sexta-feira, agosto 19, 2011

"Eu queria ser médico, mas fiz Psicologia"








Desde que surgiu no horizonte do pensamento humano, a Psicologia vem superando obstáculos com a mesma rapidez com que cria as mesmas barreiras que dificultam o real entendimento sobre sua função e especifidades. Ao buscar apoio nas teorias pré-psicológicas de origem filosófica estruturalistas e funcionalistas, a nova ciência apareceu como uma aposta daqueles que buscavam conhecer os processos mentais e, de quebra, elucidar os mistérios do comportamento humano. Em suma: era hora do homem conhecer as motivações que agiam no interior de si mesmo.

A partir disto, o que se viu foi uma proliferação de teorias, hipóteses, um mundo colorido de variáveis idealizadas somente para delícia e desespero de qualquer pesquisador. Vimos passar por nós teorias deterministas, teorias que pretendiam entender o cerne do comportamento - para manipulá-lo e prevê-lo, até o surgimento de uma abordagem que se situa para além da psicologia , uma metapsicologia na qual o comportamento não é sinônimo de personalidade.

Entre comportamentalismos e freudismos há mais coisas do que ousa sonhar nossa vã Psicologia - aqui me aposso de Shakespeare. Assim, para entendermos o lugar que a Psicologia ocupa no discurso contemporâneo é preciso de certos pré-requisitos. Dentre eles, cito:

1- Contexto sócio-histórico: Pois toda ideia nasce em um determinado cenário, revestido de contrasensos e peculiaridades. Skinner não pensou em modelar o comportamento humano sem considerar as exigências sociais as quais se impunham ao homem moderno. Tampouco as ideias de Freud foram alheias ao trajeto Viena-Paris-Alemanha fin de siécle em que se constituiram. Cada povo tem uma história e essa história é dinâmica, transformável a medida que é de autoria do próprio povo , quisera eu ser inédita neste ponto.

2 - Status de ciência: Apesar do que supôs Immanuel Kant, a Psicologia poderia se tornar uma ciência, apesar de não se fazer valer de proposições matemáticas. Contrariando o pessimismo do alemão, a Psicologia deu largos passos diferenciando-se da concepção positivista reinante que lh e pariu para buscar outras searas. Essa é a grande virada psicológica: a ruptura com o paradigma positivista que nos faz entender a velha máxima cartesiana do "Penso, logo existo", como uma piadinha ingênua e sem graça perto do que já descobrimos no mundo Psi.

É interessante que o discurso social seja tão importante para a validação de uma ciência tanto quanto o é o grau de fidedignidade alcançado por um experimento que se pretenda científico. Testamos tudo, mensuramos todas as variáveis possíveis e imagináveis e ainda assim, dependemos inescapavelmente do aval social para respaldar nosso direito de existir. Era assim na época de Freud, era assim na época de Skinner, por que agora seria diferente?

Continuamos lutando por um lugar nesse vistoso campo das Ciências e - pasmem - como diria Figueiredo, ainda sentimos a necessidade de prestar contas a qualquer tribunal epistemológico que se revista com a pompa da Verdade absoluta para sermos autorizados a dizer: Sim, existimos, somos ciência e temos um lugar.

Dentro dessas questões acima citadas, talvez uma das mais interessantes esteja relacionada a este afã que muitos psicólogos têm no que tange ao respaldo ao seu saber. Por que precisamos de tal aval social, epistemológico, positivista para, simplesmente, existirmos? Responder a esta questão é, no mínimo, uma empreitada árdua, sem garantias de sucesso.

Buscamos incessantemente fazer-nos respeitar, não que isto seja errado, equivocada é a forma pela qual exigimos este respeito, quase rasteijando.

Existe uma espécie de complexo de inferioridade que perpassa a alma psicológica de tal maneira que nos faz submeter aos horrores positivistas: queremos usar branco , queremos ser objetivos, queremos, finalmente, existir, por a mais b. É este desejo que nos leva, algumas vezes, a falsificarmos nosso discurso em nome de uma adesão ao determinismo, a lógica médica, retirando da Psicologia o que ela tem de mais especial - sua subjetividade.

Desse modo, pisamos, xingamos qualquer coisa que esteja relacionada a uma subjetividade que nem de longe se explica pela química hormonal. Não somos um feixe de glândulas e neurônios a espera de um comportamento. Somos isso também, não só isso. Compreender a personalidade humana é uma tarefa que não se esgota na compreensão das estruturas mentais - caso assim fosse Titchener e seus companheiros estruturalistas não teriam perdido seus postos.

É preciso - e a história nos confrontou com isto - que vamos além da descoberta dos arquivos mentais, que vamos além para acharmos o que diabos existe dentro dessas tais gavetas e de que forma esse conteúdo altera o modo de ser, de pensar, de sentir de alguém.

Todas essas opiniões não precisariam ser defendidas, mas o faço porque ainda me contorço diante de afirmações anacrônicas que sugerem um retorno a essa necessidade positivista, a essa ânsia de reconhecimento a partir da semelhança com tudo que produziu o engessamento paulatino da subjetividade - o principal objeto de estudo do psicólogo, a meu ver.

Tal como uma criança carente de afeto, ainda buscamos o olhar dos superiores, fazemos uma palhaçada ou outra, uma traquinagem aqui outra ali esperando o sorriso nos lábios daqueles aos quais devemos respeito e consideração, simplesmente pelo fato de que somos menores.

Deveríamos lutar contra tudo isso, contra essa necessidade de se apresentar no banco dos reús desse tribunal da Epistemologia, deveríamos ter coragem de esfregar nossa subjetividade por aí, bem indecentemente, e pagar o preço das conseqüências. O único alento diante de tudo isto é que não podemos generalizar esse complexo. Ainda existem revolucionários românticos que acreditam que não precisamos do branco gélido.

Porém, Enquanto pairar sobre nossas cabeças qualquer espécie de complexo de inferioridade , qualquer desejo de estar à altura do discurso médico-positivista, o psicólogo adorará usar um jaleco branco e se regozijará somente por ser chamado de "Doutor".