sábado, outubro 04, 2008

Do encontro*



Tudo se deu na livraria da esquina. Não é que a livraria era grande, nem famosa. Também não era um simples mercadinho de livros. Era a livraria da esquina, sem muitos retoques ou letreiro suntuoso. Nem grande, nem vistosa, nem pequena. Era apenas conveniente.

Encontraram-se lá, aquelas duas almas a vagar entre as sessões de Literatura e a de Jardinagem.

Ela, que costumava se encantar com qualquer coisa que acordasse sua alma da letargia cotidiana, buscava algo diferente. Pensou em Clarice, logo desistiu. Muito auto-destrutivo. Pensou em Florbela e largou no mesmo instante, percebeu que a leitura não era tão diferente de Clarice.
Foi por mandar seus olhos passearem por outras sessões que ela viu o moço das orquídeas.

Queria saber por que diabos aqueles olhos não podiam deixar o orquidário e dar uma passeada lá pelos contos da Lygia Fagundes Telles. Bem que poderiam.
Ela olhava e quanto mais olhava menos entendia porque ele só se interessava por plantas, regadores ou coisas do tipo. Será que não era suficientemente encantadora, tanto ou mais que uma orquídea? A indiferença daqueles olhos jardineiros era demais para ela suportar.
Foi ter com as plantas também. “Há que se plantar, para se colher”, pensou, aproveitando o ensejo.

“ Seu nome científico é Helianthus anuus - o que explica sua imponência e porte majestoso: a palavra Helianthus significa ‘Flor do sol’”.

Era o que dizia a primeira frase da orelha do livro que ela buscou. Ali, naquele território, parecia estar mais próxima das orquídeas do moço desconhecido. De fato, pensou que se pudesse ela mesma vestir-se de dourado e segurar umas poucas folhas esverdeadas, certo que o faria, o moço era muito merecedor, ao menos seus olhos eram, aos olhos dela.
Ele parece finalmente notar que o interesse dela foi subitamente desviado dos contos para a jardinagem, visto a distância entre a sala de leitura e o jardim, poderia dizer que ela foi bem rápida ao se locomover. Não entendia, entretanto, porque ela, uma moça que parecia culta e interessante, estava ali a ter com girassóis e papoulas.
Não, não achou que era por sua culpa. Ela era culta, poderia ser, mas era também um tanto curiosa, e seus olhos pareciam sempre à espreita. Não gostava daquilo, mas, parecia gostar da curiosidade que trouxe a moça aos assuntos de jardim.
Se pudesse - pensou romanticamente como nunca ousara pensar - Se pudesse removeria com as mãos o teto já mofado da antiga livraria para que os raios de sol pudessem, eles mesmos, encontrar aquele girassol de olhos ávidos que se deixou plantar ali, quase sem querer ou intenção.
E ficaram ali, sem saber muito o que dizer. Ele a mover-se cada vez mais rapidamente por entre orquídeas, papoulas, lírios , rumo aos tais girassóis. Ela, sem saber por onde mais caminhar, não sabia se deveria ir ter com as orquídeas ou se se deixava ali , plantada com a tal "flor do sol" nas mãos.

Ela torcia para ele se aproximar.

Ele desejava que ela não mais saísse do jardim.

Há quem diga que nem Clarice nem Florbela entenderiam o que se passou na livraria.
*Ilustração de Cristiano Leão

sexta-feira, outubro 03, 2008

Do comodismo



Todos diziam que pouco ou nada tinham a ver aquelas duas criaturas que foram juntas pela ocasião e pela força de vontade.

Fato é que começou já com data de findar. Viram-se umas poucas vezes, ela ansiosa, ele pacato.

Não se pode dizer se se gostaram. Passaram um tempo juntos, viram o sol se pôr algumas vezes assim como viram umas três luas cheias.

É provável que tenham visto uma ou duas estrelas cadentes juntos, não mais que duas. Beijos, vá lá, talvez umas dezenas, umas dezenas bem exageradas, porque suas bocas, estas sim, se gostavam e se encontravam com mais facilidade do que aquelas duas almas incompatíveis.

Viram uma última maré subir e dispersaram, cada um para seu habitat natural.

Ela às vezes se recorda daqueles olhos caridosos e daquela boca ávida

Ele às vezes lembra daqueles cabelos.


Ela gostaria de lhe falar algo, procurar saber sobre a sua vida

Ele queria saber se ela ainda está sozinha


Ela não quis abrir mão do orgulho

Ele não desejava deixar a sua torre de marfim


E tudo foi se apagando assim
Foram indo embora um da vida do outro
como os raios de sol que deixam lentamente de riscar o horizonte para dar lugar a lua
Foram indo embora assim
sem dar por falta um do outro

Uns dizem que era por que não tinha que ser

Outros dizem que foi apenas obra do comodismo

quarta-feira, outubro 01, 2008

Da mutualidade


Ela era uma deusa. Certamente, aqueles olhos, aquela boca e um sorriso que não se sabe bem se foi obra de Deus ou do diabo.

Ele era um homem maravilhoso, não sabia sê-lo e por isso mesmo advinha um encanto especial daquela face angelical , posto que, não sabendo ser máscula, estava mais inclinada a fazer parte de algum relicário ou coisa do tipo.

Finalmente sairam do plano das idéias e marcaram de se conhecer. Conversaram, riram.

Ele pôde ver que aquele sorriso já não era tão brilhante e certamente não era obra divina, tampouco era um trabalho demoníaco - no bom sentido. Era obra do capeta, mesmo, e do mais vil. Se não havia nada de tentador naquilo, havia um certo gosto de enxofre naquela boca, antes idealizada e posta em altar próprio.

Ela pôde notar que aquele rosto outrora mezzo pré-rafaelita, mezzo boyband americano era puro engodo, pendia mais para uma alegoria dantesca. Faltava-lhe o "mojo", faltava-lhe muito para poder adentrar na categoria dos "homens". E como falava. Falava pelos cotovelos. " - Que fale só", pensou ela.


Diante de tais conjecturas e conclusões, resolveram que o melhor a se fazer seria não se verem mais nesta vida. E tudo foi feito assim, de comum acordo, sem que nenhum dos dois pudesse dizer isto, verbalmente.

Há que se valorizar a expressão corporal, nessas horas ela diz tudo.