quinta-feira, abril 22, 2010

A Ilha de Bergman: A ilha interna



Rodado na famosa Ilha de Farö, A ilha de Bergman (Suécia, 2006) é um documentário que deveria mostrar a vida íntima de um dos maiores cineastas que o mundo conheceu, mas vai além.


A documentarista explora as questões de vida de Bergman que talvez só sejam esmiuçadas justamente porque aquele seria o último ano de vida do cineasta sueco. Fato é que, ao nos abandonarmos nos arredores da ilha de Farö, estamos com Bergman e fazemos também parte daquele cenário. Bergman responde com uma franqueza que só a idade avançada permite, tudo ou quase tudo que foi tabu, que foi triste ou doloroso em sua vida, que já acena para ele do outro lado do retrovisor.


A impressão que se tem é que se penetra na alma do velho Bergman, genial diretor de "Cenas de um Casamento", "Persona", "Morangos Silvestres", etc, para percebemos a docilidade, a fragilidade de um homem que a todo momento de sua obra parecia sublimar o sofrimento - algo não muito original, mas que Bergman transforma em arte como poucos ousaram e puderam.


Sublimar: Verbo interessante, amado pelos psicanalistas e desconhecido da população em geral. Sublimar, segundo a pena freudiana, significa dar uma nova roupagem à conteúdos que não necessariamente nasceram bem vestidos, isso tudo para passar do lado de lá do inconsciente e chegar às fronteiras cobiçadas da consciência. Geralmente essa nova roupa é costurada com o fio da arte e rematada pelo acabamento de um alfaiate bem competente e ocupado chamado Ego.


Conhecimentos psicanalíticos à parte, A ilha de Bergman nos mostra um retrato fiel da intimidade e das questões que mais marcaram a vida do cineasta e que, de alguma forma, estiveram presentes em sua obra. A impetuosidade do inconsciente, as aterradoras exigências egóicas, o desejo sempre insatisfeito, a neurose, e , sobretudo , mais do que a falibilidade das relações sexuais, a inexistência delas, fazem parte de assuntos muito comuns na obra de Bergman, tornando sua trajetória artística algo único.


Dói ver Bergman, dói por uma coisa: a sublimação existe, mas dói no espectador dormir com todo aquele barulho provocado pelas belíssimas atuações de Liv Ullmann, de Erland Josephson, Ingrid Bergman, entre outros que atuam os papéis de nós mesmos.


É necessariamente esta dor que está presente não mais na obra, mas no discurso sem disfarce de Bergman, já no fim de sua vida, ao analisar a própria falibilidade na missão que recebeu, de ser humano. Bergman nos conta seus medos em relação à morte, a aceitação de que ela viria, seus desastrosos relacionamentos com as mulheres e um bando de questões que assustam toda uma humanidade, acrescidos de declarações que somam-se à culpa neurótica de cada dia que carrega em seus ombros, tal como nós todos.


A Ilha de Bergman é algo que ultrapassa as fronteiras da linda e paradisíaca Farö, deixa a Suécia e ancora na ilha de dentro do homem capaz de transpor suas dificuldades, ou, para ficar mais bonito, suas problemáticas, para a tela do cinema e, assim, faz de todos nós um pouco cúmplices de tudo que se desenrola no lado de dentro da tela.


De acordo com Freud, faz parte do êxito de um bom autor (e aqui podemos incluir o cineasta) conduzir sua plateia de modo que as tragédias internas das personagens sejam vivenciadas como algo familiar a nós, que achamos que estamos tão distante daquele mundo que se desenrola na tela branca.


Freud foi o primeiro a denunciar nossa semelhança com a neurose das personagens. Em "Personagens Psicopáticos no palco", um curto e delicioso texto do pai da Psicanálise, sabemos porque certos autores têm tanto sucesso ao idealizar uma personagem que, subitamente, tem tantas características parecidas com as nossas...


Sem dúvidas Bergman foi mestre também naquilo que Freud considerou uma das maiores provas do sucesso de um autor: ele conseguiu que nós nos identificássemos com toda a tragédia das suas personagens, justamente porque, quando se trata de mundo interno, personagem e pessoa real não são coisas diferentes, uma vez que a personagem sai de algum lugar real, a semelhança não é mera coincidência.


O documentário não nos mostra personagens, no máximo um homem, consciente de sua própria finitude, disposto a revelar para muitos e talvez para si mesmo, suas próprias tragédias, sucesso e fracasso, tudo enfim que faz parte da ópera bufa que se chama vida a qual todos nós encenamos, como maior ou menor brilho. Agora fiquei confusa: será que não nos mostra mesmo nenhum personagem?


A ilha de Bergman vale para os fãs do cineasta e também para os que são fãs apenas da natureza humana, esta que anda tão em baixa. Vale a pena, recomendo fortemente, um bom exercício de auto-consciência.

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