Todos nós somos pequenos seres desamparados à espera de algo que se perdeu, fosse Deus ou outro Outro, algo de nós se desprendeu e aqui estamos, sempre a vagar, tal como o flaneur, à espera do suave retorno daquele que um dia nos constituiu.

Estaremos sempre à espera da certeza, à espera do Outro, à espera de Deus. Mesmo que não saibamos rimar. A melancolia é democrática.


Enquanto isso, ficamos a vagar.