quinta-feira, agosto 19, 2010

Memórias para dias ensolarados



Dias ensolarados premiados com súbitas chuvas que inundam as ruas e deixam os becos de uma pacata cidade colombiana com cheio de enxofre. É este o cenário com o qual nos agracia Gabriel García Marquez em seu Memórias de minhas putas tristes (21 edição, Record, 2009).

Neste livro cheio de sol , suor e sensualidade nos deparamos com uma figura que talvez não combinasse, de início, com este cenário: um velho às vésperas de completar noventa primaveras encomenda a uma conhecida cafetina uma noite de amor com uma ninfeta virgem que deveria restituir-lhe tudo aquilo que a natureza e o tempo teimavam em lhe furtar.

Acontece que a narrativa transcorre assim, cheia de sensualidade, página por página, captando o coração e as entranhas do mais calculado e sistemático leitor.

Repleta de apelos sensoriais, muitas vezes acompanhamos o velho narrador em seus passeios por uma cidade que fora outra que não a que se apresentava, sombra do passado que constantemente é evocado pelo narrador ancião, velho jornalista, amigos das letras e das línguas, em especial o italiano e o latim, escritor de crônicas tão anacrônicas como seu próprio caráter, mas que, de alguma forma o mantinham vivo.

Ao que parece García Marquez em seu Memórias de minhas putas tristes é mestre em nos levar pela mão por entre becos e vielas, nos mostrar os caminhos tortuosos pelos quais sempre o amor se faz presente, nos fazendo quase sentir na pele os arroubos do amor e do sexo, contudo, por incrível que pareça, em nenhum momento o livro se torna pornográfico, mesmo que se pense nisso ao se imaginar um ancião contando as memórias de suas putas tristes.

Bem diferente disso é o universo deste livro. Quase sentimos o cheiro da chuva, o ronronar do velho gato, a pele embrutecida de Delgadina e seu cheiro inconfundível de alcaçuz.

Não bastasse a crueza da descrição de todo o cenário e a veracidade com a qual as personagens são trazidas à vida por Marquez, uma coisa há de se dizer: em meio a tudo isto, ainda assim, falou-se de amor.

E um amor cantado, embalado ao som de boleros e de clássicos de Mozart. Um amor maduro que , ao mesmo tempo, não deixa de se mostrar ridículo porque nos mostra a essência do humano: o patético quando se fala de amor. Latino como tinha que ser o amor é a vitória e a tragédia do ancião que, mesmo não sentindo a idade pesar em seus calcanhares admitia que passara a vida escapando do amor tal como o diabo evita a cruz divina.

Não se poderia esperar menos do prêmio Nobel de literatura. Memórias de minhas putas tristes é uma história ensolarada, sensual, sensorial , passional de amor, tal como todo amor deveria ser para valer à pena, tanto que eu, leitora sistemática, acostumada aos escritos acadêmicos, pude notar uma única lágrima, furtiva, quase clandestina a escorrer face abaixo ao virar a derradeira página de um romance que me ensina que não necessariamente para se falar de amor deve-se ser sério, sisudo, tal como um compêndio de psicopatologia. Na verdade quase nunca se deve sê-lo.