quarta-feira, novembro 26, 2008

Liv Ullmann e suas Mutações


" Eu desejava acomodar-me dentro do bolso de alguém e poder pular para dentro e para fora, quando me conviesse. Agora ando por aí ouvindo as queixas de mulheres que, segundo imagino, estão presas nos bolsos de outros"

Liv Ullmann


Esse é um dos vários trechos do sincero e
não menos comovente livro de Liv Ullmann , Mutações (2008, Cosacnaify). Em 218 páginas, Liv relata com sensibilidade e poesia fatos marcantes do seu cotidiano, segurando a mão do leitor rumo aos bastidores do mundo glamourizado do cinema do qual fez e ainda faz parte durante boa parte das últimas décadas do século passado.

Liv Ullmann é famosa por ter sido esposa e musa do renomado diretor Ingmar Bergman. No entanto, cabe ressaltar, seu talento ultrapassa a mera alcunha de "musa norueguesa", também nada tem a ver com "diva", "sex symbol".

Não, Liv nada tem de musa; não lembra o encanto natural e quase infantil de Audrey Hepburn, tampouco possui o sex appeal de Greta Garbo. Liv é uma mulher a qual podemos classificar como "normal": insegura, solitária, sensível, carente. Poderíamos aqui estar falando, de acordo com essa descrição, de qualquer mulher contemporânea, poderíamos inclusive estar falando de quem aqui estar a ler essas linhas e também de quem está do outro lado, escrevendo-as.

Em Mutações, a autora nos mostra e nos prova o quanto é difícil posicionar-se no lugar de sujeito desejante, sobretudo assumir uma identidade feminina. E veja! Isso não é diferente porque ela é famosa, atriz, diretora, bem sucedida. De acordo com Freud, o feminino seria um lugar muito obscuro sobre o qual o homem (falo aqui de humanidade!) deve lançar luz; desafiante e negro: este é o continente feminino do qual fala Freud e no qual Liv está tão imersa e nos mostra em seu recente livro.

Ao contrário do que possa parecer para muitos, não é intenção da autora fazer de Mutações uma mera auto-biografia, também não me parece que o livro penda para o que poderíamos chamar de "expiação de culpa" ou mesmo que possa ser classificado como um best-seller. Sem dúvidas haverá os interessados, fãs do cinema sueco de Bergman, fãs da atriz e diretora, mas , não creio que estes leitores sejam tantos a ponto de fazer o livro tornar-se o que o Brasil convencionou chamar de best seller, nos moldes de um Paulo Coelho.

O livro é simples e belo em sua simplicidade. Não existe nele nada do que não possamos saber com o passar dos anos dessa vida que vamos vivendo, assim, um dia após o outro. Também não se fala de viagens interplanetárias, nem lições de vida de pessoas bem sucedidas profissionalmente. Não, nada disso, o livro também não conta a história romanceada de ninguém, conta apenas a estória de vida de Liv, a mulher, por trás da máscara da atriz, à qual a mesma tanto se refere.

Dividido em quatro partes, Mutações, o qual foi dedicado a filha de Liv, Linn, parece ter sido escrito com a pena da sensibilidade, da poesia, apesar de estarmos falando de uma prosa. Não existem capítulos, mas as partes as quais dividem o texto parecem ser elas mesmas partes significativas da vida da atriz, seus melhores momentos, digamos assim.

Por isso, o leitor é convidado a invadir os bastidores de Hollywood e entender que o luxo e o glamour escondem coisas das quais duvidam nossa vã filosofia, vai também conhecer o universo dos romances de Liv, especialmente o romance com Bergman, do qual Linn é fruto, compreender o jogo de egos e a relação conturbada que viviam ela, a atriz submetida ao diretor, mas, primeiro de tudo, ela, mulher, ele, homem. E isso já dá muito pano pra manga ou página de livro, digo a vocês, nem precisava estarmos aqui falando de Liv Ullmann e Ingmar Bergman.

Liv também nos deixa conhecer suas maiores fragilidades, sua sensibilidade extrema a qual tantas vezes emprestou a personagens as quais representou com maestria. Ao ler Mutações, o leitor se depara com o universo da construção das personagens, com o mundo que se apresenta a
Liv e que se faz presente no seu modo de interpretar, dizer verdades mentindo.

Tudo que eu pudesse falar aqui sobre o livro não faria jus à experiência única que é fazer parte, nem que seja ali, da cadeira de leitor, do universo de pura sensibilidade e simplicidade que Liv constroí em torno de si e que empresta às suas personagens.

Não, definitivamente não há nada de novo em Mutações, não poderia chegar aqui e dizer que comprem o livro para que se deleitem com uma leitura agradável, feliz. O livro não me parece feliz, pois como sustenta a própria autora, não existe um constante estado de felicidade. No máximo, quem desejar aventurar-se por esses meandros "obscuros" da feminilidade (leitura cara aos freudianos) encontrará em Mutações os relatos de uma mulher esmagada entre tantas culpas, entre a culpa de ser bem sucedida e assustar muitos homens, causar inveja, a culpa de não ter tempo suficiente para ser mãe em tempo integral, a culpa por não se adequar ao que a sociedade entende por "mulher" ou "deveres e obrigações femininas" .

Em Mutações o leitor encontrará tudo isso, talvez possa se identificar em diversos momentos, talvez venha até a chorar e a sentir uma espécie de empatia por Liv que conseguiu escrever um livro com a alma. Ah, e por acaso ela também era atriz. E que atriz.

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