terça-feira, agosto 21, 2007

Escrevendo com Machado e Freud




Hoje estive pensando sobre o escrever. Não é segredo para os que vem aqui ( se é que vem) que advogo em causa própria quando falo da escrita como um ato de extrema utilidade para aqueles que , na impossibilidade de passar ao ato, enveredam pelos caminhos tortuosos da linguagem. Eis o ato sublimatório.

Não vou bater na mesma tecla. Todos nós sabemos o quão útil é escrever, colocar no papel ou, mais modernamente falando, na tela, caracteres que revelem um pouco do sofrimento e que, juntos, possam ser capazes de aplacar um pouco dos sentimentos inconfessáveis ou intoleráveis. Sim, balela, todos sabemos dessa utilidade cada vez que nos debruçamos sobre uma folha de papel em branco.

Hoje pensei em outro aspecto envolvido na leitura, não menos dispensável ao processo da escrita. Chega a ser óbvio. Se eu escrevo, há um alguém a que meu texto é direcionado. A essa alguém chamamos de leitor.

Ao ler diferentes autores podemos, além de nos deter nas linhas e nos pensamentos manifestados ali a nossa frente, compreender como se dá o processo de escrita e especialmente, como cada autor constrói sua relação com o leitor, o que está do lado de lá, mas que não deixa de imprimir sua marca no papel escrito no ato mesmo da leitura.
Confuso? Machado de Assis é mestre nisso. A cada leitura das obras do autor, podemos perceber como é construída essa relação tão ambivalente entre o escritor e aquele que lê.

Nas obras machadianas consideradas injustamente “menores” como “ A mão e a luva” e “Helena”, o autor faz poucas menções ao leitor que futuramente chamará de querido, dedicado, amável e outros tantos adjetivos que beiram o companheirismo e permitem revelar uma suposta intimidade entre autor e leitor. Isso mesmo, uma relação de intimidade e mesmo de cumplicidade.

Essa mesma cumplicidade é posta em cheque em Dom Casmurro, uma vez que o autor não revela para o leitor o mistério da narrativa – afinal, nada se sabe sobre Capitu que não tenha sido dito por Bentinho, narrador que julga os fatos da maneira que lhe convém – e por isso convoca o mesmo para que descubra o que há por trás do mistério da menina de olhos oblíquos e de idéias atrevidas.

Em Machado de Assis o leitor inclusive é convidado a saltar páginas, capítulos, “ir direto ao próximo evento”, caso ache a narrativa enfadonha. Liberdade maior, impossível. O leitor é considerado como peça viva e fundamental também no processo de realização de um livro. Às vezes guiado pela mão, outras abandonado com o cenho franzido em dúvida, é esse o jogo que Machado faz com o leitor, o que não deixa de dar um caráter de cumplicidade à relação construída entre os que lêem e o que escreve.

Há quem ache que um livro está pronto quando sai das esteiras de produção das editoras e são encaixotados e mandados para as livrarias? Se engana quem acha isto, o livro nunca é pronto, ou terminado.Tampouco esse texto pretende um fim apenas por ter cessado o ato fisiológico dos órgãos motores envolvidos na escrita.
Para aquele que lê, sempre é possível apreender novas nuances a cada leitura de um livro interessante. Há quem tenha lido inúmeras vezes Dom Casmurro à espera de encontrar um ato falho, uma pista, um vestígio qualquer, “esquecido” pelo autor, que revele finalmente a consumação do adultério ou a inocência da moça de Matacavalos. Acredite. Há inclusive aqueles – e não necessariamente pode-se dizer que são autores “leigos” – que bradam ter encontrado sim, vestígios que possam conduzir à solução do mistério em torno da personagem feminina mais dúbia da literatura brasileira.

No ponto de vista do autor, ao livro sempre cabe alterações, pequenas ou grandes mudanças que possam influenciar a construção da narrativa e também o processo de leitura. É por isso que existem tantas edições e re-edições.

A escrita, cumprindo seu papel sublimatório nunca libera libido suficiente para que a satisfação seja completa, como seria caso o ato que se desejava realizar, ao invés, fosse posto em prática. Por isso, na tentativa de fechar esse buraco nunca fechado, é que se margeia tanto, é que se faz tanta borda. E haja edição, re-edição, compilação...

É isso que nos ensina Freud. Falando no próprio, é interessante notar como se constrói o processo de escrita em Freud e como isso influencia os leitores, transmissores do arcabouço teórico psicanalítico.

Observamos o extremo cuidado que o precursor da psicanálise utiliza ao juntar as palavras em frases, em capítulos. Se nos esquecermos um pouco do percurso científico e o arcabouço teórico desenvolvido por Freud e atentarmos somente no processo de escrita, podemos perceber um autor que, também como Machado de Assis, parece conduzir o leitor pela mão, para que este encontre o significado do que tão ardentemente deseja provar, ao mesmo tempo que às vezes o abandona à própria sorte.

Inicialmente Freud utilizava-se de códigos científicos para apresentar sua criação ao mundo. Obviamente a escrita fica assim hermeticamente fechada, destinada a poucos e compreendida por menos ainda. Seus estudos sobre os processos psíquicos, o chamado “projeto de 1895”, revela ao mesmo tempo uma busca pelo rigor cientificista influenciado pelo Positivismo e uma necessidade de aprovação por parte de quem lê. Ou seja, podemos entender que há aí um paradoxo em Freud? Talvez.

A partir do momento que dizemos que o Projeto de 1895 é uma obra destinada a poucos e que cumpre função de prover a psicanálise de um cunho científico através da neurologia, estamos dizendo que a Psicanálise ainda não é reconhecida como arcabouço teórico independente e subversivo( no sentido de que promove novas concepções acerca do sujeito e do sofrimento psíquico).

Aonde está o paradoxo? Está exatamente no Cientificismo. Em nome dele, Freud, mesmo inconscientemente (já que estamos na área mesmo, o termo cabe!) rejeita o leitor, nesse momento Freud abandona o leitor desejoso de conhecimento e centra-se no outro leitor, o leitor-medico, o leitor positivista. Ah! Então não há paradoxo, há uma escolha consciente (também cabe o termo) de um leitor que respalde a “ciência” que Freud concebe.

Não há paradoxo, entretanto, se pensarmos que esse leitor, desejoso de psicanálise, ainda não nasceu e para que este parto se dê é necessário que Freud convide o leitor-médico fin-de-siècle para dar validade ao que , posteriormente, tornar-se-á a teoria Psicanalítica e definitivamente, abandonará a necessidade de ser fazer valer da alcunha de Ciência.

Nesse ponto, cabe vários questionamentos, como, por exemplo, quem era o leitor de Freud? Como esse leitor foi construindo seu papel na construção da teoria psicanalítica? Partindo dessa última questão, seria bizarro demais supor um processo de co-autoria, Freud e leitor?

Não. Arrisco. Porque como dito anteriormente, quando alguém se propõe a escrever – seja uma obra literária seja uma nova teoria psicológica – presume-se, para além da sublimação inerente a si mesmo, um outro lado, o lado de quem lê.

Portanto, o leitor sempre será co-autor na medida em que está presente no processo de escrita antes mesmo de uma provável re-edição, possibilitada por pesquisas de desempenho de vendas.

O leitor está presente no desejo da escrita de todo autor. E como estamos falando de Psicanálise, vamos a Lacan: Tal como o sujeito nasce mesmo antes do ato de seu nascimento, o leitor é co-autor na medida em que nasce no desejo do autor. É como o bebê, que muitas vezes nem foi concebido e já tem nome, roupas, quarto e um lugar no desejo da mãe.

A relação Escritor x Leitor se passa o mesmo: Seja então motivado por puro narcisismo de ser lido e reconhecido como um grande autor ou por desejos essencialmente capitalistas de tornar do livro um best-seller, o leitor está ali, no desejo do autor, de ser entendido ou mesmo de não ser compreendido nas linhas em que escreve (em quem você pensou como ilustração desse exemplo?).

Por isso, seja no campo da literatura, da psicanálise, da ciência, que jamais nos desprendamos do nosso papel de leitor e co-autor, que funcionemos sempre como esse regulador no desejo de quem escreve para que nós mesmos possamos encontrar sublimação e desejo no ato da leitura.

Nos tempos em que a imagem digital comanda o mundo e a mídia se torna um quarto poder, cada vez menos pessoas se reservam o direito de serem co-autoras de tantas obras à espera de um leitor que as termine, mas, há término? Estaremos sempre destinados à reticências, sejamos nós aqueles que escrevem ou aqueles que lêem; o processo nunca se dá por terminado.

Se soubessem, aqueles que não lêem, o poder intrínseco à leitura, certamente estariam já com um livro à mão. Assim, poderíamos escrever tantos outros textos como esses, que se explicariam e se confundiriam uns aos outros, gerando outros, e outros...

Nenhum comentário: