quarta-feira, outubro 03, 2012

Melanie Klein e a jornada de Fabian: sobre a identificação


Ao ler o primeiro capítulo do livro "Temas de Psicanálise Aplicada" (Zahar, 1955, organizado por Melanie Klein, entre outros) me deparei com algo que muita gente ainda considera novo: a análise de uma obra literária como ilustração de conceitos da teoria psicanalítica, como um bom motivo para estudar.
 
Para aqueles que acham que isto é novidade, a tal da interface, sinto dizer , mas desde Gradiva (1906) Freud tenta ilustrar sua teorização com algumas obras da Literatura, fazendo com que percebamos que, na verdade, o que interessa à Psicanálise é o humano e suas vicissitudes e disto a Literatura está repleta. A literatura ocupa um lugar precioso na Psicanálise, interessando também a outros teóricos que não apenas Freud. É o caso de Melanie Klein.
 
Melanie Klein é uma autora que nem sempre é valorizada como deveria. As pessoas geralmente associam a sua teorização com a clínica infantil, mas é importante que saibamos que os conceitos pensados por Klein são de extrema importância para o desenvolvimento ulterior da Psicanálise como estudo da subjetividade humana, Klein não é so Psicanálise infantil, ela é Psicanálise.
 
Além disto, seus conceitos de identificação projetiva e projeção fazem parte do material de estudo de todo aquele investigador que estuda os delírios e os mecanismos psicóticos em geral. Sendo assim, o que me interessa hoje é falar do capítulo chamado "Sobre a Identificação".
 
Inicialmente, Melanie Klein preocupa-se em definir o que entende por projeção e introjeção e alerta para o papel essencial que estes conceitos relacionados exercem no desenvolvimento da subjetividade. Até aí, nos deparamos com uma teorização sistemática trazida ao leitor por meio de uma escrita fluida e objetiva. Klein consegue ser tão direta e assertiva como poucos teóricos puderam ser depois de Freud, aliás, tanto suas obras, como as de Winnicott me parecem bem agradáveis de serem lidas e compreendidas.
 
 No caso da autora inglesa, acredito que se fala muito sobre a dificuldade que cerca o entendimento de seus conceitos, quando, na verdade, a autora é aquilo que todo escritor deve ser: claro e preciso na defesa de suas hipóteses.
 
 A grande ideia de Klein é que o bebê vive num mundo que é, em última análise,  produto de suas constantes projeções e introjeções. Isto quer dizer que nossa vida deve ser , prioritariamente, produto dos objetos que internalizamos e projetamos no outro. Somos sujeitos que se constituem pela falta e pela fragmentação que permitem que encontremos no outro, algo de nós mesmos que considerávamos perdido.
 
Nisso vejo a beleza da teorização de Klein que neste ponto se associa à teoria de Freud, quando este diz que amamos no outro uma parte de nós mesmos que projetamos no objeto. (Psicologia das massas e análise do eu). Para amar um objeto é preciso - e isso deduzimos - projetar no outro partes do nosso ego que consideramos boas, é preciso ver no outro um quê de familiar para que possamos amá-lo, isto é a base de toda  a identificação para Klein.

Ao dizermos isto não estamos excluindo o fato de que também podemos projetar no outro partes do nosso ego que consideramos más - daí a formação dos objetos persecutórios que , nada mais são do que partes do nosso eu. Acredito que esta concepção lança luz sobre várias problemáticas contemporâneas acerca da violência e dos instintos agressivos.
 
Não podemos esquecer um dos temas preferidos dos estudantes de Psicologia: a subjetividade do psicopata, aquele, que hoje é melhor conhecido como alguém cujo transtorno de personalidade anti-social o levou a cometer crimes muitas vezes hediondos (para sermos cognitivo-comportamentalmente corretos).
 
Identificar-se com o outro é , por assim dizer, reconhecer em alguém as qualidades e os defeitos que separamos de nosso eu e mantivemos em uma galáxia muito, muito distante: isto serve tanto para eu amar o outro, como também para odiá-lo. Inevitável não pensar nos assassinos seriais e suas preferências sexuais, ou no caso de assassinos que preferem ou que apenas matam mulheres, uma vã tentativa de destruir o seio mau (de acordo com a teoria de Klein.
 
O pensamento de Melanie Klein parece certeiro como a matemática: se introjetamos objetos bons advindos do meio, poderemos construir uma vida psíquica mais integrada e livre de fragmentação. No entanto, não existe impulso mortífero que não sucumba à necessidade de integração que todo ego possui. Por isso, a fragmentação nunca se dá por completo enquanto existe vida, isto é dito pela teórica.
 
Estas afirmações parecem indicar uma postura essencialmente positiva sobre as possibilidades do ego se reconstruir e isto se dá porque, desde que nascemos até o dia em que morremos, estamos nos relacionando com o mundo por meio destes complexos elementos que provocam os sentimentos de amor e ódio: estamos vivendo porque introjetamos o outro e sobrevivendo porque projetamos; sentimos culpa porque projetamos, do mesmo modo, podemos reparar um dano, porque nos identificamos.
 
Sendo assim, feliz daquele que pode encontrar os nostálgicos objetos maternos e lançar mão destes para reparar os ataques à mãe amada que o levaram a se afundar num mar de culpas.
 
E a interface nisto tudo? Interessante notar que a leitura psicanalítica de um conto, de uma fábula ou qualquer trecho de uma obra literária nos permite vislumbrar o caráter poético do conceito que se pretende esclarecido através da ilustração. Talvez o interesse de Klein seja tão somente esclarecer os conceitos de projeção e introjeção através da obra de Julien Green, "If I were you" (não sei o nome em português), mas a obra abre espaço para tantas outras possibilidades...
 
Um resumo básico do texto de Green que inspira Klein é o seguinte: um homem considerado por si mesmo mal sucedido e incapaz de atrair as mulheres, em um belo dia conhece alguém, que lhe permite fazer uso de uma fórmula mágica: poderia se transformar em quer que desejasse, havendo apenas uma condição para que tudo se desse tranquilamente: deveria colocar no bolso daquele em quem desejasse se transformar o seu nome original e o seu endereço, para que pudesse voltar, a qualquer momento, ao seu eu original. Nisto há um quê faustiano, aparece o Diabo e diversas tentações às quais sempre sucumbem os homens fracos (na verdade, todo homem).
 
A estória é longamente contada por Klein para depois ser interpretada no melhor estilo "colocando a personagem no divã", o que, diga-se de passagem, não se costuma mais fazer em trabalhos recentes.
 
Apesar da patologização da personagem, sabemos que os conceitos que Melanie Klein parecem ganhar em poesia quando observarmos o troca-troca de "peles" que o sujeito da estória - Fabian - realiza para, afinal, constatar que nada melhor para o próprio eu do que reencontrar-se consigo mesmo depois de uma jornada conturbada para dentro da pele do outro, dos vários outros com os quais acaba sempre se identificando. Há sempre algo de familiar nos outros com os quais Fabian troca de pele.
 
Seguindo seu objetivo, Klein nos explica a estória da personagem-paciente, seus impulsos agressivos diante do pai, o sentimento de culpa gerado pela percepção dos objetos maus que foram capazes de lesar o outro, o sentimento edípico de Fabian por sua mãe que, ao mesmo tempo, permite que este perceba os objetos bons advindos desta e se reconciliar com a figura do pai, possibilitada pela aceitação da religião (o Pai).
 
Acredito que estas poucas informações tenham deixado qualquer um que chegou a ler este texto até aqui no mínimo curioso. O que quero com tudo isso é chamar atenção para a beleza que estes conceitos engendram: apesar de muitas vezes estejamos falando de fragmentação, seio mau, agressividade, impulsos de morte, etc. Perceber desta forma seria apenas reduzir a tarefa de Melanie Klein.
 
Sendo assim, entendemos que estar na pele do outro acaba sendo a melhor forma de recuperarmos a particularidade de nós mesmos. Isto deve ser o fundamento do que a Psicologia Social chama de empatia, pois empatizar é, em última análise, "colocar-se no lugar do outro, como se ele fosse, adquirindo características deste" (Houaiss). E aí eu complementaria Antonio Houaiss: adquirindo as características do outro que, são, na verdade, minhas.
 
Para quê serve estar na pele do outro? Serve para nos constituirmos como sujeitos. A jornada de Fabian não foi em vão, aprendemos com Klein.