quarta-feira, dezembro 10, 2008

Numa folha de papel*


"Um pouco de pão,
Um pouco de água fresca,
A sombra de uma árvore. E os teus olhos!
Nenhum sultão é mais feliz que eu...
Nenhum mendigo é mais triste..."


Esses pequenos versos estavam escritos em papel amarelado, com jeito de mofado, em tinta tão azul que sequer aparentava ter sido vertida havia quarenta e tantos anos. Não se sabia autor, tampouco obra, apenas isso era o que sabia, eram versos muito lindos e muito simples, compreensíveis apenas para corações apaixonados e poéticos.

A menina leu-os em um antigo alfarrábio da cidade. O sol estava forte, nada melhor do que a sombra de uma árvore, mesmo que feita de versos, para acalmar o coração que trazia uns remendos, umas sequelas ali, outras acolá.

Ela não sabia dizer antigamente qual seria o impacto que seus olhos teriam ao cruzarem tal folha do livro empoeirado que achou sem querer nem intenção no alfarrábio. Talvez em outros tempos não se tivesse deixado ficar tão fascinada como agora, pois tinha dançado outras valsas, porém não raramente anestesiava as emoções e curava suas dores por entre metodologias e academicismos.

De fato, vivera umas primaveras, dera alguns sorrisos, e, se eu pudesse arriscar, diria que protagonizara antes alguns dois ou três momentos de felicidade. Não diria que tinham sido sublimes, posto que agora tem comparação a fazer.

Eu diria que a menina teria dado uns tantos sorrisos e recebido alguns poucos em troca. Beijos dera muitos, mas a alma parecia adormecida, na melhor das hipóteses, na pior a trazia não dormindo, mas morta, embebida em formol porque até então não tinha havido despertador em seu caminho capaz de anunciar-lhe vida nova.

Vida aquela alma não tinha longe dos seus diplomas e de suas ciências, porém, como algum quê de poesia parecia viver trancado nos porões de seu cérebro, lá em algum lugar entre o hipotálamo e o cerebelo, avizinhando-se do coração, deixou-se lentamente penetrar por algo grandioso que lhe apareceu por obra do acaso ou do trabalho árduo de algumas estrelas, se romântica fosse assim pensaria, pois coração de cientista não sente por medo de deixar de pensar.

Não sabia como, nem porquê, mas foi de repente que a noite e a madrugada da sua alma foi indo embora com o anúncio ensolarado de um novo dia: Sim, chegou-lhe um despertador para dar vida a alma amortalhada.

O despertador era um menino de olhos grandes, com ares e boina de poeta. Fez morada no coração antes apenas habitado por artigos e livros técnicos. Trouxe com ele uma chave antiga e um coração igualmente dispostos a se dar e a destrancar a pobre alma da menina que não sabia tê-la morta de vez ou apenas sonolenta, como já se disse aqui.

Era um negócio de poesia e de canções de amor que poucos entenderiam. Pareciam viver numa redoma de vidro que os separava do mundo frio ao mesmo tempo em que os unia cada vez mais. Quase todos os dias estavam a se ver e quando não o faziam fisicamente, viam-se em sonhos ou em pensamento.

E as flores tinham cheiro agora e a vida um sabor doce. As notas musicais tinham nome próprio e apelidos e, quando tocadas formavam melodias simples: por mais diferentes que fossem umas das outras, dó ré mi fá sol lá si sempre se entrelaçavam e se abrigavam no violão de modo a dizer "Eu amo você".

E a noite longa acabou e o sol deu o ar de sua graça por entre as nuvens fechadas que teimavam em escurecer aquele céu que tanto queria ser azul. Pronto, era azul, ele chegou e com seu despertador acordou-lhe a alma, o coração e lhe fez subitamente entender os versos de um pobre, mas feliz trovador.

A menina compreendeu os versos mesmo sem saber de que pena saiu; pôs um sorriso de meia-boca no rosto, como se cúmplice fosse do autor desconhecido.
Agora sim, ela era também aquele sultão e mendigo.

Agora que tinha despertador não cairia mais no sono dos que não amam, fechou o livro e agradeceu ao autor desconhecido já que, em uma fração de segundos, finalmente reconhecia o que emociona o poeta e o que cativa um leitor.

E seu coração não mais vivia de ciência, pois sua alma agora festejava o trim-trim-trim que lhe despertou.
* ilustração: Cristiano Leão

2 comentários:

Vanessa Maran disse...

Gostei da folha de papel! e dos desenhinhos tembém!ops! Ilustrações!

Ps. Mude a foto pq essa tá muito brilhosa!(se joga no pó)

JRM disse...

Ninguém entende a parte frontal do cérebro... e nem a dança louca!!

Bjo Bjo!!