quinta-feira, novembro 12, 2009

Entre o noir, o desejo, a comédia e o masculino: Uma possibilidade de falar de Abraços Partidos




“Há que se terminar os filmes, mesmo que seja às cegas”


Com esta frase, encerra-se o mais recente filme de Almodóvar, Abraços partidos, ou, Los Abrazos rotos (Espanha, 2009). Com Penélope Cruz e Lluiz Homar nos papéis protagonistas da película, observamos um retorno do cineasta espanhol ao universo noir dos estúdios hollywoodianos tão bem explorado em Má Educação (2004), pois, apesar de haver, no meio crítico, freqüentes discussões a respeito do que seria um filme noir - ou seja, o filme que ficou conhecido por privilegiar locações luxuosas, narrativas densas a respeito, não raramente, dos psicologismos e desvios de caráter das personagens ( em sua maioria femininas) – não se pode negar a inspiração e a alusão a este estilo de filme em Almodóvar.


Abraços partidos trata da história de um escritor sobrevivente de um desastre que lhe provocara um tipo de cegueira irreversível. Mateo Blanco ou Harry Caine (impossível não pensar na sonoridade deste nome e a sua similaridade com a palavra inglesa Hurrycane, em português Furacão). Revelado ao espectador como uma narrativa não linear, o filme apresenta um flashback do passado de Mateo Blanco por ele mesmo editado, na forma de uma conversa com Diego, como diz a personagem de Mateo, antes de fazer cinema gostava muito de contar histórias, isto, de antemão, adverte o espectador que, nem tudo no relato pode ser verossímil, por via das dúvidas, estamos diante de uma história contada pelo narrador de quem a verossimilhança do relato depende e sobre a qual o espectador, tal como Diego, jamais terá garantias.


Tal como Diego, o espectador é levado à gaveta na qual Mateo ou Harry Caine, guarda as lembranças mais importantes de seu passado. Em meio a fotos rasgadas, cadernos e álbuns de fotografia, conhecemos um pouco da vida de Mateo, ou suas mais importantes passagens que levariam a compreensão da sua trajetória de vida, mais especialmente no período entre 1992 e 2008 – época atual em que se passa a conversa de Mateo/Harry e Diego.

Não se pode esquecer que a gaveta aberta por Diego e que dá mote à narrativa também guarda os segredos que serão revelados no decorrer do filme, dando-lhe todos os elementos e matizes de um bom filme noir.


Tal como Diego, bisbilhotamos a relação entre Mateo e Judit, agente de Mateo, através das fotos guardadas, bem como somos apresentados a personagens importantes que farão parte do enredo que conheceremos a seguir: o retrato de Madelena, interpretada por Penélope Cruz, a figura de Ernesto Martel filho, atualmente conhecido como Raio-X.

Assim como a gaveta, a folha de jornal impresso também apresenta ao espectador a figura de Ernesto Martel, uma espécie de vilão do filme, cuja morte noticiada torna vívidas as lembranças de quatorze anos as quais assombram as vidas tanto de Ernesto como de Judit e que motivam a narrativa.

Tendo, pois, cumprido a missão de revelar um pouco a trama do universo de Abraços partidos, cabe agora fazer menção ao homem que idealizou tudo isto, e, sobretudo, porquê este filme já tem sido considerado mais uma obra-prima deste cineasta.


Em “Conversas com Almodóvar” (Jorge Zahar, 2008), Fréderick Strauss, importante jornalista a quem o cineasta deu inúmeras entrevistas desde o início de sua carreira, no começo da década de 80 até a atualidade, sustenta que Almodóvar filmou “a linha reta do desejo com o que ele tem de espetacular quando é definido como alvo. Mas também, e ao mesmo tempo, a curva sinuosa que todas as histórias de desejo percorrem” (Strauss, 2008, p.10).

Um retorno ao masculino?


Com isto, é correto afirmarmos que, esquecendo o universo Kitsch, o melodrama, a comédia escrachada que atravessa tantas vezes a obra do cineasta – temos bons exemplos disso tanto em Kika (1993) como em Maus Hábitos (1983) – Almodóvar interessa-se pelas vicissitudes do desejo, nunca abandonando esta temática em seu discurso fílmico. Assim, se temos em Kika, o disparate, a relação sexual que teria tudo para ser traumática transformada surpreendentemente em comédia, temos em filmes como A lei do Desejo (1987), De salto alto (1991) , e mais recentemente Má Educação (2004) e Volver (2006) , a temática da ditadura do desejo, seus caminhos e descaminhos os quais, por vezes, levam às personagens a viverem vidas que apagam ou, possivelmente, atenuam os limites existentes entre comédia e tragédia.


Abraços Partidos não é diferente: percebemos como o desejo é subjacente a toda narrativa, seja na figura de Raio –X, Ernesto Matel filho, desejoso de tornar Mateo o escritor de um filme idealizado para denegrir a figura paterna autoritária e castradora, seja no desejo recôndito da personagem Judit, para quem o próprio desejar tornou-se motivo de amargura e angústia, ou mesmo no desejo de Madalena, representado não somente pela vontade de representar, de ser atriz, mas de viver com um homem cujo poder e obsessão não se tornasse moeda de troca no relacionamento.


Em recente crítica veiculada pela revista Bravo! deste mês, o jornalista Paulo Nogueira contempla o lançamento de Abraços partidos e o considera como o filme que reconcilia Almodóvar com as personagens masculinas densas e com maior carga dramática. Segundo o que sustenta o jornalista, em Abraços Partidos encontra-se um Almodóvar sempre magistral, mas, desta vez, mais brilhante, posto que retorna ao masculino depois de uma longa carreira focalizando o universo psicológico feminino, fazendo deste um ponto central de sua obra.

Pelo que percebe o leitor de Bravo!, Nogueira regozija-se deste retorno de Almodóvar ao masculino, porém, há algo que o crítico não menciona ou mesmo fez questão de não relacionar ao filme: a importância do feminino como o que promove a movimentação do desejo das personagens masculinas, mais especificamente: Diego, Mateo/Harry e Ernesto Matel.

Dizendo de outra forma, concordo com Nogueira quando este sustenta que nunca houve na filmografia de Almodóvar outra personagem masculina tão rica e densa como Mateo/Harry. No entanto, não falar da importância, muitas vezes velada, mas constante, do desejo feminino movendo a narrativa de maneira quase invisível , incorre, no mínimo, em desatenção: É a personagem de Judit que toma a cena e esclarece muitas questões que Mateo/Harry desconhecia sobre seu acidente, sobre o destino da verdadeira película Chicas y Maletas que escreveu e cujo protagonismo era de Madalena (Pina), culminando, também, com a revelação da paternidade de Diego, filho de Judit.

Assim como o aparente secundarismo da personagem de Judit, não se pode esquecer que o destino de Madalena foi selado pela obsessão e pelo amor psicopata de seu amante, Ernesto Matel, poderoso empresário cuja residência impressiona pelo simbolismo fálico – não se pode esquecer dos quadros de revólveres que aparecem a todo tempo nas cenas feitas neste cenário – parece não conhecer os desejos de sua amante, a cena dos dois em Ibiza após o coito demonstra a ignorância do homem poderoso face ao desejo de Madalena: será que ela ficara feliz por imaginar seu amante morto? Relacionado a essa ignorância sobre o desejo feminino, tem-se aparecimento da personagem que não tem nome, mas é paga por Martel para ler os lábios de Madalena nas cenas de um documentário das filmagens de Chicas y maletas, feitas por Raio-X.

A comédia em Abraços Partidos

Apesar das alusões ao estilo noir, do drama psicológico que aproxima Abraços Partidos do gênero do suspense, não se pode esquecer da comédia, também presente nos filmes de Almodóvar, Abraços Partidos não seria exceção.


Assim, Mateo/Harry, em 1994 produz Chicas y Maletas, uma comédia, inaugurando um novo estilo em sua filmografia: desejava tentar algo diferente. Seja nas cenas cômicas do universo do filme produzido por Matel e dirigido por Mateo/Harry que quebram um pouco o clima pesado e intrigante da película real, seja nos momentos finais de Abraços partidos em que o espectador adentra nas cenas verdadeiras de Chicas y Maletas – não se pode esquecer as claras referências das cenas do filme com Mulheres à beira de um ataque de nervos (1988), também de Almodóvar – está-se diante do inusitado, do cômico.


O desfecho do filme parece uma tentativa de um novo compromisso com o espectador que, se antes se sentia imerso numa atmosfera tensa e intrigante, agora era convidado para entrar noutro universo, o universo do cômico de Chicas y maletas: somos ejetados dessa realidade cômica a partir do retorno à ilha de edição , às personagens de Judit, Diego e Harry/Mateo, para, enfim, sabermos que estamos chegando ao término da película, pois, como prenuncia a personagem de Lluis Homar: “há que se terminar um filme, mesmo que seja às cegas”.

Tantas outras questões do universo almodovariano...

Sem dúvida poderíamos aqui falar de muitas outras questões, e com isso, acredito, estaria tornando este texto mais longo, mais cansativo, o que não se faz objetivo.


Poderia falar da presença do vermelho em todas as tomadas do filme (Segundo Almodóvar, o vermelho tanto representava a vida, a luz de sua terra natal, como também sangue, desejo), também da questão do metafilme, ou seja, o filme dentro do filme, a importância do registro cinematográfico para todas as personagens – a onipresença da câmera: ora cumprindo o propósito de filmar Chicas y Maletas, ora contribuindo para a feitura de um outro filme, do qual pouco se fala , porém, mas nem por isso menos importante: o documentário feito por Ernesto Martel filho sobre as filmagens do filme de Mateo/Harry: A câmera de Raio-X tanto denuncia o romance entre Madalena e Mateo/Harry, como testemunha o acidente envolvendo os dois amantes).


Sinto-me satisfeita por ter dito isso que disse e não mais, seja por falta de oportunidade, ou mesmo de foco. De acordo com o que dizia o próprio Almodóvar: “Todas as diferentes formas de ver o filme têm origem no próprio filme, e por essa razão são todas autênticas e válidas, incluindo as que menos me agradam” (Strauss, 2008, p. 56). Desse jeito, eu percebo que ainda há tanto mais para descobrir em Abraços Partidos, por hora é isto que vejo, e o bom é justamente isso, ou não seria cinema.