terça-feira, setembro 23, 2008

Entre rodelas de pepino e pó de arroz



Eis que me chega às mãos uma espécie de almanaque de feminilidade. Nele existe tudo de mais caricato que pôde ser enquadrado como pertencente ao denominado "universo feminino".

"Só para mulheres: conselhos, receitas e segredos" (Editora Rocco, 2008) é o que podemos chamar de "Manual para ser uma boa mulher". O interessante livro reúne textos de Helen Palmer, Ilka Soares e Tereza Quadros veiculados em jornais entre as décadas de 50 e 60 do século passado.

Certamente para vocês os nomes acima citados não dizem muito, talvez não sejam nem mesmo atraentes para aqueles que julgam o conteúdo dos livros pela pompa dos escritores. Eis aonde o gato pula: Ilka, Helen e Tereza nada mais são do que pseudônimos usados por Clarice Lispector para escrever em jornais como o "Correio da Manhã" e "Diário da Noite".

Através de receitas para uma pele cansada e conselhos sobre como se portar num jantar a dois, Clarice revela um universo feminino no qual muito do encanto das mulheres se resumia em possuir um bom liquidificador, "instrumento da feiticeira moderna" (Lispector, 2008, p.69), ter algumas rodelas de limão à mão, umas gotas de óleo de fígado de bacalhau, e , claro, uma certa camaradagem com o farmacêutico da vizinhança.

A mãe da Macabéia (heroína de "A hora da estrela") com seus textos cor-de-rosa, escritos exclusivamente para as boas esposas, mães e donas de casa, mostra uma faceta pouco conhecida sua, a de mulher vaidosa, amante da boa maquiagem e dada aos truques da boa e velha "coqueteria"
Supondo que de bruxa e fada toda mulher tem um pouco, "Só para mulheres" é um divertido manual no qual mulheres como eu, filhas desta contemporaneidade, podem se deparar com textos de uma época remota, na qual a criatividade era um dos ingredientes essenciais no caldeirão dessa "feiticeira moderna" da qual fala a autora, ou as autoras, como prefirirem.

Em "A Máscara da face" , coluna datada de 1960 e veiculada pelo "Correio da Manhã", por exemplo, revela-se a noção de mulher construída no imaginário social da época: " A mulher deve se conservar numa atitude de discrição, embora se pinte e procure ser bela, pois não há nada mais encantador que uma bela mulher vestida com roupas elegantes e modernas, mostrando o mais amável dos sorrisos! É mesmo um céu em vida!"

Mas, vejam vocês, a feminilidade é quase um dom angelical, concedido a essas criaturas tão dadas aos truques da maquiagem, do vestuário e da elegância, com um único intuito: a produção perfeita destinada aos olhares masculinos, pois, que homem resistiria a uma mulher tão encantadora, representante terreno dos anjos de maiores cargos nas assembléias celestiais?

Nenhum, afirmo tachativamente. Não esqueçam que se deve sempre ostentar um sorriso e aparentar ser este tal de "céu em vida". Eu me pergunto e o que fazer com aqueles dias em que só se chove, em que não se tem isso de ver estrelas nem luar, apenas breu?

Sabe-se que a sedução feminina é algo muito estudado e também cantado em verso e prosa, não seria de um compêndio de receitas para as mulheres que a atividade sedutora seria suprimida. Portanto, o livro mostra que nada há de errado com as que não são belas naturalmente, a não ser que recusem embelezar-se. Toda feiura é passível de ser dissimulada assim como toda beleza é capaz de ser acentuada.

O objetivo é fácil de ser adivinhado, mais fácil do que tirar mancha de vinto tinto de roupa branca: É necessário fazer-se bela, desejável e, sobretudo, agradável para alcançar o mais alto posto ao qual uma mulher, na época, poderia almejar: Ser mulher de alguém e, por conseguinte, mãe dos filhos deste alguém.

A família burguesa necessita dessa mulher, por isso, é necessário que esta se enfeite, mas sem tanto glamour, sem tanta ostentação - posto que não se deve almejar jamais ser uma réplica de Brigitte Bardot, isto incorreria em grave erro e afetação, segundo afirma Lispector - para que assim consiga seu homem, e , finalmente, possa descansar de tanto esforço que fez para fisgá-lo, relaxar dessa beleza e dessa busca incessante pela perfeição para ser, finalmente, a mãe bondosa.

É , parece que ser o céu em terra não é tarefa das mais fáceis: É preciso inventar uma tal beleza, cuidar para que a pele esteja sempre limpa, asseada, cuidar das mãos, das unhas, dos pés e dos cabelos, inventar um jeito próprio de ser feminina para depois deixar tudo isso em nome da função mais bonita que a família burguesa já inventou que é a procriação.

Ora, qual homem encantar-se-ia por uma mulher que passasse longe dessa existência etérea, e que se assemelhasse mais a certas alegorias infernais? Nenhum, e ele tem lá suas razões: há de se buscar a perfeição na mãe dos filhos, esta deve ser a criatura mais celeste, digna do nome do marido.
Clarice estava certa em falar tanto para as mulheres, a dar tantos conselhos, alguns deles, acreditem, são bem interessantes e ainda válidos, mesmo nos dias atuais, nos quais qualquer creme hidratante resolve muita coisa.
Em nome da instituição familiar, há que se ter sempre as mais belas flores no jardim, as mais graciosas estrelas a brilhar para o deleite dos olhos masculinos.

Haja rodela de pepino, tudo em nome da família, claro.

Nenhum comentário: