quinta-feira, fevereiro 24, 2011

A melancolia, o tempo e o cão


(...)

Eu sou feito de estrelas derretidas,

e sangue do infinito.

Com meu toque descubro as várias cores

dos âmagos dormidos.

Vou ferido de místicas miradas,

e carrego os suspiros

efervescendo em sangues invisíveis

até o sereno triunfo

do imorredouro amor pleno de Noite.

Conhecem-me as crianças.

e me coalho em tristezas.

Em contos de castelos e rainhas

sou corola de luz. Sou incensário

de cantos desprendidos

que caíram envoltos em azuis

transparências de ritmo.

Em minh'alma perderam-se solenes

carne a alma de Cristo,

e finjo entardeceres de tristeza,

melancólico e frio.

O bosque inumerável.




Ritmo de Outono - Federico García Lorca




Melancolia. Algo que muitos confundem com os contemporâneos estados depressivos. Pela pena do poeta fica mais fácil entendermos esse estado diverso da depressão que nos põe diante da angústia ante o objeto que já se perdeu. Perdeu-se e cabe a nós, tal como ao poeta, evocá-lo. Conhecendo o ótimo "O tempo e o cão" (Boitempo, 2009), dei-me conta de que o poeta muito tem a ensinar a respeito desse estado tão interessante que se encontra a meio caminho da solidão. A melancolia, sustenta Maria Rita Kehl, é pensada de maneiras distintas ao longo dos tempos.


Aos estudiosos da escolástica o estado melancólico advinha do fato de que era necessário ceder às pulsões da carne para que o acesso ao gozo do Outro nos fosse permitido, sendo este Outro, Deus. É pois, dessa forma, entre a exigência da disciplina perante o ser supremo e a fuga das tentações demoníacas que se estabelece a melancolia na tradição cristã.


Do melancólico disciplinado passamos a investigar o melancólico romântico, ilustrado pela figura de Baudelaire: o estado melancólico se estabelece como o estado flaneur do sujeito que nada encontra senão ilusões nas supostas benesses que deveriam vir de carona com as outras promessas feitas por um capitalismo que se insinua através das primeiras cartadas da sociedade industrial. Baudelaire voava com suas asas melancólicas acima da cidade industrial que tanto lhe prometera; voava sobre as revoluções que nenhuma certeza lhe deu que não a incerteza e o preço a pagar por toda a autonomia do sujeito, um preço diante da certeza do não-saber, de nunca ter de volta o objeto para sempre perdido.


O melancólico freudiano, fruto da sociedade a qual se insinuava aos olhos de Baudelaire continua sendo aquele ameaçado por tantas possibilidades de escolha e por, ao mesmo tempo, nenhuma possibilidade de escolha. A melancolia, assim, para Freud, torna-se a testemunha de que algo na sociedade moderna vitoriana não estava dando certo; o sofrimento e o desejo de partilhar de um tempo em que ja não há certeza acerca do quem é o Outro se faz presente e nos faz, ainda, poetas.


É por esse motivo que trago Garcia Lorca no início deste post. Poderia ser Rilke, o poeta que se entristecia por perceber a transitoriedade das coisas da natureza ( de acordo com o texto Sobre a Transitoriedade, de Freud) e o qual nos advertia sobre a utilidade da solidão para a criação e compreensão do mundo.


Poderia ser Fernando Pessoa, poderia ser Byron, Álvares de Azevedo, nosso representante mal-du-siècle. Todos , em algum ponto de sua obra, nos revelaram a angústia de estarmos perdidos e separados desse Outro de quem tanto demandamos um olhar. Poderia ser Byron, poderia ser eu ou você.


Todos nós somos pequenos seres desamparados à espera de algo que se perdeu, fosse Deus ou outro Outro, algo de nós se desprendeu e aqui estamos, sempre a vagar, tal como o flaneur, à espera do suave retorno daquele que um dia nos constituiu.

Estaremos sempre à espera da certeza, à espera do Outro, à espera de Deus. Mesmo que não saibamos rimar. A melancolia é democrática.


Enquanto isso, ficamos a vagar.

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